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Consciência pesada

A direita moderada foi a primeira vítima do golpe contra Dilma. Agora, tem a oportunidade de reparar o erro

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Os extremistas se assanharam durante o impeachment fraudulento de Dilma Rousseff - Imagem: Nilson Bastian/Ag. Câmara
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A noite eleitoral foi como é a política no Brasil, emoção até o fim. O resultado trouxe, no essencial, duas notícias. A primeira era esperada, mas nem assim menos extraordinária: Lula tem 48,5% dos votos válidos, o que representa uma das mais expressivas votações que qualquer candidato obteve na primeira volta. Sem dúvida, é um grande resultado. A segunda notícia é igualmente extraordinária, mas, desta vez, inesperada: Bolsonaro tem 43% dos votos, cerca de 10 pontos a mais do que as sondagens lhe atribuíam.

A primeira notícia foi uma alegria, a segunda uma desilusão. A desilusão é ­pessoal, claro, e tem a ver com o fato de, no meu ponto de vista, não ser mais possível ignorar o que essa votação realmente significa: a direita social brasileira tornou-se, estrutural e ideologicamente, de extrema-direita. Se nem todos falam como Bolsonaro, muitos concordam intimamente com o capitão. Ele simplesmente diz em voz alta o que eles pensam, mas não se atrevem a dizer. Depois desses quatro anos, essa conclusão pode ser discutível, mas é absolutamente legítima.

Imagino imediatamente o sentimento crítico que estas palavras poderão provocar em alguns espíritos. Não, não há 51 milhões de pessoas de extrema-direita no Brasil, dirão. Não há 51 milhões de fascistas, não é possível fazer julgamentos políticos apressados e definitivos. É preciso dialogar e debater com essas pessoas. Não podemos desistir delas. Bom, compreendo. Estou até de acordo que não é possível desistir das pessoas nem do diálogo com elas. Mas que isso não disfarce a realidade que o Brasil tem à sua frente – depois de quatro anos de profunda desumanidade na governação da pandemia, depois de quatro anos de intimidações militares sobre a política e sobre a sociedade, depois de quatro anos de ataques ao Judiciário, à imprensa e a qualquer outra instituição independente, depois de quatro anos de desconsideração pelo papel da mulher na sociedade, depois de quatro anos de boçalidade, de brutalidade, de violência e de extremismo, que mais falta para que a teoria política e o jornalismo o considerem um representante da extrema-direita? Alguém vê ainda esperança de redenção democrática num segundo mandato? Se o cargo de presidente não mudou o personagem, como esperar que um segundo mandato o transforme?

Não me parece factível. Tentando ser o mais objetivo que consigo, julgo que o Brasil enfrenta nesta eleição um movimento populista de extrema-direita que se considera representante do “povo” original, puro e autêntico do Brasil, em luta contra o “não povo” dos diversos degenerados que são homossexuais, ou pardos, ou pretos, ou comunistas, ou tão simplesmente pobres. Malditos pobres que todos os dias os fazem lembrar a desigualdade e a injustiça. Esses pobres são os verdadeiros culpados do ódio social, na medida em que a sua própria existência incomoda a delicada consciência das “pessoas de bem”. Bom, mas apressemos o argumento, porque é aqui que quero chegar, nada disso está longe do fascismo. Na Alemanha do fim dos anos 1930, os odiosos crimes cometidos pelo regime nazista foram apoiados e incentivados por milhões e milhões de alemães. Milhões e milhões. Não, mais uma vez, o argumento do número não me impressiona. Na Alemanha hitleriana havia milhões de fascistas.

Bolsonaro diz em voz alta o que milhões pensam, mas não se atrevem a dizer

Isso dito, nada me afasta do meu otimismo. Acho que Lula vai ganhar estas eleições e que a direita democrática já percebeu o erro que cometeu quando apoiou o golpe contra Dilma Rousseff e quando apoiou (alguns indiretamente) a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018. A direita moderada foi a primeira vítima. Agora, a história é diferente. Conscientes do que está em jogo, os democratas unem-se em torno da candidatura de Lula. Isso é bonito de se ver, daqui de longe. E, podendo estar muito enganado, julgo que aí veremos em breve Simone Tebet e Ciro Gomes, os outros dois candidatos que terminaram a corrida no terceiro e no quarto lugar.

Não conheço a primeira e não tenho dela outra ideia a não ser de que conduziu muito bem a sua difícil candidatura. Mas gostaria de deixar umas palavras a Ciro Gomes, com o companheirismo de quem sente que tem com ele certas afinidades eletivas de cultura política. A verdade é que a sua campanha espalhou no espaço público um veneno insidioso em duas linhas políticas perigosas. A primeira foi a da equivalência política entre as duas candidaturas. A segunda, a equivalência moral entre os dois candidatos. A primeira é completamente inaceitável. Não, não são politicamente iguais. As duas campanhas são diferentes e são diferentes num ponto essencial – uma é democrata e respeita os adversários e as instituições. A outra transforma o adversário num inimigo existencial que deve ser banido, ou ir para a prisão ou para o exílio. Quanto à segunda, à equivalência moral entre os dois candidatos, ela é profundamente injusta para com Lula, que foi condenado e preso por um sistema judicial corrompido e a serviço de uma motivação política. Tratar os dois por iguais é injustificável.

Terminado o primeiro turno das eleições, o que está em causa é a democracia brasileira e o que se exige é grandeza. A vitória da democracia brasileira é mais difícil do que pensávamos e Lula terá ainda uma campanha dura pela frente. Mas só amamos as vitórias difíceis. A minha expetativa é de que, no momento em que os leitores brasileiros me lerem, possamos ver Ciro Gomes empenhado na campanha de Lula, em nome do futuro democrático do seu país. Situações “desafiadoras” e “potencialmente ameaçadoras”, para lembrar as suas próprias palavras, não permitem hesitação, nem cálculo, nem ressentimento. Boa sorte, Brasil. •


* Ex-primeiro-ministro de Portugal.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Consciência pesada “

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