Política

Chegou o tempo do autoritarismo líquido, ensina Pedro Serrano

Vivemos momentos de exceção debaixo de uma aparência democrática

Pedro Serrano
O professor Pedro Serrano. Foto: Wanezza Soares 'A relação autoritária se estabelece mais inteligente e eficaz do que nas ditaduras do século XX, mas não menos deletéria'. Foto: Wanezza Soares
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Pedro Serrano tem o poder de pôr ordem nas minhas ideias. Trata-se de um verdadeiro professor, mais do que isso, de um pensador do Direito e todas as suas implicações, a começar pela política. Tenho um claro entendimento a respeito desde o tempo, não muito longínquo, de um debate que se deu já depois do golpe contra o governo petista em Salvador da Bahia, e do qual ambos participávamos. E foi então que Serrano abriu minha cabeça para me levar a entender o que de fato estava acontecendo. Vivíamos um regime de exceção e ele teve a generosidade de explicar como e por quê. Era o tempo que se seguiu ao impeachment de Dilma Rousseff, no início de um processo que a rigor começa com o nascimento de um trágico enredo chamado Lava Jato. 

 

Desde então, cultivo uma grande admiração por Pedro Serrano, felizmente disposto a ministrar aulas na sua coluna de CartaCapital. Se não me engano, naquele dia havia uma plateia numerosa diante de nós, e na primeira fileira sentava-se Jaques Wagner, ainda governador e futuro senador, bom amigo também, como Serrano se tornaria. Desta vez, o professor expande a sua aula: a conjuntura atual ganhou uma dimensão de maior e mais complexa do que apresentava há alguns anos. Algo, de todo modo, surge com nitidez, e entre outras coisas o fato de que meu pai também ficaria enlevado com a fala esclarecedora de Pedro Serrano.

Meu pai era um liberal da velha-guarda, ao seu modo filho da Revolução Francesa, quando esta tendência ideológica representava uma desassombrada resistência ao fascismo, que acabou por prender meu pai pela intervenção de meia dúzia de esbirros armados até os dentes. Nem por isso ele deixou de se entregar depois de borrifar sobre o rosto de barba bem escanhoada um perfume à base de citronela. Pois hoje o professor Serrano enxerga uma única, insubstituível saída do trágico momento em que precipitamos. Uma união em torno dos ideais da igualdade, da liberdade e dos valores humanistas que ainda são cultivados, aqui e acolá, em lugares por isso privilegiados.

Há um momento na fala do meu amigo que, confesso, me empolga: refere-se ele a Hannah Arendt, segundo quem o direito fundamental do ser humano é o direito a ter direitos. “Direito não é tinta no papel da Constituição, direito é sangue na calçada, sangue daqueles que morreram exatamente na conquista dos seus direitos”, afirma Serrano. A referência ao sangue na calçada traz à tona as minhas crenças sobre a impossibilidade de qualquer gênero de conciliação com a casa-grande, a chamada conciliação das elites, porque é entre elas que se dá, para a casa-grande é inconcebível qualquer entendimento com a senzala.

Mas o que são os direitos? Um pacto intergeracional entre o que já morreu, quem está vivo e quem vai nascer. “Eu tenho o dever de entregar o direito conquistado à próxima geração”, acrescenta Serrano. Os últimos lances políticos de Bolsonaro mostram a preocupação dele em relação às eleições de 2022, ou seja, o propósito da reeleição. Para tanto, o cambiante ex-capitão revisita à sua maneira medidas tomadas pelos governos petistas, no quadro de uma política assistencialista que tem evidentemente resultados positivos em um país entregue à pobreza da maioria. Assim como eu, e como tantos outros observadores da situação, enxerga com espanto a possibilidade da permanência no poder desse monumental fanático do apocalipse e do seu bolsonarismo.

“Se conceder direitos humanos, sociais, numa cultura como a nossa, que não valoriza a liberdade, correremos o risco de um longo período de um tempo ruim pela frente”, é o pensamento de mestre Serrano, que eu recebo enquanto o pássaro do desespero bate asas no meu peito. E deixo o campo livre aos pensamentos do amigo professor.

