Política
Corrida letal
Pesquisadores do Ipea alertam para os riscos da liberação indiscriminada dos mototáxis nas grandes cidades
No início de dezembro, uma carreta que trafegava pela BR-101, em Ribeirão, na Zona da Mata de Pernambuco, perdeu o controle numa curva. O semirreboque se desprendeu da cabine e caiu sobre três motocicletas que passavam na pista ao lado. Os três condutores morreram no local, somando-se a uma triste estatística em crescimento no Brasil. Uma pesquisa recém-divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que, somente em 2023, mais de 13,5 mil brasileiros perderam a vida em acidentes com motos, número que acompanhou a expansão da frota de duas rodas no País, de 2,7 milhões em 1998 para 34,5 milhões em 2024.
O fenômeno também pressiona os cofres do SUS. Em 2024, as internações de motociclistas geraram uma despesa de 260,5 milhões de reais, equivalentes a 57,9% do total gasto com acidentes de trânsito. “Nos últimos 30 anos, houve no Brasil uma redução de cerca de 30% na mortalidade por sinistros de trânsito. O número de acidentes de carro, por exemplo, caiu 20%, ao contrário das motos, que na virada do século representavam 5% das mortes no trânsito e hoje chegam a 40%”, explica o pesquisador Carlos Henrique Carvalho, um dos autores do estudo do Ipea.
“Dos quase 450 milhões de sinistros de trânsito, cerca de 60% envolveram motocicletas, o que impacta fortemente os gastos com saúde pública. A rede hospitalar está sobrecarregada, com leitos ocupados ao máximo por acidentados”, observa Carvalho. “Em colisões envolvendo motos, a probabilidade de óbito ou lesão grave é muito maior do que em acidentes com carros. Essas ocorrências costumam demandar atendimentos prolongados, deixando alas de trauma e emergências superlotadas.”
As motos já respondem por 40% das mortes no trânsito brasileiro e sobrecarregam o SUS
Apesar da sobrecarga, há cerca de cinco anos o atendimento às vítimas de acidentes de trânsito não conta mais com os recursos do seguro obrigatório de veículos. O extinto DPVAT injetava mais de 2 bilhões de reais por ano no SUS. “Hoje, enfrentamos uma situação contraditória. Ao mesmo tempo que cresce a venda de motocicletas, com aumento do crédito ao consumidor e incentivos à indústria, extingue-se uma política que, de certa forma, criava condições de melhoria no atendimento das vítimas.”
Em nota técnica divulgada no fim de novembro, o Ipea reuniu esses dados alarmantes para alertar a sociedade sobre os riscos da regulamentação do serviço de mototáxi. “A motocicleta não é um veículo adequado para transporte comercial de passageiros. Em certas regiões, especialmente onde a infraestrutura é deficiente e não há vias próprias para transporte público, reconhecemos a necessidade de serviços complementares, eventualmente com motos, mas de forma muito localizada”, ressalta Carvalho. “O risco é que, com a entrada dos aplicativos, não haja controle da frota nem dos corredores de trânsito rápido e de alta demanda, onde o perigo de acidentes é enorme. Estamos vivendo o que se convencionou chamar de ‘asiatização’ do trânsito, com as motocicletas assumindo protagonismo cada vez maior.”
Em São Paulo, a regulamentação do mototáxi virou um verdadeiro cabo de guerra. No início de novembro, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional uma lei paulista que permitia aos municípios do estado proibir o transporte remunerado de passageiros por motocicletas — como havia feito a capital por decisão do prefeito Ricardo Nunes, do MDB. Relator do processo, o ministro Alexandre de Moraes acolheu o argumento da Confederação Nacional de Serviços de que a norma invadia a competência da União para legislar sobre trânsito e transportes.
Alerta. “Dos quase 450 milhões de sinistros, cerca de 60% envolvem motos”, afirma Carlos Henrique Carvalho, do Ipea – Imagem: Regina Assis e iStockphoto
Com o iminente retorno dos serviços de mototáxi por aplicativos, como Uber e 99, a Câmara Municipal correu para aprovar uma regulamentação restritiva proposta por Nunes. O texto veta a circulação desse tipo de transporte em vias de trânsito rápido, como as marginais Tietê e Pinheiros, e na região do Minianel Viário, que abrange todo o centro expandido. Os condutores devem ter ao menos 21 anos, concluir curso específico, apresentar exame toxicológico com janela de 90 dias, estar inscritos no INSS, entre outras exigências. As motos precisam ter entre 150 cm³ e 400 cm³, até oito anos de uso e placa vermelha. Passageiros devem ter 18 anos ou mais e utilizar equipamentos de segurança e coletes reflexivos. Para JR Freitas, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Direitos e fundador da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos (ANEA), o conjunto de regras, na prática, inviabiliza o serviço na capital.
