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Crime sem castigo?

Anistiar Bolsonaro e seus cúmplices não irá pacificar o Brasil. Ao contrário, a impunidade é o que nutre os golpistas de plantão

Moraes não demonstra a menor disposição de aliviar a barra do capitão - Imagem: Sérgio Lima/AFP
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Em janeiro, quando estiver de volta à planície e sem direito ao foro especial do qual se beneficiou quando presidente, Jair Bolsonaro poderá experimentar pela primeira vez o gosto amargo do acerto de contas com a Justiça. Os crimes em série cometidos durante seus quatro anos à frente da Presidência da República, alguns já elencados e objeto de investigação, não serão esquecidos em processos que nos próximos meses mobilizarão desde a Justiça de primeira instância até o Supremo Tribunal Federal, passando pelos tribunais Eleitoral e do Trabalho e chegando à Corte Internacional de Haia. Para onde se aponte o nariz, é possível enxergar crimes cometidos por Bolsonaro ou apoiadores, mas, ainda assim, há quem defenda anistiar o ex-capitão em nome da “pacificação nacional” e do “futuro do País”. O apelo foi feito, entre outros, pelo ex-presidente Michel Temer, mas não encontra eco no meio jurídico e muito menos no STF.

Principal figura do enfrentamento institucional aos crimes bolsonaristas, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, deu o tom na terça-feira 7, ao anunciar que, por conta dos bloqueios de estradas após a confirmação do resultado das eleições, novas linhas de investigação surgirão no âmbito do inquérito que apura as ameaças à democracia e os atos antidemocráticos promovidos por extremistas com o incentivo ou a conivência de Bolsonaro. Ao contrário dos demais processos, que descerão à primeira instância da Justiça Federal assim que o ex-capitão se tornar também ex-presidente, os inquéritos a cargo de Moraes permanecerão no Supremo. “Os processos das fake news e das ameaças à democracia têm uma particularidade. Por investigarem a ameaça de quebra da constitucionalidade e dos riscos à segurança jurídica do Supremo Tribunal e de seus membros, continuarão no STF mesmo para quem não tem foro especial”, explica o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

Bolsonaro enfrentará processos no Supremo, na Justiça de primeira instância, no Tribunal Eleitoral e até mesmo na Corte de Haia

O inquérito do STF sobre a participação de Bolsonaro nas milícias digitais abarcará as diversas lives difundidas pelas redes sociais, nas quais o presidente colocou em dúvida a lisura das urnas eletrônicas, além do vazamento do inquérito sobre a invasão hacker ao sistema do Tribunal Superior Eleitoral, utilizado pelo ex-capitão como justificativa para seus ataques às urnas eletrônicas. De acordo com o relatório enviado pela Polícia Federal a Moraes, Bolsonaro “teve atuação direta e relevante na produção de desinformação sobre o sistema eleitoral” e foi protagonista de “um evento previamente estruturado com o escopo de defender uma teoria conspiratória que os participantes sabiam inconsequente”.

Alguns crimes eventualmente cometidos pelo presidente e seus apoiadores ao longo da campanha eleitoral também deverão ser incorporados ao processo que corre no STF. É o caso da investigação contra oito empresários que disseminaram mensagens de cunho golpista pelo ­WhatsApp e também dos novos inquéritos instaurados para apurar uma possível rede de financiamento aos bloqueios de rodovias.

“Bolsonaro pode ser enquadrado, caso se demonstre sua participação em atos contra a democracia e as instituições. Pode ser analisada também sua participação nas tentativas de impedir a vitória do governo democraticamente eleito. Se comprovada, ele poderá ser punido”, diz Pedro Serrano, coordenador do grupo de juristas que produziu o projeto de lei de Defesa do Estado Democrático apresentado na Câmara pelo deputado Paulo Teixeira, do PT. Por enquanto, cabe ao TSE a apuração sobre a organização e financiamento dos bloqueios golpistas iniciados em 30 de outubro. Em reunião com Moraes, que preside o tribunal, os chefes do Ministério Público em São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo levaram suas contribuições à investigação. “Os movimentos são muito parecidos em nível nacional. Há uma grande organização criminosa com funções definidas e vários números de Pix para abastecer financeiramente os bloqueios”, diz Márcio Sarrubo, procurador-geral de Justiça de São Paulo. O MP de Santa Catarina identificou ao menos 12 empresas que financiaram os atos golpistas no estado. Moraes prometeu rastrear e punir todos os empresários envolvidos.

