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Cinco séculos depois…

Pela primeira vez na história os povos indígenas terão o poder de decidir sobre o seu próprio destino no País

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Funai. A posse de Joênia Wapichana (cocar branco) foi celebrada com uma pajelança - Imagem: Mauro Pimentel/AFP
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É um momento único para o Brasil após 522 anos de ausência dos povos indígenas nos processos decisórios.” Não poderia haver definição mais precisa do que a dada pela deputada federal Célia Xakriabá, do PSOL, para a grande expectativa dos 305 povos indígenas do País quanto ao início do terceiro governo Lula. A criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas e a integração da agora rebatizada Funai à nova pasta são os atos inaugurais de uma política que promete, nos próximos quatro anos, acelerar os processos de demarcação e homologação de novas Terras Indígenas (TIs) e combater crimes ambientais que atingem diretamente as populações originárias, como desmatamento, garimpo, biopirataria e narcotráfico.

A nomeação de duas reconhecidas lideranças – Sônia Guajajara e Joênia ­Wapichana – para os respectivos comandos do novo ministério e seu principal órgão executor confirmou a promessa feita por Lula de entregar aos próprios indígenas a responsabilidade pela execução das políticas públicas para o setor. O presidente deve anunciar ainda este mês a homologação de 13 novas Terras Indígenas. Outra sinalização positiva dada por Lula foi a revogação, logo após tomar posse, do decreto, baixado por Jair Bolsonaro, que permitia atividades de mineração em TIs e em áreas de conservação ambiental, ameaçando a Amazônia e outros biomas.

Verba extra. A ministra espera que o orçamento de 800 milhões de reais aumente – Imagem: Joedson Alves/Anadolu Agency/AFP

O clima é de celebração pela histórica conquista política, mas todos sabem que haverá muito trabalho pela frente. Sem tempo nem para atender ao telefone nos últimos dias, a nova ministra monta do zero sua equipe ao mesmo tempo que luta para que o MPI, a sigla do novo ministério, tenha um orçamento que lhe permita atuar de forma efetiva. “A ideia do governo é ter um orçamento que atenda às principais demandas, mas isso ainda será definido com o presidente Lula e a Casa Civil”, comenta Guajajara. Um primeiro passo foi dado, uma vez que a Funai – agora Fundação Nacional dos Povos Indígenas – deixou o Ministério da Justiça, levando consigo um orçamento estimado para 2023 em 800 milhões de reais. “Há a promessa de que esse valor seja complementado.”

Nas conversas com Lula que antecederam a sua nomeação ao MPI, ­Guajajara reforçou que a regularização fundiária das TIs é a pedra fundamental do novo ministério. Essa importância é ressaltada por Xakriabá: “O governo deverá avançar nos processos de demarcação, tendo em vista que a sua não realização é uma das maiores responsáveis pelos conflitos territoriais”, observa a deputada. Para o coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kléber Karipuna, está dada “uma oportunidade de avançarmos, com toda a cautela necessária, na política de demarcação e proteção dos territórios indígenas, que está paralisada há mais de seis anos”. Ele ressalta que existem TIs com seus estudos realizados e prontas para ser homologadas. “O movimento indígena quer colaborar para que essa nova política saia do papel.”

Sônia Guajajara assume a chefia do novo ministério, ao qual a Funai será incorporada

Criada há 56 anos e responsável pela condução dos processos de demarcação, a Funai voltará a jogar no mesmo time dos indígenas após quatro anos de desmantelamento do órgão, desvalorização de seus servidores e conivência criminosa promovidos pela gestão anterior, comandada pelo bolsonarista Marcelo Xavier. Na segunda-feira 2, a cerimônia de posse de Joênia Wapichana, deputada federal da Rede que não se reelegeu, transformou-se em uma grande pajelança na sede do órgão, com a participação de representantes de dezenas de etnias.

