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Cifras do ódio

Estudo da FGV mostra como a misoginia se tornou um lucrativo negócio nas plataformas digitais

Cifras do ódio
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Estratégia. Os influenciadores consolidam uma base de seguidores antes de começar a oferecer produtos e serviços, observa a pesquisadora Julie Ricard – Imagem: Redes Sociais/Data-Pop Alliance e Miguel Schincariol/AFP
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“Pra mim, você não nega”, dizia Thiago da Cruz Schoba enquanto agredia a então namorada, no sábado 29. A vítima conseguiu filmar a agressão e fugir, enquanto acionava a polícia. Por sorte, encontrou uma viatura na rua e foi socorrida. O agressor foi preso em flagrante, acusado de tentativa de estupro e violência doméstica, mas acabou liberado no dia seguinte, durante uma audiência de custódia. Um laudo do Instituto Médico Legal apontou diversos ferimentos e hematomas no rosto, braços e pernas da mulher. Schoba é um ­influencer digital red pill conhecido nas redes como Thiago Schutz ou “Calvo do Campari”. Ele se apresenta como palestrante, escritor e coach, mas na prática ocupa espaços digitais para ensinar homens inseguros a “domar as mulheres”. A misoginia travestida de autoajuda é um negócio lucrativo: uma hora de mentoria pode custar até 2 mil reais.

“Thiago Schutz é a versão ­mainstream desses influenciadores ultramisóginos, mas, ao investigar esse ecossistema, vimos que ele é muito maior e mais organizado do que se imaginava”, afirma a pesquisadora Julie Ricard, responsável pelo estudo Redes de Ódio e Violência Contra Mulheres, do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas da Fundação Getulio ­Vargas. A pesquisa mapeou 85 comunidades abertas no Telegram, que somam mais de 220 mil usuários, e revelou que esse universo cresceu 600 vezes no Brasil entre 2020 e 2025.

No estudo, foram identificadas cinco categorias principais: “Identidades masculinistas”, “Desenvolvimento pessoal masculinista”, “Guerra cultural”, “Misoginia” e “Criptos e investimentos”. Ao cruzar dados desses grupos, os pesquisadores encontraram um ecossistema sofisticado que combina radicalização misógina, monetização e conexões com movimentos conspiracionistas e neonazistas. A categoria “Misoginia” é a que mais gera engajamento, superando 2,6 milhões de comentários.

A “machosfera” reúne 220 mil brasileiros no Telegram e funciona como ponte para grupos neonazistas

Os produtores de conteúdo não buscam apenas likes e seguidores. “A lógica é a mesma de outros influenciadores: primeiro se cria uma comunidade em torno de uma identidade e, depois, essa base é monetizada com a venda de serviços e produtos”, explica a pesquisadora. Os masculinistas oferecem cursos, mentorias, livros e diferentes infoprodutos, além de “desafios” pagos e até expedições, como os “Legendários”, em que homens sobem montanhas em busca de uma “melhor versão” de si mesmos.

Nem todas as comunidades atacam mulheres de forma explícita. Muitas se organizam em torno de pautas como negacionismo climático, teorias antivacinas, sobrevivência em cenários apocalípticos, terraplanismo, reptilianos e outras delirantes conspirações. Ainda assim, há uma troca constante de links e conteúdos entre esses grupos, o que os conecta diretamente a espaços de ­“anti-woke e gênero”, “revisionismo e discurso de ódio” e até “neonazismo”. Em todos, a misoginia está presente, por vezes camuflada em piadas e memes, o que cria a falsa impressão de inocência.

O ódio estende-se também a questões de raça e classe, mas atinge com particular intensidade mães solo, identificadas nos grupos pela sigla “MSol”. “Em alguns casos, o discurso é apenas de crítica ou rejeição, mas muitas vezes é extremamente violento”, afirma Ricard. O mais alarmante, segundo a pesquisadora, é que essa violência frequentemente transita do meio digital para o mundo real. Um exemplo extremo ocorreu em São Paulo: uma mulher foi atropelada e arrastada por mais de um quilômetro pelo ex-companheiro, e teve as duas pernas amputadas devido à gravidade dos ferimentos. Mãe de dois filhos, de 12 e 7 anos, ela é vítima de um crime que chocou o País e evidencia de forma dramática a propagação desse ódio nas redes.