Zambelli terá de responder pela perseguição armada a um homem negro nas ruas de São Paulo – Imagem: Redes sociais

Se, por um lado, a descida de alguns processos contra Bolsonaro à primeira instância fará o ex-capitão ganhar tempo, por outro o tirará da cobertura do manto protetor da Procuradoria-Geral da República, que, sob o comando da dupla ­Augusto Aras e Lindôra Araújo, atuou nos últimos quatro anos para livrar o presidente de qualquer incômodo. “É bom saber que a grande maioria dos procuradores da República são corretos e sérios. Por isso, provavelmente, não vai se repetir o que aconteceu em Brasília, onde houve uma proteção clara e evidente por parte do procurador-geral, que é o único que pode processar e denunciar o presidente da República. Aras exerceu um poder imperial e não fez denúncia alguma”, diz Kakay. O criminalista defende a revisão das decisões de Aras: “Agora, há que ser feita nova análise, mesmo nos inquéritos que ele pediu o arquivamento, para ver se há fato novo. Bolsonaro é passível de punição em todos os casos”.

A conivência da PGR com os crimes de Bolsonaro ficou explícita na condução dada às denúncias encaminhadas pela CPI da Covid realizada pelo Senado. Apesar da coleta de numerosos indícios e provas contra o presidente, ministros e parlamentares, Aras desprezou o conjunto de evidências e não deu sequência às investigações. Na terça-feira 7, com Bolsonaro derrotado nas urnas, a PGR pediu ao STF o arquivamento das denúncias contra ele por incentivo ao desrespeito às regras sanitárias. Segundo despacho assinado por Lindôra Araújo, o ex-capitão agiu “dentro dos limites da liberdade de manifestação de pensamento, sem qualquer conteúdo alusivo à prática de crimes”. Esta é uma das nove denúncias feitas pela CPI contra o ex-capitão em um pacote que, entre outras coisas, inclui prevaricação e charlatanismo: “Houve um grave erro jurídico da PGR ao arquivar os pedidos de investigação, porque existe farto material probatório. Há, por exemplo, uma série de estudos feitos pela Faculdade de Saúde Pública da USP que mostra uma infinidade de atos administrativos que contribuíram para a não vacinação durante a pandemia”, avalia Serrano.

“Especialista em logística do Exército“, o general e ex-ministro da Saúde foi informado sobre o desabastecimento dez dias antes de faltar oxigênio nos hospitais da capital do Amazonas – Imagem: Redes sociais e Márcio James/AFP

Um dos integrantes da tropa de choque da oposição na CPI, o senador Humberto Costa, do PT, afirma que, no próximo ano, o Senado vai acompanhar de perto a análise dos documentos pela primeira instância: “Com o fim do governo, boa parte desses processos que estão na PGR e não foram objeto de investigação por parte de Aras terão outro tratamento”, aposta. Ele ressalta que não apenas Bolsonaro é alvo da CPI: “Há crimes envolvendo figuras que ganharam foro especial, como é o caso de Eduardo Pazuello”. O ex-ministro da Saúde é alvo de investigação pelo desabastecimento de oxigênio em Manaus no momento mais agudo da pandemia. Costa lembra ainda que terão continuidade as ações internacionais contra Bolsonaro e seus ministros: “Existem processos de crimes contra a humanidade, que nós denunciamos ao Tribunal de Haia”.

Kakay estima que as investigações feitas pela CPI ainda podem dar resultado: “Em princípio, o inquérito só poderá recomeçar se houver um fato novo, mas pode haver uma análise nova partindo dos mesmos fatos, desde que com uma visão diferente. Esta é uma questão delicada que ainda dará muito pano para manga. Penso que a possibilidade maior é que Bolsonaro venha a responder por vários daqueles fatos citados no conjunto probatório que a CPI reuniu”. Serrano concorda e diz que observar a ciência em situações de pandemia é um dever jurídico do governante, e não uma opção: “Quando não cumpre esse dever, ele incorre em ilícitos penais, administrativos e políticos. Não há dúvida de que a política do atual governo, negacionista em relação à pandemia, constituiu um crime grave a ponto de estudos apontarem que o Brasil teve uma quantidade de mortos muito superior à média mundial. Isso foi resultado das ações do governo e elas estão demonstradas pela CPI”. Com 2,7% da população mundial, o País concentra mais de 10% de todos os óbitos por Covid do planeta, atesta a Johns Hopkins ­University.

