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Com as digitais de Steve Bannon

As manifestações golpistas contam com engajamento internacional, sobretudo de grupos sediados nos EUA

Com as digitais de Steve Bannon
Com as digitais de Steve Bannon
Alinhados. Bolsonaro e Bannon compartilham estratégias para disseminar a desinformação - Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP e Alan Santos/PR
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Alexandre de Moraes não foi preso, Lula não está internado em estado terminal no Hospital Sírio Libanês e os alienígenas não atenderam ao chamado de celulares no topo da cabeça para salvar o Brasil do comunismo. Estes são apenas alguns dos delírios propagados à exaustão em grupos bolsonaristas nos aplicativos de mensagens, como WhatsApp e Telegram. A realidade sempre se impõe, mas os bolsonaristas amotinados na porta dos quartéis insistem em não aceitar o resultado das urnas, agarrando-se a qualquer teoria conspiratória que reforce suas convicções. O espetáculo circense não é financiado apenas com doações de empresários. O golpismo também se vale da máquina pública, articulada com uma rede internacional de desinformação, como mostra um relatório do Observatório das Eleições, produzido com exclusividade para CartaCapital.

Dois especialistas monitoraram, de 1º a 15 de novembro, todas as publicações no Facebook com as ­hashtags “SOSFFAA”, “BrazilianSpring” e ­“BrazilWasStolen”, e descobriram que boa parte dos “pedidos de socorro ao Brasil” veio de fora. Houve 2.997 no total, dos quais 134 eram provenientes do exterior, de 17 países. Outras 125 postagens não têm informação sobre o país de origem do administrador da página.

A maioria das publicações estrangeiras partiu dos EUA: 83, número superior à soma de postagens de todos os demais países. A Austrália aparece em segundo lugar, com 13 publicações denunciando supostas fraudes nas eleições brasileiras. Figuram ainda no topo da lista Chile, Portugal, Argentina e Japão. As páginas norte-americanas mais ativas são “Brasil pela Direita”, “Boston bolsonaro.com” e “Derecha Libertaria Republicana”. É curioso observar que, na Argentina, duas publicações com esses termos foram feitas por perfis administrados pelo Grupo Clarín, o maior conglomerado de mídia do país. Normalmente, elas têm origem duvidosa. O estudo é da jornalista Eliara Santana, doutora em Linguística e Língua Portuguesa com foco na Análise do Discurso, e de Eduardo Barbabela, doutor em Ciência Política pela Uerj e especialista em pós-doutorado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea.

A extrema-direita norte-americana vê o Brasil como laboratório da eleição que ocorrerá por lá em 2024

Não é novidade a ligação de Jair Bolsonaro com Steve Bannon, o estrategista de campanha de Donald Trump e importante articulador da extrema-direita mundial. Ambos chegaram a participar de reuniões e jantares juntos, organizados pelo filho Eduardo Bolsonaro. Santana observa que o Brasil serve de laboratório para as eleições norte-americanas de 2024, quando os trumpistas tentarão retornar ao poder. “A extrema-direita não se desmobilizou nos EUA, mas perdeu um pouco de força. Por isso, direciona a atenção para o Brasil, de onde esperam tirar algumas lições.”

A pesquisadora estuda desde 2018 os grupos bolsonaristas, com foco no que ela chama de “ecossistema da desinformação”. Trata-se de uma rede muito bem articulada, com alto grau de financiamento – público, inclusive – e um gabinete central que produz e dispara as mensagens mentirosas para promover o caos e a desestabilização política. A partir desse conceito, ela investiga a produção, o consumo e o disparo em massa de informações falsas. “Para uma postagem viralizar, primeiro ela tem de ser produzida, e essa produção precisa de gente trabalhando, de recursos, de organização, elas não surgem de forma aleatória. Quando esse ecossistema for investigado, vai aparecer não só financiamento privado, mas também investimento público bastante intenso”, denuncia.

As publicações oriundas dos EUA demonstram que, com o cerco se fechando no Brasil, muitos responsáveis por essa rede de desinformação começam a fugir do país. Santana cita o caso de Allan dos Santos, o influencer foragido da Justiça brasileira, que acaba de ter o passaporte cancelado por determinação do Supremo Tribunal Federal, e da deputada federal Carla Zambelli, que também buscou refúgio nos EUA depois de perseguir, com uma arma em punho, um jornalista negro nas ruas de São Paulo às vésperas do segundo turno das eleições. “No exterior, esses influenciadores continuam espalhando informações mentirosas.”

