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Colcha de retalhos

Os parlamentares preparam novo remendo à legislação eleitoral brasileira, cada vez mais disfuncional

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Colcha de retalhos
Em busca de consenso. O relatório do deputado petista Rubens Pereira Júnior foi modificado diversas vezes – Imagem: Vinícius Loures/Ag. Câmara e Zeca Ribeiro/Ag. Câmara
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Uma reforma eleitoral feita em prazo exíguo, menos de 20 dias, deu origem a um texto polêmico que passou por várias alterações até chegar à versão final e cujo objetivo é remendar a legislação eleitoral em vigor. Paralelo a isso, uma Proposta de Emenda Constitucional pretende abonar uma dívida bilionária dos partidos políticos que não cumpriram a lei ao não repassar 30% da verba do fundo partidário para as candidaturas femininas e de pessoas pretas e pardas nas eleições do ano passado. As duas matérias formam um combo de retrocessos que tramita de forma célere na Câmara dos Deputados para que possa valer no pleito do ano que vem, quando serão eleitos prefeitos e vereadores dos mais de 5 mil municípios brasileiros.

A minirreforma eleitoral entrou na pauta para votação em plenário da Câmara na quarta-feira 13, mesmo dia em que estava prevista a votação da PEC da Anistia, como está sendo chamada, na Comissão Especial criada para discutir o tema. A sessão chegou a ser iniciada, mas, depois da troca de farpas entre deputados do PL e do PSOL, a votação foi suspensa e adiada para 19 de setembro – depois disso, ainda precisa passar pelos plenários da Câmara e do Senado. Sobre a minirreforma eleitoral, desde o primeiro momento, o relator do texto, deputado Rubens Pereira Júnior, do PT, afirmou que só entrariam no seu parecer temas consensuais tanto no Grupo de Trabalho quanto entre o conjunto dos parlamentares. Mas não foi bem isso o que se viu.

As mudanças incluem perdão bilionário das dívidas de partidos e retrocessos no sistema de cotas

A cada reunião entravam pontos novos e saíam outros polêmicos. Na segunda-feira 11, na votação do parecer no GT, o petista precisou retirar do documento alguns tópicos que geravam divergência no colegiado e, na terça 12, o colégio de líderes voltou a mexer no relatório, aprovando uma nova versão. Na noite de quarta, a matéria ganhou caráter de urgência e foi encaminhada para o plenário, dispensando a necessidade de dois turnos de votação. Fatiada em dois projetos, o PLC 192/2023 e PL 4438/2023, a minirreforma chegou a ser retirada da programação para ser votada na quarta-feira, devido ao trancamento da pauta por conta do PL que trata da regulamentação das apostas esportivas, mas, após uma manobra do presidente da Câmara, Arthur Lira, a matéria entrou novamente em discussão. Até o fechamento desta edição, a votação ainda não havia sido concluída.

Aprovado em plenário, com 367 votos favoráveis e 86 contra, o texto-base do PLC altera a Lei Complementar 64, de 1990, no ponto que trata especificamente sobre inelegibilidade e desincompatibilização. Pela proposta, há uma redução no prazo de inelegibilidade, flexibilizando a Lei de Ficha Limpa. Hoje, quem for cassado fica inelegível pelo resto do mandato e por mais oito anos. Na minirreforma, o prazo contaria somente a partir da perda do mandato. No caso de políticos indiciados por crimes comuns, eles só ficariam inelegíveis após a condenação final. Atualmente, ficam inelegíveis durante cumprimento das penas e por mais oito anos.

Senado. Pacheco prometeu colocar os projetos em votação antes de o prazo expirar – Imagem: Roque de Sá/Ag. Senado

No rol da lei ordinária, constam temas como federações partidárias, prestação de contas, propaganda eleitoral, registro de candidatura, financiamento de campanhas, violência política contra a mulher e pesquisa eleitoral. Um dos pontos que vêm sendo criticados no PL é o tópico que desobriga o candidato a realizar prestação de contas parcial no decorrer da campanha, como é hoje, ficando obrigado a fazê-la apenas ao final do processo eleitoral. No relatório de Pereira Júnior, os partidos que compõem federações não são obrigados a cumprir individualmente a cota mínima de 30% de candidaturas femininas, desde que no somatório da agremiação esse porcentual seja contemplado. Numa lógica inversa, as sanções para as legendas que transgredirem a legislação serão específicas para cada partido, não atingindo a federação em sua totalidade. Também faz parte do projeto a autorização de doação via Pix por pessoa física, mesmo que a chave não seja o CPF do doador. Pela proposta, o Banco Central ficaria responsável de repassar à Justiça Eleitoral os dados dos financiadores das campanhas.

