Política
Cobre-me se for capaz
Brasileiros saem do País para escapar das dívidas. Enquanto influenciadores ensinam rotas de fuga
No Brasil, os abastados sempre fugiram para o exterior quando seus impérios desmoronaram. O ex-banqueiro Salvatore Cacciola, o empresário Eike Batista e, mais recentemente, o ex-presidente da Americanas, Miguel Gutierrez, são alguns dos notórios “fujões”. A novidade agora é que pequenos falidos da classe média também enxergam no aeroporto a única saída para se livrar dos pepinos financeiros. Donos de pequenas empresas e até estudantes que se afogam em dívidas preferem dar no pé a encarar os papagaios, como se fossem foragidos financeiros.
De Valparaíso de Goiás, o ex-proprietário de uma pizzaria, Leonardo Avelino de Albuquerque, é um deles. Albuquerque abriu as portas em novembro de 2020, apostando no fim da pandemia. Não foi o que aconteceu e ele teve de tomar empréstimos. Esticou a vida da empresa até 2022, quando não aguentou mais. Acumulou 50 mil reais em contas de luz, cartão de crédito e impostos atrasados. Depois de três anos de juros e multas, a dívida atingiu 300 mil. Encurralado e cansado de fugir de credores (até a energia de sua casa foi cortada), o pequeno empresário pegou mala e cuia e mudou-se com a esposa para Portugal. Vendeu o carro e não deu tchau nem para os parentes, conta uma prima. Comprou a passagem com cartão de crédito… E não pagou. Agora está fora do alcance dos credores. Não porque os passivos expiraram, mas por uma questão de custo: cobrar alguém no exterior sai caro.
A conta começa com a localização do devedor. Sem saber onde os caloteiros estão, muitos credores contratam detetives. “A procura por esse tipo de serviço tem aumentado muito”, diz Victor Minori Ishiy, detetive associado à World Association of Detectives, a entidade mundial dos profissionais do setor. Ishiy cobra cerca de 3 mil reais para localizar o devedor ou os bens dele no Brasil, num caso simples. Buscas mais elaboradas podem chegar a 15 mil. O segundo passo seria acionar o Poder Judiciário do país para o qual o devedor fugiu. As cartas rogatórias são o instrumento usado pela Justiça brasileira. “Cobrar uma dívida no exterior sai caro e não vale a pena se o total em aberto for pouco. Dificilmente a Justiça vai atrás de quem deve, por exemplo, menos de 1 milhão, 10 milhões de reais”, afirma Tatiana Cappa Chiaradia, sócia da área tributária do escritório Cândido Martins Cukier Advogados, em São Paulo.
Para muitos, a única saída é o aeroporto
Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal decidiu que devedores fugidos do País podem ser punidos com a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação e do passaporte e o bloqueio de cartões de crédito, desde que uma ação com esses pedidos seja aberta pelo credor. Mas a Corte determinou que as retaliações não podem ser usadas para dívidas de “valor irrisório” sem, no entanto, especificar um montante. Na prática, o Judiciário faz vista grossa para quem tem poucas dívidas e foge para o exterior. “Para quem deve pouco realmente não se estabelecem restrições de nenhum tipo que possam impedi-lo de migrar”, diz Rabih Nasser, doutor em Direito Internacional e professor de Arbitragem e Direito do Comércio Internacional na FGV Direito SP.
Na outra ponta do problema estão os juros no Brasil. Com a Selic a 15% ao ano, temos a maior taxa desde 2006. Quem deve o cartão de crédito chega a pagar mais de 450% de acréscimos financeiros em 12 meses, fora multas e encargos, segundo o Banco Central. E isso acontece mesmo após a Lei 14.690, que instituiu, em 2023, limite de 100% de juros e encargos para o rotativo, simplesmente porque a legislação não define um prazo para esse teto. O que é bem diferente de fixar um limite de 100% ao ano. Então, na prática, o cliente só tem a lei aplicada quando sua dívida dobra de valor. Isso não chega, no entanto, a acontecer. Desde 2017, uma regra do BC impede o cliente de ficar mais de 30 dias no rotativo. Após esse período, os bancos são obrigados a oferecer outra linha de crédito, com condições “mais suaves”. A cilada mora aí: ao migrar a dívida do rotativo para o empréstimo pessoal, por exemplo, as instituições financeiras ficam livres de qualquer limite de taxas.
