Política
Compromisso com o erro
Depois da malfadada tentativa de dispersão, Tarcísio de Freitas recicla a aposta nas internações forçadas
Em dez anos de trabalho na Cracolândia, nunca vi uma situação tão grave”, lamenta o psiquiatra Flávio Falcone, que desenvolve atendimento à população de rua do Centro da capital paulista com abordagem humanizada, vestido como palhaço. “A hipocrisia é gritante. O governo estadual fala em ‘revitalizar’ o Centro, como se não existisse vida ali.” A conversa começou por telefone e continuou com uma caminhada pelas ruas da região onde o “fluxo” de usuários de drogas está espalhado desde que a Praça Princesa Isabel foi desocupada pelas polícias Civil e Militar, em meados de 2022.
No percurso, Falcone é frequentemente abordado por dependentes químicos, que o cumprimentam como um velho amigo. Pudera, Palhaço, como é conhecido, convive com eles diariamente e promove diversas atividades culturais, como o slam do fluxo, uma espécie de batalha de poesias – sim, existem poetas na Cracolândia. Na avaliação do psiquiatra e pesquisador da Unifesp, a situação só piorou desde que foi deflagrada a Operação Caronte, que desocupou a praça sem nenhum plano de acolher as centenas de pessoas que viviam por ali, em uma das maiores cenas abertas de consumo de drogas do mundo. Se antes os usuários estavam concentrados no mesmo local, agora o fluxo foi pulverizado em vários logradouros do Centro.
Celebrada pelo prefeito Ricardo Nunes, a dispersão dos dependentes químicos dificultou a abordagem dos agentes de saúde e assistentes sociais. “Essa operação é uma aberração, do ponto de vista da saúde pública. Sabemos bem o que eles pretendem, eliminar os pretos e pobres da paisagem”, dispara Falcone. Um estudo conduzido por pesquisadores da USP e da Unifesp comprova: 76,8% dos frequentadores da região conhecida como Cracolândia são pretos ou pardos, e 39% vivem no local há mais de dez anos. “Muitos são egressos do sistema prisional e não encontraram oportunidades para se reinserir na sociedade. No caso das mulheres, grande parte delas sofreu algum tipo de abuso dentro da própria família e fugiu de casa. Tem ainda a questão do alcoolismo. Nem todo mundo que frequenta o fluxo fuma crack. Uma pedra custa de 15 a 20 reais. Já um Corote custa 5 reais, e você acha em qualquer lugar”, observa o psiquiatra, em alusão à popular cachaça vendida em garrafas plásticas de 500 ml.
Na esquina da Rua Vitória com a Guaianases, uma usuária que prefere não ser identificada diz ter encontrado na Cracolândia o que não tinha em casa: afeto e companheirismo. “Eu gosto do rolê, né tia! Se eu tivesse uma casa pra morar, nem fumava pedra, ia só fumar maconha, igual os playboy. Mas, quando a gente entra no fluxo, acaba seguindo a onda”, diz a jovem, com um sorriso de poucos dentes, lábios queimados e o corpo marcado por escoriações e hematomas de uma aparente briga recente. Há sete anos em situação de rua, não perdeu a vaidade e a autoestima. Desfilava pelas ruas do Centro de sobretudo azul-marinho e botas de salto alto.
Desde os anos 1990, o governo paulista foca na repressão aos usuários. De lá para cá, o fluxo de usuários só cresceu e se espalhou
Na pequena porção de asfalto ocupada por centenas de outros usuários, uma coberta estendida com zelo e uma caixa de papelão fazem as vezes de barraca. Do lado de fora, alguns adereços decorativos e uma planta cultivada em vaso. O frágil abrigo talvez não resista à próxima chuva, ainda assim a jovem teme perdê-lo antes da hora. “Estão dizendo que vão começar a internar a gente à força, tia. Fiquei com medo. Ninguém aqui quer isso, não. A gente precisa é de oportunidade, não de tranca.”
O receio da internação compulsória surgiu de declarações públicas do novo governador paulista, Tarcísio de Freitas, que prometeu reforçar os convênios com comunidades terapêuticas geridas pelo terceiro setor, para oferecer tratamento aos dependentes químicos. Anunciado com mais detalhes na terça-feira 24, o projeto será comandado pelo seu vice, Felício Ramuth, e inclui um conjunto de ações nas áreas de segurança pública, saúde e assistência social. O que preocupa as organizações de direitos humanos é a chamada “Justiça Terapêutica”, a propor a internação dos usuários de drogas flagrados cometendo delitos na região como alternativa à prisão.
“Na prática, será uma prisão disfarçada de tratamento”, denuncia o advogado Rildo Marques de Oliveira, um dos coordenadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos. “Eles não se preocuparam em contratar médicos psiquiátricos para avaliar o paciente, fazer um diagnóstico e, então, decidir se a internação é realmente necessária”, alerta. “Em vez disso, o usuário será levado diante de um juiz, sob a ameaça de ser preso por alguma razão, na presença de policiais, e será coagido a aceitar a medida ou mesmo ter a internação decretada pelo magistrado.”
Não bastasse, especialistas advertem que as internações compulsórias são dispendiosas e pouco efetivas. Enquanto o usuário estiver preso, ficará em abstinência. Após receber alta, contudo, a maioria deles volta a viver em situação de rua e retoma o consumo de drogas. Em 2022, o Conselho Federal de Psicologia reforçou o posicionamento contrário ao financiamento de comunidades terapêuticas com verbas públicas. Segundo a entidade, boa parte dessas instituições funciona como os antigos manicômios. Em uma fiscalização realizada em 2017, foram identificados numerosos casos de maus-tratos, tortura, contenção química por sedativos, imposição de crença religiosa e trabalhos forçados. Algumas unidades não possuíam sequer profissionais da saúde, apenas líderes religiosos e monitores.
Há nove anos a psicóloga Maria Angélica Comis trabalha no Centro de Convivência É de Lei, que atua com políticas de redução de danos. Nos últimos anos, afirma, houve um desmonte dos equipamentos públicos de acolhimento. “A prefeitura fechou vários serviços durante a pandemia, para forçar as pessoas a irem embora da região. Na sequência removeram os ferros-velhos, para dificultar a venda de materiais recicláveis coletados pelos dependentes químicos. O que aconteceu? Sem condições de trabalho, aumentaram os furtos na região. Foi essa política que gerou o caos que vemos hoje.”
Para especialistas e organizações de direitos humanos, a melhor estratégia para enfrentar o problema é oferecer moradia, trabalho e tratamento ambulatorial para os dependentes químicos, nessa ordem. Sem retirar os usuários da situação de rua, dificilmente eles conseguirão se livrar do vício. É o que prevê a política do Housing First, que serviu de inspiração para o programa De Braços Abertos do ex-prefeito Fernando Haddad. “O problema é que tudo foi abortado na troca de governo”, lamenta Falcone, que mantém 12 usuários em pensões da Cracolândia com doações coletadas de empresários apoiadores da causa. “O uso do crack despenca pela metade assim que a pessoa passa a ter uma casa”, garante. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1244 DE CARTACAPITAL, EM 1° DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Compromisso com o erro”
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