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Corte na carne… dos outros

Romeu Zema trabalha por um regime de recuperação fiscal repleto de maldades para os servidores e o povo

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Eleito com o discurso ­anti-­establishment do partido Novo, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, não tardou a demonstrar que falava sério quando defendia o Estado mínimo na campanha eleitoral. Desde o primeiro momento, atuou para privatizar empresas públicas e operar a navalha no orçamento. Agora resolveu radicalizar de vez. Dedica-se com afinco à aprovação de um regime de recuperação fiscal, a prever o congelamento do salário do funcionalismo, a suspensão dos concursos públicos por nove anos, o congelamento dos investimentos em saúde e educação e, claro, mais privatizações. O motivo de tamanho sacrifício? Segundo ele, o estado está quebrado, não tem condições sequer de pagar a sua dívida com a União. Para honrar as prestações, está preparado para cortar na carne… dos servidores mineiros. Só não está disposto a uma coisa: abrir as contas do governo para a Assembleia Legislativa verificar qual é, exatamente, o tamanho do rombo – se ele não for uma peça de ficção.

Caso o PL 1202/2019 seja aprovado, o estado passará a ser tutelado por um Conselho de Supervisão do Regime, composto de apenas três pessoas: uma indicada pelo presidente Jair Bolsonaro, outra pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e uma terceira nomeada por Zema. Além de supervisionar cada gasto da máquina estadual, o grupo ganha de brinde as chaves dos cofres públicos, incluindo o acesso ao Sistema Integrado de Administração do Estado (Siafi) e um poder de fiscalização maior que o da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Contas. O motivo alegado pelo estado para aderir ao regime – aceito apenas pelo Rio de Janeiro e onde se mostrou desastroso – é a dívida de 140 bilhões com a União. Se aderir, o estado pagará parcelas menores de início, e depois elas aumentam progressivamente no decorrer dos anos. Os juros por inadimplência, no entanto, continuam a ser calculados desde o momento da adesão.

A proposta prevê a suspensão de concursos públicos e o congelamento de salários e dos investimentos em saúde e educação

Dados do Portal Transparência revelam, porém, que o estado arrecadou, até novembro de 2021, 70,3 bilhões, 9% a mais que o previsto no orçamento, 64,5 bilhões. Se dividir esse valor adicional por mês e descontar os encargos, restaria ao menos 1 bilhão de reais para pagar as parcelas da dívida e ainda sobraria dinheiro, sem a necessidade de aderir à draconiana oferta do governo federal. Estranhamente, Zema não parece interessado em resolver o problema em casa. Ao contrário, convocou o responsável pela implantação do regime no Rio, Gustavo Barbosa, mineiro de nascimento, e o nomeou seu secretário da Fazenda. Detalhe: ele chegou a ser denunciado pela Assembleia Legislativa ao Ministério Público fluminense por gestão temerária e fraudulenta quando foi presidente da RioPrevidência.

“O partido Novo tem duas obsessões: alienar patrimônio público a preço de banana, uma vez que é um partido de multimilionários, e implantar o Estado mínimo”, critica o presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Estadual de Minas Gerais (Sindifisco), Marco Antônio Couto. Por não ter uma sólida base de apoio no Legislativo, o governo mineiro resolveu liberar a toque de caixa em emendas parlamentares para assegurar os votos necessários para a aprovação do PL. “Soube de um deputado que recebeu 13 milhões de reais em emendas depois que fechou voto com o governo nessa e em outras pautas. Para se ter uma ideia, as emendas individuais são de 7 milhões ao ano”, relatou um parlamentar em condição de anonimato, informação confirmada por outros deputados ouvidos por CartaCapital.

Mais que aprovar o regime fiscal, Zema pede um cheque em branco. O governador e o secretário Barbosa negam-se a abrir as contas do governo para justificar a necessidade do socorro à União. Devido à falta de transparência, o líder da minoria na Assembleia Legislativa, Ulysses Gomes, do PT, ingressou com ação na Justiça e obteve uma liminar, obrigando o governo a informar no prazo de dez dias quanto tem em caixa. A decisão foi, porém, cassada pelo ministro Humberto Martins, do Superior Tribunal de Justiça, antes que o parlamentar tivesse acesso aos dados. “A negativa de dar transparência tem a ver com o fato de o estado talvez não se enquadrar nas regras para aderir ao regime de recuperação”, ­especula Ulysses.

Agora, conselheiros do Tribunal de Contas do Estado querem que o governo mostre se as contas públicas atendem aos requisitos legais para aderir ao regime de recuperação fiscal. A Lei 159/2017 prevê que o estado esteja em “dificuldade financeira grave”, selo obtido quando a receita corrente líquida anual da unidade federativa é menor que a dívida consolidada ao final do último exercício, quando as despesas correntes são superiores a 95% da receita corrente líquida e quando as despesas com pessoal passem de 60%.

Amigo da onça. O “socorro“ de Bolsonaro impõe muitos sacrifícios aos mineiros

No escuro, o conselheiro Durval Ângelo, relator das contas de 2019, aconselha a Assembleia a rejeitar o projeto. “A Comissão de Constituição e Justiça deveria devolver o projeto ao governador de Minas, alegando que não há condições de provar se o estado preenche os requisitos. O projeto precisa vir com todas as informações solicitadas”, disse, acrescentando suspeitas de que ao menos duas dessas exigências não são cumpridas.

