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Fundos estrangeiros avançam sobre o saneamento no Brasil com fartos incentivos fiscais

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Exemplo. A BRK captou 4 bilhões de reais no mercado com benefícios fiscais, mas só investiu 904 milhões até agora – Imagem: Redes Sociais/BRK Ambiental
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O saneamento básico é um dos mais relevantes indicadores de desigualdade no Brasil. Em 2023, apenas 60% da população tinha acesso à rede de esgoto, um reflexo principalmente da precariedade desse serviço na zona rural, onde a cobertura atingia apenas 6% dos habitantes. A universalização do saneamento ainda é um objetivo distante, especialmente para os brasileiros mais pobres e os moradores de pequenos municípios das regiões Norte e Nordeste.

A solução proposta pelo governo brasileiro nos últimos anos tem sido a transferência dos serviços de saneamento para a iniciativa privada, com a promessa de aumento nos investimentos. Em 2020, foram aprovadas alterações no Marco Legal do Saneamento Básico, que incentivaram o processo de privatização, por meio da realização de leilões para concessões com duração média de 30 anos.

Nos últimos cinco anos, mais de 30 leilões foram realizados, muitos deles estruturados pelo BNDES. Como resultado desse processo, seis das dez maiores companhias de saneamento do País já estão sob controle privado, evidenciando uma tendência de oligopolização do setor por um número reduzido de empresas.

A agenda de estímulo aos investimentos privados em serviços públicos inclui a criação de um incentivo tributário por parte do governo federal: as debêntures incentivadas. Trata-se de empréstimos contraídos por empresas no mercado de capitais sem intermediação de bancos ou outros agentes financeiros. Desde 2011, com a aprovação da Lei nº 12.431, debêntures destinadas ao financiamento de projetos de infraestrutura considerados prioritários pelo governo federal passaram a contar com benefícios fiscais. Além do saneamento básico, setores como energia e mobilidade urbana também integram essa lista de prioridades.

A combinação do atual Marco Legal e das debêntures incentivadas criou um fenômeno que deturpou o objetivo inicial do incentivo fiscal: em vez de apoiar a expansão e a qualidade da infraestrutura de saneamento brasileira, as debêntures incentivadas estão sendo utilizadas para promover a privatização do setor.

As empresas privadas de saneamento básico, muitas delas controladas por fundos estrangeiros, vêm captando recursos no mercado brasileiro, com apoio de incentivos fiscais, não para investir em nova infraestrutura, mas para adquirir ativos ou rolar dívidas já existentes. Dos 38,9 bilhões de reais em debêntures incentivadas emitidas desde 2017, ao menos 21,1 bilhões – 54% do total – tiveram como destino primário ou secundário o pagamento total ou parcial de outorgas em leilões de concessão ou privatização de serviços de saneamento. Esses dados constituem o principal achado do estudo O Sequestro do Financiamento do Saneamento Básico do Brasil, realizado pelo Centre for International Corporate Tax Accountability and Research (Cictar) em parceria com a Internacional de Serviços Públicos (ISP), a Confederação Nacional dos Urbanitários (CNU) e o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente da Bahia (Sindae–BA).

Um exemplo de como esse processo vem ocorrendo é o caso da BRK Ambiental, empresa criada, em 2017, a partir da compra da Odebrecht Ambiental pelo fundo canadense Brookfield – um dos maiores fundos de investimento do mundo, responsável pela administração das aposentadorias de milhões de trabalhadores daquele país. Atualmente, 70% da BRK pertence à Brookfield, enquanto os 30% restantes são do Fundo de Investimentos do FGTS (FI–FGTS), fundo público que gerencia recursos de milhões de trabalhadores formais brasileiros. Hoje, a BRK Ambiental Participações possui 21 subsidiárias – entre concessões, parcerias público-privadas (PPPs) e privatizações – e administra serviços de saneamento em 143 municípios brasileiros.

De 2017 a 2024, a BRK Ambiental dobrou seu faturamento e o valor de seus ativos. Em 2022, foi avaliada por seus acionistas em 10 bilhões de reais, mais de três vezes o valor pago pela empresa na época da compra. Apesar disso, a companhia apresentou lucros ínfimos, ou até negativos, ao longo do período, reflexo de seu alto nível de endividamento. Nos oito anos de operação, a BRK Ambiental emitiu 18,3 bilhões de reais em dívidas, a maior parte por meio de debêntures. Esse endividamento resultou, em 2024, em mais de 1 bilhão de reais pagos em juros, valor superior ao que a empresa destinou a investimentos ou à sua folha de pagamento.

Estudo revela uso de debêntures incentivadas para pagar outorgas de concessões, em vez de financiar a expansão da infraestrutura

Parte dessa dívida foi contraída para financiar a própria privatização dos serviços públicos. A principal expansão da BRK Ambiental até hoje ocorreu em 2020, com a vitória no leilão da concessão da Região Metropolitana de Maceió (RMM), garantida por um lance de 2 bilhões de reais, valor muito superior ao das propostas concorrentes. No entanto, em vez de utilizar recursos próprios, a empresa financiou o lance por meio de uma debênture de 1,8 bilhão de reais, posteriormente refinanciada por uma debênture incentivada, emitida em 2022. Apesar de ter como finalidade o refinanciamento de uma dívida contraída para a privatização de um bem público, essa debênture incentivada foi divulgada na época como o primeiro blue bond brasileiro – uma modalidade de título de dívida voltada ao financiamento de projetos relacionados à preservação de recursos hídricos, oceanos e vida marinha.

Os quase 4 bilhões de reais captados em debêntures não se traduziram em investimentos. Segundo a própria empresa, foram investidos, até o momento, apenas 904 milhões. Para cumprir o compromisso assumido com o BNDES e com o governo de investir 2 bilhões de ­reais até 2026, a BRK Ambiental precisaria aplicar, só em 2026, 1,1 bilhão – valor superior ao total investido nos últimos cinco anos somados.

Caso a Brookfield decida vender a BRK Ambiental, deixará uma empresa com uma dívida tão elevada que comprometerá suas finanças por décadas, afetando diretamente a qualidade dos serviços prestados à população e a capacidade de investir em infraestrutura. As debêntures incentivadas devem ser reavaliadas pelo governo federal, com alterações nos critérios de seleção dos projetos beneficiados. O uso dessas debêntures para pagamento ou refinanciamento de outorgas não deveria ser permitido, pois desvirtua o objetivo central do incentivo fiscal, além de favorecer a privatização e a financeirização do setor de saneamento básico. •


*Euan Gibb é secretário regional da ISP, Fernando Biron é diretor do Sindae–Bahia e Livi Gerbase é pesquisadora do Cictar.

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Chapéu alheio’

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