“Alguns temas polêmicos surgiram e fizemos questão de afastá-los, como, por exemplo, a volta do financiamento empresarial, a janela partidária extemporânea e a redução dos repasses das cotas negras e femininas. Demos preferência aos temas mais consensuais a garantir pequenos ajustes de forma a ­aperfeiçoar o modelo político eleitoral brasileiro”, explicou Pereira Júnior. “A minirreforma tem um erro de origem, que é o tempo de implementação. O GT foi instalado em 23 de agosto, muitas reuniões foram feitas a portas fechadas e ainda circularam várias versões do projeto. O atropelo nas discussões e a falta de diálogo são aspectos refletidos no texto, que abre uma série de brechas”, rebate Arthur Mello, articulador político do Pacto pela Democracia, citando como exemplo a proposta que estabelecia “multa como sanção alternativa e menos gravosa à cassação do diploma, a depender da gravidade do caso concreto analisado pela Justiça Eleitoral”, proposta aprovada no parecer do relator, mas retirada pelo colégio de líderes.

Presidente do Instituto Vox ­Populi, o sociólogo Marcos Coimbra critica a quantidade de reformas eleitorais que vem acontecendo ao longo dos anos e defende uma revisão constitucional para um aprimoramento na legislação. Nos últimos dez anos, foram feitas 19 reformas eleitorais, o que Coimbra define como um “amontoado de remendos”. A última foi a revisão do Código Eleitoral, aprovado na Câmara em 2021, mas que segue pendente no Senado. Há a expectativa de que os senadores votem o Código juntamente com a minirreforma eleitoral. Interessado na mudança da legislação, o presidente do PSD, Gilberto­ ­Kassab, entrou no circuito e se reuniu com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, seu colega de partido, para garantir a votação da minirreforma e da PEC da Anistia antes do prazo final.

“A regra geral é a opacidade, as pessoas comuns não conseguem entender”, critica Marcos Coimbra

“Vamos tomar como referência a Constituição, que procurou organizar uma legislação eleitoral confusa que tínhamos e leis feitas para cada eleição, um sistema de leis e regras eleitorais cuja característica principal era a opacidade, as pessoas não conseguiam entender. Em razão disso, criava-se uma grande desconfiança em relação às regras do jogo, porque elas pareciam invenções de última hora, que não atendiam às expectativas das pessoas”, pondera Coimbra. “Desde a década de 1980, pouco se andou na direção de corrigir esses problemas da legislação eleitoral. Ficamos inventando, a cada eleição, novas regras, discutindo com pressa, gerando um sistema político em que ninguém confia em ninguém. É mais um remendo, uma opacidade que esconde o jogo mais rasteiro da política e isso não muda”, completa.

A sobra de votos nas eleições proporcionais foi, de longe, o ponto que gerou mais divergência dentro do Grupo de Trabalho e deverá ser discutido nos destaques durante a votação em plenário. Atualmente, para disputar essa sobra, o partido precisa ter ao menos 80% do cociente eleitoral e o candidato, 20%. Na nova proposta, o cálculo é 100/10, ou seja, a legenda tem de atingir 100% do cociente e o candidato, 10%. “O que foi feito no Grupo de Trabalho foi observar uma lógica eleitoral colocada nas eleições de 2020 e 2022. Nesse contexto, pequenas mudanças geram resultados grandes. Essas legislações apresentam problemas e necessitam de ajustes para corrigir questões que ficaram desreguladas em relação à regra”, explica o deputado Pedro Campos, do PSB pernambucano, membro do GT.

A PEC da Anistia, além de abonar a dívida dos partidos, abre brecha para que a cota de candidaturas de pessoas negras seja reduzida. Pela jurisprudência do TSE, o porcentual a ser repassado a essas candidaturas é proporcional ao número de pretos e pardos que postulam uma vaga. Na PEC, esse índice ficaria limitado a 20%. As aberrações da PEC da Anistia e da minirreforma devem ser judicializadas. O PSOL, única agremiação, juntamente com o Novo, a ser contra a abonação dos partidos irregulares, promete entrar com uma ação no STF contra os retrocessos. •

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

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