Responsável pela falta de oxigênio em Manaus no auge da pandemia, Pazuello agora conta com foro privilegiado

Embora de mais difícil tipificação e punição, ­eventuais crimes eleitorais por uso da máquina do governo para comprar votos também podem render novos processos a Bolsonaro. Somente entre o primeiro e o segundo turno das eleições, o presidente tomou pelo menos oito medidas investigadas pelos procuradores, a saber: autorização de uso do depósito futuro do FGTS para pagamentos de prestações de imóveis; renegociação das dívidas da Caixa; inclusão de 500 mil famílias no Auxílio Brasil no segundo turno das eleições; concessão de empréstimos consignados aos beneficiários do auxílio; farta oferta de crédito a micro e pequenas empresas; prorrogação na atualização do Cadastro Único; pagamento de parcela extra do Auxílio Taxista; e crédito a mulheres empreendedoras.

Além de todas as evidências acumuladas contra Bolsonaro e aliados em quatro anos de governo, outras denúncias frescas surgem graças aos atos antidemocráticos realizados na última semana em todo o País. A bola da vez é Silvinei Vasques, diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, alçado à fama nacional depois de a corporação interferir no processo eleitoral, primeiro tentando impedir eleitores de chegar ao local de votação e depois agindo com negligência para coibir os bloqueios de estradas. “O comandante da PRF tem de ser denunciado e processado. Ele não tem foro especial e pode ser processado de imediato”, diz Humberto Costa. O clã Bolsonaro parece ciente do perigo, tanto que Flávio e Eduardo, os filhos Zero Um e Zero Três do capitão, respectivamente, trataram de apressar os trâmites para a obtenção da cidadania italiana. Planejam alguma fuga?

O pistoleiro Roberto Jefferson está sob prisão preventiva, sem tempo determinado – Imagem: Redes sociais

Para Serrano, o caso de Vasques e os episódios de uso de armas de fogo que envolveram a deputada federal reeleita Carla Zambelli, do PL, e o ex-deputado Roberto Jefferson, ex-presidente do PTB, também representam ações violentas e criminosas que precisam ser punidas: “Os policiais rodoviários impediram pessoas de votar com uma atitude extremamente rigorosa no dia da eleição e depois, quando houve manifestações golpistas, não fizeram nada. É preciso apurar quem são os envolvidos. O governo tem o dever de fazer isso e puni-los administrativamente, demiti-los do serviço público, sem prejuízo de enviar ao Ministério Público os documentos necessários para apuração penal”.

Serrano observa que o combate à violência política da extrema-direita pelo futuro governo deve ser travado com pés firmados na legalidade. “Nada além da lei, nenhum abuso deve ser praticado”, diz. “Mas também nada aquém da lei.” No Brasil, acrescenta o jurista, há o péssimo hábito de se utilizarem “raciocínios próprios da conveniência política” para aplicar a legalidade: “Esse não deve ser o critério em uma democracia. A lei aplica-se pelos seus próprios fundamentos e o Direito tem de ter autonomia como atividade no interior da democracia. Então, a forma de reação à violência da extrema-direita não deve ser a vingança, não devem ser as retaliações. O que deve haver é a aplicação da lei”.

Procuradores de Santa Catarina identificaram 12 financiadores de bloqueios ilegais. Moraes promete puni-los

Sob o prisma da ciência política e diante das tantas evidências de crimes cometidos durante o governo Bolsonaro, a ideia de anistia em nome de uma eventual pacificação social soa estapafúrdia, por repetir erros históricos cometidos pelo ­País. “Creio que essa proposta de Temer seja imprecisa e sem fundamento diante dos fatos que vêm ocorrendo desde 2013 e, mais acentuadamente, desde 2016. O que garantiria a pacificação com uma anistia a Bolsonaro? Com ou sem Bolsonaro, esse estado de guerra simbólica, ou ideológica, ainda vai permanecer durante um bom tempo”, afirma o cientista político e professor da UFRJ Luiz Eduardo Motta. A melhor estratégia da esquerda em busca de uma verdadeira pacificação, emenda o especialista, “é aumentar a sua influência na população, sobretudo na classe trabalhadora e nas novas gerações que vão votar nas próximas eleições”.