Autoritarismo líquido

O autoritarismo mudou de forma no século XXI. Trata-se, segundo a definição de Zygmunt Bauman, de um autoritarismo líquido, composto não por governos de exceção, mas por medidas de exceção no interior da democracia. Desta forma, se restabelece a relação autoritária, mais inteligente e eficaz do que nas ditaduras do século XX, mas não menos deletéria. A gente às vezes não consegue entender se estamos em uma democracia ou em uma ditadura, fica meio liquefeito… A Lava Jato teve um papel muito importante para a extrema-direita, ao caminhar dentro desse autoritarismo líquido, alçando uma figura marginal da política, Bolsonaro, a um papel fundamental. Mas quem funda o Bolsonarismo não é Bolsonaro, é a Lava Jato. Forma-se um novo bloco de poder, composto de duas facções. Uma é o bolsonarismo político, do qual fazem parte Bolsonaro mesmo, o gabinete do ódio, parcela das Forças Armadas, PMs e milícias. A outra fração é integrada por uma parte do sistema de justiça que se juntou a meios de comunicação relevantes para constituir aquilo que defino como bolsonarismo jurídico. Houve, inclusive, quem saiu do sistema de justiça e migrou para a política, na intenção de capitanear esse segmento. O caso de Moro e de Witzel é evidente. Hoje não é a oposição criando crises. 

A esquerda catatônica

A esquerda democrática está catatônica, os liberais são pouco articulados, aliás, não existe liberalismo no Brasil no sentido clássico, de fato somos nós que temos de carregar as bandeiras liberais. É por isso que eu entendo que os liberais não têm outro caminho, têm de bandear-se para a esquerda democrática. O primeiro conflito mais aparente foi o que coloca o bolsonarismo político frente a frente com o bolsonarismo jurídico, é Moro conflitando com Bolsonaro. Outro conflito importante surge com o impeachment de Witzel, a mostrar o confronto dentro do bolsonarismo jurídico entre o ex-governador do Rio e Sérgio Moro. Nesta situação vale observar que Aras liga-se a Moro porque ambos têm de combater Witzel. A sua retirada do poder por uma ordem monocrática é um atentado à soberania popular e à democracia. Mas este é hoje o jogo do poder.

A luta intestina. Deles

O que acontece hoje é uma crise política ocasionada por conflitos dentro dos blocos de poder. Nenhuma crise política é criada pelos movimentos populares, pela esquerda democrática, pela oposição liberal. Só é criada por quem figura nos blocos de poder e que os constituiu. É uma busca de hegemonia, você tem uma briga entre Witzel e Moro, uma briga entre bolsonarismo político e bolsonarismo jurídico. A extrema-direita ficou muito forte aqui no Brasil. Um usando a violência das armas, outro a violência do Estado, do Poder Judiciário. Nós, os democratas, ficamos assistindo, não conseguimos nos organizar, as lideranças não sensibilizam.

A herança escravista

É difícil prever o futuro, para usar a racionalidade é muito mais fácil em necrópsia do que em biópsia. De qualquer forma, o que me preocupa é a perda de um terreno comum pós-Segunda Guerra Mundial, que a Europa conseguiu com as Constituições italiana, alemã e espanhola. Um autor africano, Achille Mbembe, alega um conflito evidente entre humanismo e niilismo. A extrema-direita é francamente niilista. Há um solo comum na Europa, porque lá existem nações e nós ainda não temos uma nação. Tenho acompanhado a situação espanhola e lá foram adotadas medidas para universalizar o acesso às UTIs. Aqui no Brasil, eu fui ao Supremo, juntamente com outros constitucionalistas para propor justamente o conceito de uma vida não vale mais que outra. A nossa Constituição prevê, no inciso 25 do artigo 5º, a requisição de bens privados quando necessário satisfazer emergências. Trata-se de o SUS requisitar leitos privados e passar a gerir uma fila única. No entanto, até os governadores de oposição foram contra. Não acontece por acaso. Sofremos o período mais longo de escravismo. Nos Estados Unidos, assunto ainda candente, os escravos foram 400, no Brasil 4 milhões. Na década de 30, a América Latina produziu Constituições sociais, a exemplo daquela de Weimar. Nossa Constituição de 1934 foi a primeira a trazer o voto da mulher, uma série de avanços e o primeiro direito social garantido, o direito à educação. Ocorre que no artigo 138 estabelecia eugenia como princípio da educação, ou seja, excluía os negros, os índios, as chamadas raças inferiores. Aí está a razão pela qual não constituímos um projeto de nação, o que se dá por causa de uma desigualdade social brutal. É impossível contar com um terreno comum de valores se as formas de vida são tão diferentes. Mas também faltou a universalização dos direitos, que se deu na Europa após a Segunda Guerra Mundial, o ambiente mais civilizado de toda a história.