Macho alfa. Thiago Schutz não hesita em demonstrar sua “valentia” contra as mulheres – Imagem: Redes Sociais

O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de países que mais matam mulheres. Só neste ano, já foram registrados mais de mil feminicídios, segundo dados do Ministério da Justiça, aumento de 26% em relação a 2024. Entre janeiro e junho, o Observatório da Mulher Contra a Violência, do Senado, contabilizou 33.999 estupros – média de 187 por dia.

O pesquisador Ergon Cugler, coautor da pesquisa da FGV, explica que essas comunidades funcionam como uma “porta de entrada” para a radicalização e ingresso em grupos neonazistas. “Temas mais brandos, como globalismo, são a isca”, diz. Uma vez integrado ao grupo, o indivíduo pode rapidamente ser atraí­do por ideologias extremistas. Paralelamente, a monetização da machosfera se dá por meio de discursos voltados a “investidores”, explorando a associação entre sucesso financeiro e a reafirmação da masculinidade tradicional, acrescenta Cugler.

Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, explica que a tendência à radicalização, ou mesmo entrar nesses grupos, está ligado a uma crise de identidade masculina, o “sentir-se deslocado”. “Como as gerações anteriores resolviam isso? ‘Eu estou perdido, encontro outros perdidos’. Havia o grupo dos enjeitados”, observa. O comportamento toma outro rumo ao migrar para o ambiente digital. “A internet oferece uma solução semelhante, tornando-se o espaço onde o indivíduo encontra reconhecimento”, afirma Dunker. Trata-se, porém, de “uma solução insalubre”, pois o anonimato e distância criam um ambiente “inconsequente e sem modulação de afeto”.

O discurso reforça que “um verdadeiro homem não tolera humilhação”. A pressão para provar que “você é macho mesmo”, aliada à hipertrofia de ideai­s masculinos, torna cada vez mais difícil agir como uma pessoa comum, explica o psicanalista. Em muitos casos, esse mecanismo deságua em uma “resposta brutal, violenta”, materializando o ódio digital no mundo real ao romper as barreiras de mediação.

Acusado de violência doméstica e tentativa de estupro, o “Calvo do Campari” cobra até 2 mil reais por hora em suas “mentorias”

Doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas, Bruna Camilo estuda a machosfera desde 2021 e observa que a radicalização nesses quatro anos foi avassaladora. “No começo, red pill era só uma palavra, agora é um movimento.” Ela afirma que a violência digital frequentemente se transforma em física e destaca que a maioria dos autores de crimes de ódio contra mulheres tem entre 18 e 40 anos, uma geração marcada pelo ambiente digital. Embora o conteúdo de comunidades fechadas seja difícil de acessar, há uma “reação em cadeia”: quando ocorre um crime, outros rapidamente se seguem.

Segundo a advogada Camila ­Duarte, fundadora da página ­@Direito.Dela, que oferece informação jurídica para mulheres, os conteúdos violentos, seja no ­Telegram ou em redes como Instagram, Facebook, TikTok e ­YouTube, raramente são explícitos. “Ninguém fala ‘mate uma mulher’. São discursos com pitadas de misoginia que progressivamente dessensibilizam a percepção sobre a violência”, explica. Ela ressalta que, além do lucro financeiro, o ódio pode gerar capital político. “Muitos políticos se elegem disseminando misoginia”, alerta.

Duarte defende que esse cenário exige medidas institucionais e políticas públicas urgentes, incluindo a regulação das redes sociais, que devem ser responsabilizadas por permitir a circulação de conteúdos de ódio, e a criminalização da misoginia. Há um Projeto de Lei em tramitação no Congresso que propõe alterar a Lei de Racismo para incluir a misoginia na tipificação desse crime. Segundo a advogada, a medida poderia prevenir feminicídios ao permitir barrar agressores antes que os atos se tornem fatais.

Procurado pela reportagem, Schoba preferiu não se manifestar. Sua assessoria sugeriu destacar trechos de um vídeo publicado no Instagram, no qual ele confirma as agressões, mas nega a tentativa de estupro – o conteúdo foi removido horas depois. O Telegram informou, em nota, que “conteúdos que incitem violência são expressamente proibidos” e que moderadores, com apoio de IAs personalizadas, monitoram áreas públicas e aceitam denúncias. A Meta não se pronunciou até o fechamento desta edição. •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cifras do ódio’

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