Aula. Jo Jo Domingos não pagou a passagem aérea – Imagem: Redes Sociais
Por isso, para Albuquerque, mesmo começando com uma mão na frente e outra atrás em Portugal, ir para o exterior foi como tirar um novo CPF e começar a vida financeira do zero. Essa possibilidade também levou o empresário Gabriel Victor de Araújo a se mudar para a Flórida, nos Estados Unidos. Há dois anos, ele vendeu sua parte na sociedade que tinha em uma barbearia em São Paulo e partiu com a família para Miami. Deixou para trás cerca de 260 mil reais em dívidas com bancos e títulos protestados na Justiça. Sua ficha na Serasa, empresa de proteção ao crédito, atualmente ultrapassa os 410 mil, conforme apurou CartaCapital. Araújo não quis se pronunciar.
A vida dos foragidos financeiros geralmente é bem discreta, sem muitos contatos ou ostentação em redes sociais. Nem Araújo nem o goiano Albuquerque deram detalhes de onde trabalham ou o bairro onde moram. Os dois também temem a perseguição contra imigrantes ilegais, que se acirrou tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.
Deixar para trás família, casa, amigos é uma decisão drástica. Para quem tem medo ou receio, influenciadores no TikTok fazem tudo parecer bem simples. “Será que eu posso sair do Brasil com o nome sujo, devendo SPC e Serasa? Chama os endividados, que a vez deles chegou. Gratidão!”, propaga em um de seus vídeos a influenciadora porto-alegrense Josiane Domingos, a Jo Jo Domingos, que mora atualmente na Espanha. Jo Jo dedica-se a indicar o caminho das pedras para quem quer morar na Europa aos seus 3,2 milhões de seguidores e diz que, quando deixou o Brasil, também parcelou a passagem no cartão e não pagou. “Comentei isso nos meus vídeos porque é a realidade de muitos brasileiros. Mas isso aconteceu há muitos anos”, afirma.
A influenciadora Jo Jo ensina o caminho das pedras. Tem mais de 3 milhões de seguidores
O paulistano Leonardo Costenaro, agora em Dublin, na Irlanda, também fala nas redes sociais a respeito de sua situação, sem constrangimento. “Eu deixei dívidas no Brasil, mas não sou cara de pau de sair do País devendo para pessoa física. Pessoas jurídicas, o que tenho a ver com elas?”, publicou recentemente no X, o antigo Twitter. Costenaro aceitou conversar com a reportagem, descontraidamente. Disse que vive e trabalha em Dublin fazendo entregas. Já chegou a trabalhar com moderação de conteúdo nas redes sociais. Tem até um cachorrinho. Mesmo assim, faz planos de retornar ao Brasil. “Quando eu voltar, as dívidas já vão ter expirado.”
Não é, porém, exatamente o que diz a lei. “Quando a Justiça não encontra bens ou o endereço dos inadimplentes, pode acontecer a prescrição das dívidas se houver inércia do cobrador por mais de cinco anos”, explica Tatiana Cappa. Ou seja, o cobrador precisa ficar cinco anos sem fazer contato de cobrança com o devedor. Mesmo assim, os débitos não evaporam. O credor pode cobrá-las por conta própria, à margem do Poder Judiciário. Ou seja, continuam existindo e os juros, correndo. E o CPF também não fica liberado. “Para liberar, é preciso ter o reconhecimento da extinção das dívidas em juízo e isso só acontece se elas forem pagas.”
A empresária Cláudia (que pediu anonimato) fugiu para Portugal em 2023. Acreditando na prescrição dos débitos, fechou um bufê de festas e uma clínica veterinária, em Suzano, na Grande São Paulo, e deixou para trás 100 mil reais em dívidas. Mas a viagem não foi como esperava. “Não consegui trabalho lá, cheguei a passar fome. Há muito preconceito e não é fácil arrumar emprego.” O pior veio depois: ela descobriu um caroço na mama. Voltou para o Brasil, desta vez para Minas Gerais, e teve o diagnóstico de câncer. Faz tratamento pelo SUS. “Nem sei quanto estou devendo e, sinceramente, nem penso nisso, não quero saber. Minha prioridade é sobreviver.” As dívidas, mais uma vez, ficaram para depois. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cobre-me se for capaz’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.