Fundadora e presidente de honra do Grupo Tortura Nunca Mais, a psicóloga Cecília Coimbra faz um paralelo entre o momento atual e a ditadura civil-militar estabelecida de 1964 a 1985, para afirmar que a anistia não pode ser entendida como esquecimento. “Você só pode esquecer aquilo que sabe. A primeira coisa a ser feita é levantar todos os crimes cometidos. Isso vale tanto para o período da ditadura quanto para o período atual”, diz. Em um mundo onde a extrema-direita cresce e aparece, afirma a experiente militante, os crimes cometidos pelo que qualifica como “fascismo fortalecido pelo governo Bolsonaro” precisam ser investigados. “Bolsonaro cometeu crimes inagraciáveis, crimes contra a humanidade, e não somente durante a pandemia. Crimes e genocídios foram facilitados e permitidos durante o seu governo. É preciso investigar tudo, mas não com espírito de vingança. Há uma questão ética que precisa ser encarada. É fundamental que essas investigações sejam levadas adiante, para conhecermos o que é esse momento de fascismo. É fundamental conhecer a história do País.”

A Lei de Defesa do Estado Democrático e a Constituição Federal dizem que a democracia deve conviver com extremismos, desde que os extremistas não pratiquem ou estimulem a violência, observa Serrano. “As leis têm de ser obedecidas. É um absurdo cogitar-se a anistia, isso só iria favorecer a prática de mais crimes pela extrema-direita.” Ele diz não acreditar que os bolsões mais radicais do bolsonarismo possam ser pacificados sem a devida aplicação da lei: “Não haverá pacificação sem punir as violências e as condutas criminosas. Não podemos ser ingênuos. Há uma parte da extrema-direita que deseja romper com a Constituição e estabelecer a subversão da ordem democrática no País”.

Vasques fez pente-fino nos ônibus de eleitores, e omitiu-se em relação aos atos golpistas – Imagem: Carolina Antunes/PR e Miguel Schincariol/AFP

Em seu discurso após a confirmação da vitória, Lula prometeu um governo “sem revanchismos”. Isso não significa que o petista vá defender a anistia aos crimes do bolsonarismo, como explica Costa. “O PT é contra qualquer tipo de anistia, perdão ou o que quer que seja em relação a Bolsonaro. Essas pessoas precisam responder pelos seus atos. Obviamente que essa não é uma tarefa do novo governo. É uma tarefa da Justiça, do Ministério Público. Mas os brasileiros precisam ter respostas sobre os crimes que terminaram recaindo sobre a população na gestão da pandemia. Não temos de apostar nessa falsa pacificação. Temos de cobrar da Justiça e do Ministério Público que cumpram com suas responsabilidades. Isso não pode ficar impune, de forma alguma.”

Para Kakay, a ideia de anistiar os crimes de Bolsonaro “é a pior que pode existir” e não trará pacificação ao País: “Vivemos um momento no qual o bolsonarismo virou quase uma seita. Uma anistia ou qualquer coisa parecida só vai recrudescer a irracionalidade dos que estão fazendo bloqueios e agredindo as pessoas nas ruas e em restaurantes. Vai significar a volta desses seres escatológicos ao poder em quatro anos”.

O criminalista afirma que “o erro de não punir os responsáveis por tortura e por cometerem assassinatos não pode se repetir agora”. Ele também pede que qualquer punição ocorra dentro da Constituição e sem perseguição: “Deve ser concedido aos bolsonaristas o que eles não concederiam, ou seja, o devido processo legal e o respeito à ampla defesa. O Brasil só será pacificado se o Poder Judiciário e o Ministério Público estiverem funcionando. Isso significa, necessariamente, responsabilizar criminalmente Bolsonaro e o seu grupo pelos crimes que cometeram ao longo dos últimos quatro anos”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1234 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Crime sem castigo?”

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