“O prefeito alega que o serviço é perigoso e pode ampliar as mortes no trânsito, mas não convence. Não tomou medidas para proteger os entregadores por aplicativo e ainda divulga, no Instagram, a chegada da Keeta, a maior empresa de delivery do mundo. Se realmente estivesse preocupado, já teria apresentado um plano para o setor e cobrado responsabilidades das empresas”, afirma. Freitas destaca que as plataformas não assumem responsabilidade pelos sinistros, que nem sequer são reconhecidos como acidentes de trabalho pela frágil legislação brasileira. Ele defende a inclusão desses profissionais no sistema previdenciário e a obrigação de as empresas fornecerem equipamentos de segurança. “Precisamos de EPIs que reduzam os acidentes ou ao menos amenizem as sequelas. O Estado tem sido omisso ao não impor regras às plataformas. Trata-se de uma das profissões que mais mata no País e, mesmo assim, ninguém age. Preocupam-se com os passageiros, enquanto as vidas de trabalhadores pobres e da periferia seguem tratadas como descartáveis.”
No início deste mês, o governo federal publicou uma portaria interministerial criando um grupo de trabalho para discutir a regulamentação dos entregadores por aplicativos. A proposta é dialogar com organizações de trabalhadores e representantes das empresas, a fim de construir medidas que atendam a ambos os lados. Os três principais eixos do GT são a definição de um ganho mínimo para motociclistas, a criação de um seguro, a inclusão previdenciária e a garantia de maior transparência nos algoritmos.
O governo federal prepara uma ofensiva para regulamentar aplicativos de entrega
Coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência, recém-confiada por Lula a Guilherme Boulos, o grupo terá a participação dos ministérios do Trabalho e Emprego e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Também foram convidados representantes do Tribunal Superior do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da comissão especial da Câmara dos Deputados que discute a regulamentação dos trabalhadores por aplicativo. A expectativa é que, até fevereiro de 2026, seja apresentado um relatório consensual que contemple as necessidades dos profissionais – tanto de transporte de passageiros quanto de entrega – e das plataformas digitais.
“É preciso ter consciência humana. A Uber, por exemplo, não possui um único carro, não abastece nenhum tanque, não assume custo ou risco. A empresa apenas oferece a intermediação tecnológica e fica com uma fatia relevante do trabalho e da viagem do motorista”, afirma Boulos. “Trata-se de um tema de direitos e de dignidade. É claro que aplicativos de transporte ou delivery facilitam a vida das pessoas, mas essa conveniência não pode ocorrer à custa da exploração e do sofrimento de quem trabalha, sem qualquer garantia. É essa balança que queremos ajustar.”
Edgar Gringo, da Associação dos Motoqueiros e Autônomos do Brasil, acrescenta que todos os equipamentos são do próprio trabalhador. “A gente coloca à disposição da plataforma a moto, o celular, o capacete, a capa de chuva… Trabalhamos até 76 horas por semana, sem um dia de descanso. Se o entregador precisa passar mais tempo na rua para sustentar a família, é evidente que o risco de acidente aumenta. E, como as empresas não fornecem nem fazem a manutenção das motos, muitas deixam de passar por revisão, o que também é apontado como uma das principais causas de acidentes”, afirma. “Além disso, somos constantemente pressionados a trafegar em alta velocidade para cumprir metas, sob pena de punição ou banimento. Com esse modelo, não há como esperar outro resultado que não seja mais acidentes.”
Atualmente, não existe um valor fixo pago aos entregadores por aplicativo, nem mesmo um piso, variando conforme a plataforma. Segundo JR Freitas, o iFood é o que oferece melhor remuneração: 7,50 reais por taxa para um raio de até 4 quilômetros, mais 1,50 por cada quilômetro adicional. Os trabalhadores reivindicam 10 reais como taxa mínima. “Quem sai para trabalhar define uma meta diária para cobrir os custos e garantir um valor mensal suficiente para sustentar a família. Quanto menor a taxa, maior a jornada. E quanto mais tempo na rua, mais vulnerável fica”, avalia.
Em relação ao mototáxi, o Ipea dialoga com a Secretaria Nacional de Trânsito, vinculada ao Ministério dos Transportes, para orientar a não regulamentação indiscriminada desse serviço. “Queremos evitar que os aplicativos façam o que quiserem, aumentando o risco de mortes”, afirma Carvalho. Ele defende que o governo federal implemente políticas públicas e uma legislação nacional que puna excessos e proteja os trabalhadores. •
Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Corrida letal’
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