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Corrida de obstáculos

Em alta, as candidaturas coletivas facilitaram o acesso de mulheres e minorias ao Legislativo, mas o modelo ainda esbarra em limitações da legislação eleitoral

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Imagem: Redes sociais
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“Foi incrível. É muito potente você chegar numa Casa Legislativa com cinco mulheres e todas são deputadas. Foi um processo de gestação mesmo. Achei que podíamos ir além, e pela minha experiência na ‘Juntas’, vi que muitas das minhas defesas precisavam ser feitas em Brasília: a legalização do aborto, a reconstrução das leis de incentivo à cultura, o uso medicinal da maconha, o cuidado materno para fins de aposentadoria. São pautas que devem ser construídas em âmbito nacional, e a experiência numa bancada coletiva me deu estrutura para encarar esse voo solo.” Assim Carol Vergolino, do PSOL, codeputada estadual em Pernambuco e candidata a deputada federal, define sua experiência no primeiro mandato coletivo eleito no estado, em 2018.

Em São Paulo, a codeputada Mônica Seixas, também do PSOL, disputa a reeleição com uma nova bancada, o “Mandato As Pretas”. Pioneiras nessa experiência no Brasil, as duas parlamentares tomaram rumos diferentes – uma escolheu candidatura solo, a outra, um novo coletivo –, mas concordam que esse modelo serve para alavancar as candidaturas de mulheres e integrantes de minorias que, sozinhos, não teriam condições concretas de conquistar uma vaga no Legislativo.

“A gente fez o mandato coletivo como uma crítica mesmo, porque falta muita coisa na democracia. Falta representação feminina, de indígenas, de negros, de pessoas trans. Fazemos questão de incluir todo mundo, não deixar ninguém para trás. Mas o ideal, claro, seria que cada um ocupasse uma vaga”, diz Seixas. “O mandato coletivo não é exatamente uma solução, mas contribui para melhorar a representatividade das mulheres, sobretudo as mulheres pretas, em um sistema tão desigual.”

Em 2018, várias colegas da Bancada Ativista liderada por Mônica ­Seixas lançaram candidaturas solo nas eleições municipais de 2020 e tiveram êxito, porque tinham conquistado um capital político para encarar esse desafio. É o caso da vereadora Érika Hilton, a primeira mulher trans eleita para a Câmara Municipal de São Paulo, e agora é candidata a uma vaga no Congresso Nacional.

Pela lei, o mandato pertence ao “­porta-voz” da bancada. Em caso de afastamento ou renúncia, o grupo todo acaba destituído

Neste ano, o Brasil registrou um recorde de candidataras coletivas. São 213 no total, espalhadas em todas as regiões do País. Débora Rezende, professora do Instituto de Ciência ­Política da Universidade de Brasília, explica que, apesar de existirem experiências anteriores, esse modelo emplacou em 2014, e cresceu a partir de 2016, justamente o ano do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. “As candidaturas coletivas crescem na onda de uma crise política que o Brasil enfrenta, uma crise da democracia mesmo. De certa forma, é uma análise que os próprios movimentos sociais fazem de que os espaços institucionais não são muito abertos, e que é necessário ocupar com a demanda das minorias.”

O modelo vem de fora, começou na Europa, e por aqui muitas das candidaturas se inspiraram na experiência do movimento espanhol Podemos. Segundo Rezende, nos mandatos coletivos municipais, que foram eleitos em 2020, 85% dos porta-vozes são oriundos de uma luta coletiva da sociedade civil ou de um movimento social, por isso sabem articular uma atuação conjunta. “Se trabalhar em grupo é difícil, deliberar em conjunto é ainda mais. Percebo que essa tem sido uma dificuldade”, pondera a pesquisadora. Mas existe uma rede nacional de mandatos coletivos em formação, para compartilhar experiências e boas práticas.

Um mandato coletivo tem, literalmente, mais braços, cabeças e pernas trabalhando em várias frentes. Possibilita, por exemplo, a participação em várias comissões parlamentares e uma produção mais robusta de projetos de lei. Isso não significa que as propostas formuladas vão emplacar nas Casas Legislativas. “A maioria desses mandatos é progressista e está localizada nas Câmaras Municipais, que costumam ser dominadas por vereadores de direita. Então, existe uma dificuldade de aprovar projetos. Uma forma que os coletivos têm de pressionar as câmaras é levar o povo para as galerias”, afirma Rezende. “Vi muito isso estudando esse modelo. Como o poder político no Brasil está distante do povo, essa é uma maneira de ativar as bases. Até porque projeto todo mundo faz, mas, de modo geral, o Poder Legislativo aprova poucos.”