Após a dança com maracás e a defumação para purificar o ambiente, os presentes prestaram homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, assassinados no ano passado por criminosos ambientais que atuam no Vale do Javari, no Amazonas. “Depois de tanta afronta e retrocesso, com o único órgão indigenista totalmente sucateado, hoje retomamos a Funai”, disse a nova presidente. O principal desafio do órgão, avisa Wapichana, será “fortalecer direitos, principalmente no que diz respeito à demarcação de Terras Indígenas”.

“Na última vez que estivemos na sede da Funai, em Brasília, fomos recebidos pela polícia com spray de pimenta e balas de borracha”, lembra Xakriabá. Ela celebra a nova etapa: “A posse foi um momento de ressignificação e de repensar o compromisso do Brasil com os povos indígenas. Pela primeira vez em 56 anos, um indígena ocupa esse lugar”, emenda a parlamentar, para quem “as nomeações de Sônia ­Guajajara e Joênia Wapichana mostram que os povos indígenas são protagonistas deste governo”. Outra deputada federal indígena eleita em outubro, Juliana Cardoso, do PT, diz que, “além de melhorar a capacidade de demarcação, fiscalização e proteção das TIs por parte da Funai, é necessário recuperar o legado construído, especialmente, nos governos de 2003 a 2016”.

Conflitos. Lula pretende fazer uma visita ao Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips foram barbaramente assassinados – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Felipe Wernecl/Funai

Kléber Karipuna conta que a vinculação da Funai ao novo ministério, embora não consensual, foi amplamente debatida antes de ser aprovada no GT da transição. “A Apib defende essa integração por entender que uma das principais bandeiras de luta dos povos indígenas, a demarcação de terras, será objeto de um trabalho qualitativo e técnico, com antropólogos e outros especialistas, inclusive do próprio movimento indígena”, diz. Ele acrescenta que “a vinda da Funai para o MPI é uma conquista que precisa ser trabalhada com responsabilidade, em conjunto com outros órgãos do governo, como, por exemplo, o Ministério da Justiça”. A saída da Funai da alçada do MJ também é considerada uma decisão acertada por Xakriabá: “Só foi decidido que a Funai ficaria com o MPI a partir de análises que garantiram a segurança jurídica, política e administrativa da mudança”.

Além do anúncio das novas Terras Indígenas, janeiro verá também o início das ações para a retirada do garimpo ilegal das reservas. De maneira articulada, o Congresso Nacional e o MPI anunciarão o lançamento de duas campanhas nacionais – “Demarcação Já!” e “Fora Garimpo!” – que devem impulsionar o processo de desintrusão dos garimpeiros dessas áreas. “Agora que os parentes indígenas estão ocupando lugares de articulação e execução, de poder segurar na caneta e ter um diálogo direto com o presidente Lula, é preciso ter a responsabilidade de retirar os garimpeiros dos territórios indígenas”, afirma Xakriabá. Ainda sem data definida, está sendo articulada também uma visita de Lula ao Vale do Javari.

Em janeiro, Lula pretende demarcar 13 Terras Indígenas e iniciar o processo de expulsão de garimpeiros ilegais

Para Karipuna, ao revogar o decreto que permitia o garimpo nas TIs, Lula mostrou à sociedade que “implementará uma política de combate a atividades nocivas, como o garimpo ilegal, a exploração madeireira, a pirataria da biodiversidade e o narcotráfico”. A expectativa dos indígenas é pela concretização de um programa de expulsão dos invasores: “O trabalho conjunto do movimento indígena com o MPI e a Funai permitirá uma cobrança para que essas medidas possam ser efetivadas. Precisamos discutir muito rapidamente a formação de uma força-tarefa envolvendo outros ministérios, além de órgãos como Ibama, ICMBio e Polícia Federal, para promover uma ação de desintrusão e paralisação completa da exploração garimpeira. Apenas a revogação do decreto não surtirá o efeito de saída imediata, principalmente nos territórios Ianomâmi e Munduruku”.

