Política
Crise de identidade
Assembleias Legislativas criam força-tarefa para resolver disputa territorial entre cidades do Ceará e de Pernambuco


Doze municípios situados na divisa entre os estados do Ceará e de Pernambuco enfrentam uma crise de identidade. O motivo são as atualizações na malha censitária realizadas pelo IBGE de 2000 a 2007, que redefiniram os limites territoriais dessas cidades, aumentando ou diminuindo suas áreas e impactando diretamente a vida da população e nos repasses de recursos públicos. É o caso de Moreilândia, no sertão pernambucano, a 590 quilômetros do Recife. Segundo a contagem oficial do IBGE, ele tem cerca de 10,5 mil habitantes. No entanto, a prefeitura afirma atender 15 mil indivíduos com políticas públicas nas áreas de saúde, educação, programas sociais e abastecimento de água. A diferença de quase 5 mil moradores estaria relacionada a cidadãos cujos endereços, após a atualização territorial, foram transferidos para os municípios cearenses de Crato, Barbalha e Jardim.
“Começaram pegando um pedacinho da serra, na Chapada do Araripe, depois outra parte e, na última vez, tomaram uma grande extensão. Mesmo após o Ceará ficar com parte do nosso território, a gente continua com todas as despesas, porque o pessoal quer continuar em Pernambuco”, explica Vicente Sampaio Neto, prefeito de Moreilândia. Situação semelhante ocorre em Salitre, no Araripe cearense, a 535 quilômetros de Fortaleza, que perdeu mais de 1,5 mil habitantes para Ipubi, do lado pernambucano. Ainda assim, a prefeitura de Salitre segue prestando serviços a essa população.
“Dentro da área que perdemos, temos duas escolas, uma creche, um ginásio de esportes e postos de saúde, com funcionários custeados pelo município. Além da documentação fundiária, que ainda consta como território do Ceará, tem o sentimento de pertencimento do povo, que se identifica como cidadão salitrense”, afirma Rondilson Alencar, prefeito de Salitre. De acordo com ele, sua cidade perdeu mais de 3 quilômetros quadrados de território, o que resultou em uma redução significativa nos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e de verbas específicas para as áreas de saúde e educação. Em Moreilândia, a perda mensal ultrapassa 200 mil reais, segundo o prefeito Sampaio Neto.
Além de Salitre, Barbalha, Crato e Jardim, também foram afetados, no Ceará, os municípios de Araripe e Santana do Cariri. Do lado pernambucano, estão na lista Araripina, Bodocó, Exu, Serrita, Moreilândia e Ipubi. Ao todo, são 773 quilômetros quadrados em disputa: 429 no lado pernambucano e 344 no cearense. Em nota, o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece) informou que o impasse persiste devido à insegurança jurídica na regulamentação da divisão territorial entre os municípios.
O impasse gera graves distorções nos repasses de verbas federais para as prefeituras
“A ausência de uma legislação federal que regulamente de forma clara as divisas estaduais tem gerado desafios em diversas regiões do Brasil, provocando dúvidas sobre a delimitação territorial. Isso compromete o planejamento, a gestão pública e a garantia de direitos da população”, afirma o Ipece.
Em parceria com a Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (Condepe–Fidem), o órgão está desenvolvendo um estudo técnico com o objetivo de assegurar uma definição cartográfica precisa das fronteiras, fortalecendo o planejamento público, a gestão territorial e a proteção dos direitos da população dos 12 municípios afetados. “O objetivo é promover a atualização técnica da representação cartográfica da divisa, garantindo que as áreas historicamente administradas pelos dois estados permaneçam sob suas jurisdições. Esse processo respeita tanto a prática administrativa consolidada quanto o sentimento de pertencimento das populações locais”, acrescenta o Ipece.
Além do estudo em andamento pelos órgãos de planejamento dos governos cearense e pernambucano, foi criada uma força-tarefa com participação de parlamentares dos dois estados e de representantes dos municípios afetados. O objetivo é acompanhar o caso e buscar uma solução administrativa, evitando que o impasse tenha de ser resolvido judicialmente.
Em nota, a Assembleia Legislativa do Ceará afirmou que o estudo oferecerá respaldo técnico à delimitação territorial dos municípios, contribuindo para a “boa convivência federativa e para o planejamento de políticas públicas em benefício das populações de ambos os estados”.
Caberá aos Legislativos estaduais e aos municípios envolvidos verificar a situação administrativa consolidada, mapear os equipamentos públicos existentes e dialogar com a população sobre o sentimento de pertencimento. Já o estudo técnico levará em conta análises documentais e cartográficas, incluindo a revisão dos Censos Demográficos do IBGE de 2000, 2010 e 2022. O levantamento pretende ainda construir um banco de dados georreferenciado, reunindo informações sobre localidades, distritos, domicílios, equipamentos públicos, estabelecimentos agropecuários, infraestrutura, unidades de conservação e territórios tradicionais.
Como resultado do estudo, será elaborada uma minuta de lei contendo um memorial descritivo georreferenciado e um mapa detalhado da divisa entre Pernambuco e Ceará, a ser submetida às Assembleias Legislativas dos dois estados. Após a aprovação nos Parlamentos estaduais, o projeto precisará passar pelo Congresso Nacional, uma vez que alterações nos limites entre unidades da Federação exigem legislação federal. Só então poderão ser implantados os marcos demarcatórios oficiais. Procurado pela reportagem, o IBGE informou que não se pronunciará sobre a questão. •
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crise de identidade’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.