Na avaliação da pesquisadora, a principal forma de enfraquecer o ecossistema de desinformação é cortar pela raiz, ou seja, rastrear e punir quem financia essa rede. “As ações de Alexandre de Moraes contra os financiadores das milícias digitais e dos atos antidemocráticos é muito importante, porque a produção e a distribuição dessas fake news envolvem muito dinheiro. Ir para cima dos patrocinadores fere o sistema. Vai ser interessante observar, depois de 1º de janeiro, como essa turma vai ficar sem o respaldo da máquina federal. Acredito que vai bagunçar um pouco.”

Barril de pólvora. Os bolsonaristas tendem a se radicalizar, alerta Nemer – Imagem: Dan Addison/Virginia Universty

CartaCapital acompanhou alguns grupos bolsonaristas no Telegram no mesmo período da pesquisa do Observatório das Eleições. Os grupos chegam a reunir dezenas de milhares de usuários. Há diferentes níveis de desinformação: desde a mentira mais escabrosa, totalmente desconectada da realidade, até fake news mais palatáveis, baseadas na distorção de fatos.

No dia que as Forças Armadas divulgaram o seu relatório sobre a auditoria das urnas eletrônicas, por exemplo, a movimentação nos grupos foi intensa. Poucos minutos depois da divulgação, pipocavam centenas de “notícias” de sites obscuros, alegando que a fraude eleitoral havia sido confirmada. Cascata. Os militares não encontraram sequer um indício palpável de crime. Alguns administradores de grupos ainda insinuavam que havia detalhes sórdidos da bandalheira, mas que não podiam ser revelados por ali, por “razões de segurança”. Com as punições impostas a Allan dos Santos e outros mitômanos profissionais, a paranoia de estarem sempre sendo vigiados pelos ministros do Supremo era explorada à exaustão.

Em um dos grupos, apenas 20 minutos após a divulgação do relatório, o administrador publicou um link que levava para uma plataforma de videoconferência fora do Telegram. Ele dizia tratar-se de uma “medida de segurança”, pois precisava falar com os seguidores sobre um tema que poderia ser “censurado pelo STF”. Para manter a integridade do grupo, o assunto não poderia ser rastreado.

Sem a presença de Bolsonaro, seus seguidores podem começar a agir por conta própria e de forma violenta

David Nemer, professor do Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, nos EUA, também monitora grupos bolsonaristas no Telegram e no WhatsApp desde 2018. O especialista garante que esse ecossistema é comandado por um “gabinete do ódio”, tal como foi denunciado pela jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. “Esse gabinete nada mais é do que um grupo de WhatsApp a reunir o pessoal do Palácio do Planalto. Por lá, eles pautam qual vai ser o debate do momento, o ataque ou o cancelamento do momento. É tudo combinado.” E o modelo estende-se a outras plataformas: “Tem muitos influenciadores da extrema-direita, a exemplo de Guilherme Fiuza e Rodrigo Constantino, essa turma mais raivosa do Twitter, que combinam o assunto que pretendem pautar na bolha deles. É um grupo bem articulado”.

Muitos dos atos golpistas que se espalharam pelo País após as eleições foram articulados através desses grupos, seguindo um modelo importado dos EUA. “Trump esperava um levante popular para se manter no poder. Essa foi a mesmíssima tática adotada por Bolsonaro. Até o seu silêncio é calculado, é uma forma de atiçar seus apoiadores por um golpe sem que ele próprio se exponha.” O efeito colateral, observa Nemer, é que os administradores dos grupos bolsonaristas começaram a ficar perdidos. Eles sempre esperaram uma sinalização do capitão para propagar suas narrativas. Sem a presença do líder há o risco de os extremistas passarem a agir sozinhos, e de forma cada vez mais violenta. “Eles precisam de fatos novos para manter a base animada, mas Bolsonaro não pode mais criá-los.”

O problema é que, depois da radicalização, os extremistas não costumam retroceder. A psicanalista Maria Rita Kehl afirma que esse fenômeno deve ser observado principalmente pelo viés da luta de classes, mas, dado o tom delirante das manifestações, as lentes da psicanálise também podem ajudar a compreender o que acontece. “Sem Bolsonaro presidente, esses grupos não terão a mesma força, é verdade. Mas esse movimento de extrema-direita saiu do armário e não pretende voltar tão cedo”, afirma a especialista. “É um fenômeno parecido com a quebra de um tabu. Depois de você superar um, ele jamais voltará a te assombrar.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Com as digitais de Steve Bannon”

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