Para além do MPI e da Funai, os olhos dos povos indígenas estão voltados à atuação de Weibe Tapeba, também oriundo do movimento e novo titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde: “Atuar em parceria com ele será prioridade. Há um risco grande de a saúde indígena entrar em colapso”, alerta Sônia Guajajara. Para evitar esse esgotamento, acrescenta Juliana Cardoso, será fundamental a recomposição do orçamento do setor. “Isso se fará priorizando a reformulação dos contratos de trabalho dos profissionais e garantindo a participação e o controle social dessa população aos serviços de saúde. Trabalharemos para que os nossos povos originários tenham acesso irrestrito aos serviços públicos de saúde”, enfatiza a deputada.

Respeito. O governo quer valorizar os conhecimentos medicinais dos povos indígenas – Imagem: L.C.Nunes Oliveira/Sesai/MS

Outra medida ambicionada é a formação de agentes indígenas de saúde. “O governo estimulará programas de capacitação em todas as áreas de atuação, para que possamos garantir atendimento de qualidade”, diz Cardoso. Inicialmente, esse atendimento será realizado nos 34 Distritos Sanitários Indígenas do País sob a coordenação da Sesai. “É importante reconhecer os conhecimentos medicinais dos povos originários, potencializando, por exemplo, o programa Farmácia Viva, com o intuito de valorizar os saberes dos nossos antepassados.”

Em 2023, a participação indígena no Parlamento também é recorde. No Senado, há os autodeclarados indígenas Wellington Dias, do PT, agora ministro do Desenvolvimento Social, e Hamilton Mourão, eleito senador pelo Republicanos. Na Câmara dos Deputados, a eleição de cinco novos parlamentares indígenas fez nascer a “Bancada do Cocar”. Além de Xakriabá e Cardoso, foram eleitos Paulo Guedes, do PT, e Silvia Waiãpi, do PL, a única de direita, que comandou a Sesai durante o governo Bolsonaro. Completa a bancada a própria Sônia ­Guajajara, que deixou o mandato para assumir o MPI. A ausência da nova ministra, assim como a de Wapichana, é minimizada por ­Xakriabá: “A Bancada do Cocar não se dilui. Ao contrário, ela está espalhada em outros espaços importantes”. A deputada diz considerar “fundamental o momento de ‘poder fazer’ proporcionado pela criação do MPI”, mas ressalta que a luta nas ruas não será abandonada: “Se as nossas vozes não forem suficientes do lado de dentro, vamos continuar convocando o movimento indígena do lado de fora”.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena ficará sob o comando de Weibe Tapeba

Além de atuar para derrubar o PL 191, que regulamenta garimpo em TIs, e se colocar de forma contrária aos diversos projetos bolsonaristas que atentam contra o meio ambiente, a maioria da Bancada do Cocar pretende ser propositiva. Entre os projetos elencados estão aqueles que tratam de temas como demarcação dos territórios indígenas, fortalecimento das políticas públicas para os indígenas isolados, ampliação da política de acesso e permanência para o ensino superior, criação de programa específico de segurança alimentar, acesso ao programa de moradia que atenda às necessidades de cada povo, valorização da língua e dos saberes indígenas na escola, valorização da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas e criação do Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas.

As lideranças que compõem a Apib esperam o início de um período de colaboração e boa vontade política: “Nossa expectativa é de que, com os nossos quadros técnicos qualificados, consigamos fazer um bom trabalho nesses espaços que vamos ocupar dentro do governo e que tratarão verticalmente da realidade dos povos indígenas”, diz Karipuna. Ele pondera, porém, que os indígenas devem permanecer atentos: “Queremos manter o movimento aguerrido e combativo, para que consiga ajudar os parentes que estarão no governo e, quando for necessário, possa fazer cobranças para que as ações sejam realizadas a contento”. A hora, diz o coordenador, é também de manter os pés no chão. “Sabemos do enorme desafio que será implementar a pauta indígena dentro de um governo de ampla coalizão, com diversos atores. Inclusive alguns com os quais temos sérios problemas, como o agronegócio. Mas já tivemos, nestes primeiros dias, sinalizações muito positivas do presidente Lula. Acredito que estejamos iniciando um ciclo positivo para os povos indígenas no Brasil.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cinco séculos depois… “

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