Protagonistas. Mônica Seixas disputa a reeleição na Assembleia Legislativa de São Paulo por um novo coletivo. Carol Vergolino mira na Câmara dos Deputados – Imagem: Redes sociais

Ainda muito novos no País, os mandatos coletivos esbarram em limitações da legislação eleitoral, pois o Tribunal Superior Eleitoral não reconhece uma candidatura coletiva. Na hora de inscrever a chapa, apenas um indivíduo é tido como candidato. Esse cidadão costuma ser chamado de “CPF” ou “porta-voz” e, na prática, é o verdadeiro “dono do mandato”. Para driblar o problema, cada bancada faz seu acordo, mas não há garantias ao eleitor de que o grupo seguirá com a mesma composição até o fim.

A Bancada Ativista do PSOL em São Paulo, para citar um exemplo, sofreu um racha, e duas integrantes do grupo saíram do mandato levando consigo o nome do coletivo. Mônica Seixas seguiu, porém, como deputada estadual, compartilhando as decisões com seis colegas. À época, a porta-voz precisou se licenciar do cargo para tratar um problema de saúde, e quem assumiu o cargo foi um suplente do partido, não um codeputado. É o que determina a regra eleitoral. Foi preciso costurar um acordo com o então titular da vaga para manter o grupo atuante. Em Belo Horizonte, a vereadora Sônia Lansky renunciou, também por razões de saúde, e toda a sua bancada, a Coletiva do PT, acabou destituída.

A candidata a codeputada estadual pela Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, Simone Nascimento, pondera, porém, que os mandatos convencionais tampouco estão imunes a esse tipo de problema. “Quando um parlamentar sai por qualquer razão, toda a sua equipe, que está construindo aquela luta, também deixará a vaga. A questão é que os eleitores não sabem bem como isso funciona, porque o sistema eleitoral brasileiro ainda é muito nebuloso. Quando a gente faz campanha e explica como funciona um mandato coletivo, as pessoas entendem.”

Nascimento está estreando em uma candidatura coletiva. Antes, ela concorreu à Câmara Municipal de São Paulo sozinha, teve uma votação expressiva, mas não foi eleita. Depois disso, trabalhou como assessora parlamentar no gabinete da Bancada Feminista. Com isso, adquiriu experiência para integrar uma candidatura coletiva de mesmo nome na disputa por uma vaga na Assembleia Legislativa. “O mandato coletivo prioriza o projeto político, reduz o caráter personalista das candidaturas. É uma forma de colocar o foco nas propostas. O nome ‘Bancada Feminista’ é maior do que qualquer uma de nós”, defende. A porta-voz do movimento é Paula Nunes, que empresta seu CPF para representar o grupo nas urnas.

Fonte: Pesquisa “Movimentos sociais, partidos e representação: o caso dos mandatos coletivos”, coordenada por
Débora Rezende de Almeida, professora associada do Instituto de Ciência Política, da Universidade de Brasília (UnB)

Nestas eleições, pela primeira vez, o Senado também poderá ser disputado por candidaturas em grupo. Pedro Ivo é o porta-voz do Mandato Coletivo, que concorre com oito colegas a uma única vaga pelo Distrito Federal. “Temos a sensação de que a democracia ficou obsoleta, e esse modelo de mandato coletivo é uma forma de trazer elementos novos da democracia participativa para a democracia representativa”, esclarece.

O Mandato Coletivo conta com representantes de diversos segmentos, incluindo educadores, indígenas, ambientalistas, jovens. “Estamos alinhados em torno de uma pauta progressista. Nosso objetivo é defender o Cerrado e ‘suas gentes’ contra essa onda conservadora.” Neste caso, nem todos os cocandidatos estão filiados ao mesmo partido. Pedro Ivo é da Rede, alguns de seus colegas são do PSOL, outros não militam em partido algum, são representantes da sociedade civil organizada.

A professora Débora Rezende não arrisca dizer que o modelo vai emplacar no Brasil como ocorreu na Europa, mas acredita que, por ora, tem sido um importante instrumento para democratizar um sistema marcado pela subrepresentatividade de minorias e integrantes de movimentos sociais. “As candidaturas coletivas têm o potencial de abrir o debate no sistema político. Não é possível, por exemplo, que a gente ainda tenha apenas 15% de representação feminina no Parlamento.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Corrida de obstáculos “

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