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Com política local esfacelada, Peru vive efeito colateral da Lava Jato

Quatro ex-presidentes e a família Fujimori são acusados de receber propina da Odebrecht

Foto: Juan Pablo Azabache/Andina/AFP
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Os peruanos acordaram na segunda-feira 30 sem saber quem administrava o país. Em lances que superam o realismo fantástico latino-americano, o presidente Martín Vizcarra e os congressistas protagonizaram tentativas de golpe e contragolpe e paralisaram o poder público. Refém de um Parlamento formado em sua maioria por fujimoristas saudosos e radicais, Vizcarra anunciou a dissolução do Legislativo e a convocação de novas eleições em 2020. “Espero dar fim a esta fase de aprisionamento político que impede o Peru de se desenvolver no ritmo de suas possibilidades”, afirmou, em um pronunciamento televisivo. “Que essa medida excepcional permita aos cidadãos finalmente se expressarem e se posicionarem nas urnas e, por meio dessa participação, em relação ao futuro do nosso país.”

Em resposta, os deputados suspenderam Vizcarra por 12 meses sob a alegação de “incapacidade moral” e nomearam sua vice, Mercedez Aráoz, para o comando da República. A polícia foi convocada para proteger o Congresso, enquanto moradores da capital Lima saíam às ruas em protesto. As Forças Armadas declararam, porém, “total apoio à ordem constitucional e ao presidente”. Instalou-se uma guerra de versões. Juristas simpáticos a Vizcarra dizem que a decisão legislativa seria ilegal, pois determinada após a suspensão anunciada pelo Executivo. Congressistas afirmam que o afastamento do mandatário foi aprovado minutos antes do anúncio de interrupção dos trabalhos parlamentares. A Constituição peruana permite ao presidente propor a dissolução do Congresso caso “este tenha censurado ou negado duas moções de confiança do Conselho de ministros”, o que ocorreu: o Parlamento rejeitou tanto mudar o sistema de escolha dos juízes do tribunal quanto a convocação de novas eleições.

Na terça-feira 1º, Vizcarra despontava como o vencedor da contenda. Pesquisas de opinião indicaram um alto índice de apoio da população à dissolução do Congresso. Além das ruas, o presidente tem a seu lado a maioria dos governadores. Aráoz chegou a aceitar a manobra parlamentar, classificou de “inconstitucional” a decisão do presidente e se declarou pronta a assumir o poder: “Não fujo das minhas responsabilidades, por mais difíceis que sejam as circunstâncias”. Os congressistas tentaram, sem sucesso, retomar os trabalhos. Mudou de ideia antes do dia acabar. No meio da noite, a vice entregou sua carta de renúncia e defendeu novas eleições.

O confronto entre Vizcarra e os parlamentares é o ápice de uma longa crise na política local derivada dos efeitos internacionais da Operação Lava Jato. Em princípio, o motivo do embate foi a recusa do Congresso em alterar o sistema de escolha dos juízes do Tribunal Constitucional, equivalente ao STF no Brasil. Os deputados pretendiam trocar de uma única tacada 6 dos 7 magistrados da corte. Alguns dos nomes sugeridos são suspeitos de atos de corrupção. Em uma sessão na sexta-feira 27, o advogado Gonzalo Ortiz de Zevallos, primo do presidente do Parlamento, Pedro Olaechea, obteve os 87 votos mínimos necessários para assumir uma cadeira no tribunal, mas sua nomeação acabou manchada por uma denúncia de fraude. A deputada Maria Elena Foronda, de esquerda e favorável à intervenção no Parlamento, afirmou que seu voto, contrário à indicação, foi adulterado no painel. Foronda pediu ao Ministério Público uma investigação do caso e deu um motivo para a ação de Vizcarra.

Quatro ex-presidentes e a família Fujimori são acusados de receber propina da Odebrecht

A pressa em trocar os integrantes da alta corte não passou despercebida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que estranhou a tentativa intempestiva de mudar a correlação de forças no momento em que o tribunal começou a analisar os recursos apresentados pelas defesas dos principais investigados por corrupção. Em nota, a comissão disse observar “que esse processo de seleção se realiza em um contexto político marcado por denúncias sobre a participação de funcionários de diversas entidades do sistema judicial em atos de corrupção, por meio de tráfico de influência, favorecimento pessoal, abuso de poder e prevaricação”.

Quem manda? Vizcarra dissolveu o Congresso e convocou eleições. O Parlamento não aceita a decisão. Foto: Renato Pajuelo/Andina/AFP

A maioria parlamentar fujimorista formou-se após as tumultuadas eleições presidenciais de 2016. O liberal Pedro Paulo Kuczynski venceu a disputa em segundo turno por uma pequena margem contra Keiko Fujimori, filha de Alberto, ex-presidente que promoveu um autogolpe em 1992 e governou o Peru de forma ditatorial durante uma década. Preso por corrupção, Fujimori, de 80 anos, chegou a ser solto em 2017, beneficiado por um indulto motivado por seu grave estado de saúde, mas voltou à prisão em janeiro deste ano. Keiko também está atrás das grades, acusada de lavagem de dinheiro de propina da Odebrecht. Ainda assim, pai e filha comandam da cadeia a mais extremista oposição peruana. O afã em alterar a composição do Tribunal de Apelação atenderia, aliás, aos interesses de Keiko. A corte vai analisar em breve um pedido de habeas corpus da ex-candidata presidencial.

O outro lado está igualmente enredado no escândalo da Odebrecht. Acuado por denúncias de recebimento de propina da construtora brasileira revelada pela Lava Jato, Kuczynski não resistiu às pressões. Em março do ano passado, após um ano e sete meses no poder e dois processos inacabados de impeachment, o presidente renunciou ao cargo e deu lugar ao vice, Vizcarra, que havia se notabilizado por comandar uma cruzada contra a corrupção. Além de Kuczynski, outros três presidentes peruanos foram acusados de receber dinheiro ilegal da empreiteira. No episódio mais dramático e notório dessa trama, Alan García matou-se em abril para evitar a prisão. Alejandro Toledo, antecessor de García, está detido nos Estados Unidos à espera da extradição. Ollanta Humala, sucessor de García, responde a um processo no Peru e corre o risco de ser condenado a 20 anos de prisão.

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