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Corrida de obstáculos

Pesquisa expõe os numerosos percalços enfrentados pelos jovens periféricos no mercado de trabalho

Na luta. Vítima de discriminação, o pedagogo José Ricardo Paiva dedica-se a um projeto de educação antirracista – Imagem: iStockphoto e Redes sociais
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“Minha mãe sempre trabalhou em casa de família, sem nenhuma garantia. Minha avó era zeladora do Theatro Municipal e dizia para eu estudar para não ser condenada a passar a vida limpando a privada dos outros.” O relato da universitária Carina Inacio é representativo das agruras vivenciadas por milhões de jovens paulistanos periféricos, que cresceram sem perspectivas de uma vida economicamente estável, com oportunidades de trabalho nas áreas em que gostariam de atuar. Aos 26 anos, ela frequenta um curso superior de Gestão de Negócios para escapar da sina das mulheres de sua família, sempre relegadas a ocupações servis. Moradora de São Mateus, no extremo Leste da capital paulista, precisou buscar sozinha referenciais para quebrar com o ciclo histórico de exclusão social.

“Existe toda uma estrutura social para manter essa lógica, na qual alguns terão todas as oportunidades do mundo, enquanto muitos serão forçados a trabalhar com o que não gostam na luta pela sobrevivência”, afirma a estudante, que teve a família devastada com chegada do crack no início dos anos 1990 e chegou a passar fome durante parte da infância. Inacio é uma das pesquisadoras envolvidas no estudo “Injustiças estruturais entre jovens na cidade de São Paulo”, realizado pela Rede Conhecimento Social a pedido da ONG Juventudes Potentes. A proposta da pesquisa é desvendar os percalços enfrentados pelos jovens periféricos no mercado de trabalho.

“Não trabalhar não é uma opção”, garante Geovana Nogueira, de 19 anos, estudante de Serviço Social e Gestão em Recursos Humanos, também envolvida nas entrevistas com 600 jovens moradores das regiões Sul e Leste da cidade­ de São Paulo, com idades entre 15 e 29 anos, de fevereiro a março deste ano. Os dados coletados provam a afirmação da pesquisadora. De acordo com a sondagem, 42% dos entrevistados começaram a trabalhar antes dos 16 anos, 44% pensaram em abandonar a escola, e 21% o fizeram, devido à dificuldade de conciliar estudo e emprego. A maioria perde mais de duas­ horas no transporte público para ir e voltar do trabalho. Muitos não recebem auxílio das empresas para custear os deslocamentos e 68% dos jovens já ficaram, em algum momento, sem dinheiro para pagar a passagem.

A discriminação no mercado de trabalho começa logo na etapa de recrutamento. “O CEP é levado muito em conta pelas empresas na hora da entrevista, é comum a gente ser dispensado porque mora longe”, afirma Nogueira, estagiária de uma grande companhia do ramo farmacêutico, na área de Recursos Humanos, responsável pelos processos seletivos. Por conta do preconceito, 26% dos jovens entrevistados admitiram já ter mentido sobre o lugar onde moram ao se candidatarem para uma vaga de emprego. Além disso, 48% dizem ter sido discriminados pela escola onde estudaram.

Um quarto dos entrevistados admitiu já ter mentido sobre o lugar onde moram ao disputar uma vaga de emprego

Oito em cada dez entrevistados se sentem qualificados para as vagas a que se candidataram, mas acreditam que o lugar onde moram e as suas características físicas foram empecilhos para a contratação. “Mesmo que eu tenha uma boa formação, sou uma mulher periférica, gorda, não me encaixo nos padrões do meio jurídico, extremamente elitista”, lamenta Estela Reis, bacharel em Direito de 24 anos. “As nossas vivências no mercado de trabalho são muito dolorosas, mas descobri que posso, sim, ocupar lugares historicamente restritos a uma pessoa negra”, conta o pedagogo José Ricardo Paiva, que chegou na periferia do extremo Sul de São Paulo ainda criança, vindo do interior do Piauí em um ônibus clandestino com a família.

Segundo Paiva, o racismo nas empresas é explícito, mas também mora nos detalhes: o cabelo e a cor da pele são considerados na hora da entrevista de emprego. “É por isso que nos referimos à injustiça estrutural no título do estudo”, explica. Aos 23 anos, ele trabalha em uma ONG, na qual incentiva outros jovens como ele, negros e periféricos, a assumir o controle dos próprios destinos com autonomia e confiança. “Eu entrei e saí da escola sem que nada tivesse me marcado profundamente. Quando a escola não faz sentido na nossa vida, a gente não sente que pode mudar a realidade.” Foi a partir de um projeto com educação antirracista que sentiu despertar o senso de coletividade. “Aprendi que outras pessoas já tinham caminhado para eu não precisar correr. Poder trazer isso para o meu território e ajudar outras pessoas é muito gratificante.”

Quando esses jovens têm filhos cedo, e isso acontece muito – 37% dos entrevistados se tornaram pais antes de completar a maioridade –, a situação piora. Odara­ Akire tem 19 anos e há dois meses se tornou mãe solo. “Eu era uma prestadora de serviços, com MEI aberta. Fui demitida durante a gravidez. Agora, nas entrevistas de emprego, quando eu falo que tenho um filho vira um pesadelo, as perguntas ficam muito mais agressivas.”

ONG Juventudes Potentes/Aspen Institute

De acordo com o Dieese, quase 13 milhões de jovens brasileiros não estudam nem trabalham, razão pela qual são tratados nas pesquisas “nem, nem”. A gerente do Juventudes Potentes, Nayara ­Bazzoli, alerta que a expressão é usada de forma equivocada: “Evidentemente, eles não estão nessa situação porque querem, e sim por não ter oportunidades”. Camila Ikuta, socióloga e técnica do Dieese, concorda com a avaliação, e acrescenta que “esse quadro é muito mais comum entre as famílias de baixa renda”.

Para o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, é urgente que o Estado e o Poder Público cumpram o dever de proteger os jovens até sua efetiva autonomia. “Hoje, o Poder Público e a sociedade civil priorizam as políticas para as crianças e adolescentes, mas dão pouca atenção aos jovens acima de 18 anos. Nem mesmo as promotorias, defensorias e varas da Infância e Juventude atuam para garantir os direitos desse público. É um grave equívoco.” •

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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