A humanização indispensável

A esquerda é frequentemente acusada de não ter levado adiante uma obra de politização popular. Eu não chamaria de politização, chamaria de humanização, de sorte a valorizar o conhecimento humanístico em geral, arte, política, filosofia. Uma das coisas mais trágicas que se deram foi a extrema pauperização do ensino de Humanas. É óbvio que a falta de democratização nos levou a perder importantes contribuições. Quanta gente nasce na favela com um talento para desenvolver raciocínios abstratos? Sempre acabamos caindo num mesmo fosso, nosso principal problema é a desigualdade social, com todas as suas consequências. A desigualdade social não prejudica somente os mais pobres, prejudica também o rico porque, se vive numa sociedade mais culta, vai se transformar também ele em um ser mais culto, como acontece nos países mais adiantados. Por que o povo não está na rua, brigando pelos seus direitos e pela democracia? Porque a população não reconheceu no Estado a fonte dos direitos.

Moral e política

No Brasil, não se valoriza a dimensão moral no sentido político. Civilização significa direito, democracia, liberdade equilibrada pela igualdade. Então, o caminho a seguir é muito claro, neste momento não há dúvida alguma quanto ao fato de que temos de nos unir contra este objeto de desprezo, mas não somente contra ele, mas também contra o bolsonarismo, este fenômeno brasileiro de extrema-direita. Vejo uma parte da esquerda agindo como se fosse governo, usufruindo já os benefícios do poder ou preparando-se para usufruí-los. Não entendeu o que de fato ocorre. A conjuntura mudou em pouco tempo e com muita radicalidade. O autoritarismo líquido é muito mais difícil de ser combatido do que o autoritarismo clássico, mesmo porque ainda não é bem conhecido e nos pega de surpresa.

A necessidade da ignorância

O processo contra Lula descumpre quase todos os valores mínimos da civilização, quando bastaria apenas um para anulá-lo com veemência. A Lava Jato é um saladão com nome de marketing que não existe nos códigos. É um tipo de mecanismo de linguagem que não passa de expediente autoritário, que permite o que eles querem. Foi assim que conseguiram que Lula não fosse candidato, com grandes chances de vitória. Se assim fosse, o caminho do País teria sido outro. Hoje, eles operam assim, a gente tem de ter clareza a esse respeito. A ignorância é necessária a esse desenho, porque eles precisam de um déficit cognitivo para se manter no poder. Algo subsiste na crítica a Hobbes ao imaginar um Estado baseado na ideia da segurança e, portanto, a depender sempre da figura do inimigo, porque, se houver paz, perde sentido para existir como soberano. Bolsonaro é isso, precisa de violência e se baseia no senso comum, o maior inimigo da ciência, do saber e do conhecimento. O senso comum olha para o céu e constata a presença de estrelas, a ciência vem e esclarece que se trata de corpos celestes distantes 2 bilhões de anos-luz do nosso planeta. O senso comum opera com a aparência das coisas, como se a verdade estivesse nela. Daí a conveniência do déficit cognitivo. Por isso eles lutam para que os indivíduos permaneçam ignorantes, ou que se aprofundem na ignorância.

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