Por meio de nota, o governo informou que a Resolução SEF/MG 4.671 de 2014 define como sigilosos os dados referentes às contas ou movimentações financeiras do estado. A divulgação dos saldos bancários, acrescenta o texto, eleva o risco da instabilidade econômico-financeira e poderia agravar a crise econômica. A gestão Zema acrescenta que o regime de recuperação fiscal é a única saída para reequilibrar as contas e continuar pagando os servidores em dia. “Caso caiam as liminares vigentes no STF, Minas teria de arcar com o pagamento de cerca de 30 bilhões de reais.”

Não é o que pensa, por exemplo, o governador Ronaldo Caiado, de Goiás. Com o estado em dificuldades semelhantes, ele optou por negociar com o Ministério da Economia a dívida com a União, em vez de aderir ao regime. A postura de Zema aponta um alinhamento exacerbado a Bolsonaro, além de revelar certa incapacidade para gerenciar as contas do estado.

Deputados pedem acesso às contas do estado e desconfiam que o governo esteja mentindo sobre a gravidade da crise

Líder do bloco Minas São Muitas, Cassio Soares, do PSD, defende que parlamentares e representantes do governo mineiro se articulem com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, para criar uma comissão e negociar melhores condições diretamente com o Ministério da Economia. “Propus isso até ao secretário de governo, Igor Eto, mas eles insistem no RRF.”

Outro imbróglio é como serão feitas as privatizações. “A lei estadual determina que isso passe pelo crivo da Assembleia Legislativa. O governador faria como?”, indaga o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Casa, Cristiano Silveira. A entrega do patrimônio público é, por sinal, uma obsessão do governo. Zema pretendia leiloar a Cemig, a Copasa e a Gasmig, mas alega ter preservado essas empresas públicas. Não abre mão, porém, de vender a Codemig, que detém a maior jazida de nióbio do mundo.

Deputados e dirigentes sindicais insistem que a situação fiscal de Minas não estaria tão ruim a ponto de aderir ao RRF. Zema e Bolsonaro renegociaram as perdas advindas da Lei Kandir, que estaria em torno de 135 bilhões de reais. O governo topou um acordo para receber somente 8,7 bilhões, 7% do que teria direito, parcelados em 15 anos. “Duvido que ele toparia um acordo desses com algum devedor da rede de lojas Zema”, alfinetou o presidente do Sindifisco, em alusão à rede de lojas do governador.

A arrecadação com ICMS também aumentou. Só no primeiro quadrimestre, o estado arrecadou 20 bilhões, 39% do esperado com o imposto em todo o ano de 2021. Soma-se a isso o acordo com a Vale de 37 bilhões de reais pelo desastre de Brumadinho, dos quais 26 bilhões serão aplicados diretamente pela mineradora e outros 11 bilhões vão para o caixa do estado. Da mesma forma, Minas deve se beneficiar do acordo de leniência da Andrade Gutierrez, 128 milhões de reais para reparar os prejuízos identificados pelo MP nas obras da Cidade Administrativa e em fraudes em processos da Cemig durante os governos do PSDB. A Controladoria-Geral do Estado impôs, porém, sigilo de dez anos em trechos do acordo firmado.

Interesses. O projeto que liberou parte da Serra da Moeda à Gerdau tramitou em tempo recorde na Assembleia Legislativa

A pressão para aprovar o RRF envolve também o regime de urgência imposto por Zema ao PL 1202/2019. Depois de 45 dias sem apreciação, a proposta trancou a pauta da Assembleia Legislativa e reiteradas tentativas de acordo foram feitas, incluindo um pacote de projetos, caso o regime de urgência fosse retirado. Um deles seria votar a suplementação orçamentária de 1,9 bilhão de reais, para que o estado alcance os mínimos constitucionais da Saúde e Educação. Até agosto, o índice da Educação estava em 20,26% dos 25% previstos. O da saúde em 8,3% dos 12% exigidos.

O “pacote” também traria a vinculação da aprovação do PL 3.300/21, que teve sua tramitação iniciada de forma obscura e questionável. O projeto altera os limites do Monumento Natural da Serra da Moeda, uma área de conservação de 2.372 hectares para atender a interesses da mineradora e siderúrgica Gerdau. “Como essa área adicional fica dentro do Monumento, que a Gerdau ajuda a cuidar com muita responsabilidade, a empresa fará uma doação de uma área seis vezes maior (75,28 hectares) do que utilizará”, garante a companhia em sua página oficial.

O projeto tramitou em tempo recorde na Assembleia. Em 24 horas, passou por três comissões. Uma das reuniões chegou a estender-se até as 23h45 de 17 de novembro. A correria teve dois motivos: o vencimento do regime de urgência, que trancaria a pauta dentro de uns dias, e evitar chamar atenção da opinião pública. Segundo apurou CartaCapital, uma consultoria responsável pelo lobby favorável ao “Projeto Gerdau” pressionou os deputados estaduais para acelerar os trâmites. Nem precisava insistir tanto. Sete em cada dez deputados estaduais tiveram campanhas financiadas por mineradoras. A estratagema só não prosperou devido à pressão popular. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1186 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: MARCOS CORRÊA/PR E GUSTAVO BEZERRA/PT NA CÂMARA – I.LANSKY/WORLD MONUMENTS FUND E GUILHERME DARDANHAN/ALMG

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