Política

Cecília Coimbra e a teimosia de não esquecer

Apesar das decepções com um País que insiste em não acertar as contas com o seu passado, a fundadora do grupo Tortura Nunca Mais transmite uma mensagem de otimismo

Cecília Coimbra, fundadora do Tortura Nunca Mais (Foto: Arquivo Pessoal)
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Às vésperas da passagem dos 60 anos do golpe civil-militar que deu início a uma ditadura de duas décadas no País, parte da sociedade brasileira segue incomodada com o acordo feito entre o governo Lula e o comando das Forças Armadas para que a data seja, na medida do possível, esquecida nas ruas e nos quartéis. Referência quando o assunto é a preservação da memória dos crimes cometidos pelo Estado brasileiro desde 1964, a professora e psicóloga Cecília Coimbra, fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais, decidiu celebrar seu aniversário de 83 anos indo na contramão do esquecimento programado. 

Em conversa com CartaCapital, Coimbra fala sobre a postura do governo em relação aos militares e a possibilidade de anistia aos envolvidos na trama golpista que culminou na invasão das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023. Apesar das decepções com um País que insiste em não acertar as contas com o seu passado, a histórica militante transmite uma mensagem de otimismo e adota um trecho de um poema de Carlos Drummond de Andrade para resumir seu estado de ânimo: “É hora de começar tudo de novo, sem ilusão e sem pressa, mas com a teimosia do inseto que busca um caminho no terremoto”.

Confira a seguir.

CartaCapital: Com os retrocessos que o Brasil vem experimentando nos últimos anos, é preciso ter a “teimosia do inseto” de Drummond para continuar lutando?

Cecília Coimbra: É preciso, sim. Quando eu sinto essa poesia, vejo que não é mais o momento de a gente sair para a luta de uma maneira voluntariosa como fizemos no passado, em outro contexto. Agora é o momento de um trabalho de lentamente caminhar no sentido de problematizar essas subjetividades que estão sendo produzidas de ódio, violência e irascibilidade. A cultura do ódio, a cultura da ‘minha opinião é melhor que a sua’ acabou se naturalizando no País. Temos de estar caminhando como se fosse num terremoto, pisando cuidadosamente um terreno que está minado, inclusive por aqueles que se dizem de esquerda.

CC: Como a senhora avalia a relação atual do governo Lula com os militares?

CC: Não podemos esquecer que houve na época da Lei da Anistia um grande acordo não só com os militares, mas também com os empresários que financiaram o aparato de repressão durante o período de terrorismo de Estado. Essa aliança se manteve ao longo dos governos, independente dos partidos políticos que estivessem à frente. Desde então, fala-se alguma coisa, mas só até a página dois, porque não podemos romper esse acordo de silêncio. Então, há de se caminhar com muito cuidado, problematizando essas naturalizações que estão sendo feitas como, por exemplo, dizer que ‘o passado é passado’. Não, o passado está aqui. O passado de 64 está aqui, no presente, com seus efeitos, nos trazendo novamente o fantasma do golpe. As pessoas se intimidam com isso, inclusive o próprio governo. A meu ver, muitos estão sendo chantageados por esse fantasma do golpe. Então, opta-se por não mexer nas coisas e mantê-las como estão desde o acordo da Lei da Anistia.

CC: Desde março repousa na Casa Civil o decreto de reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, mas o governo resiste em concretizá-la. Qual tua opinião sobre essa postura frente às memórias do período da ditadura?

CC: Como eu disse, todos os governos civis pós-anistia vêm cumprindo esse acordo. A própria Dilma Rousseff, quando implanta a Comissão Nacional da Verdade, o faz muito por pressão internacional porque o Brasil tinha sido julgado, sobre o caso do Araguaia, na Organização dos Estados Americanos. Já no final do segundo governo Lula, o Brasil foi condenado a abrir todos os seus arquivos, não só sobre os desaparecidos do Araguaia, mas sobre todos os mortos e desaparecidos durante o período da ditadura. E o Brasil nunca fez isso. Os únicos arquivos abertos foram os do Dops, que estavam em poder dos estados. Nenhum dos governos federais fez qualquer movimento para abrir os arquivos dos serviços de segurança do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do SNI.

O passado de 64 está aqui no presente, com seus efeitos, nos trazendo novamente o fantasma do golpe

Os documentos do Dops foram entregues quando a oposição assumiu os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro em 1983 com Franco Montoro e Leonel Brizola. Os arquivos do Dops do Rio de São Paulo, que eram os mais volumosos, foram entregues ao superintendente da Polícia Federal à época, Romeu Tuma. E só nos foram entregues de novo, por pressão nossa, em 1992. E os arquivos foram mexidos, retiraram várias fichas de companheiros mortos, desaparecidos principalmente, que eram velhos militantes comunistas e já tinham sido presos, inclusive alguns pelo Estado Novo. Já eram velhinhos e desapareceram naquele período dos anos 70, mas não constam, é como se não tivessem existido.

CC: Qual tua avaliação sobre a Comissão Nacional da Verdade?

CC: Foi extremamente limitada, não foi aquilo que a gente reivindicava. A Comissão foi composta por pessoas da confiança da presidente Dilma, e não por ninguém da sociedade civil. E agora o decreto da reinstalação da Comissão não acontece porque o 8 de Janeiro continua como um fantasma que fica chantageando o governo. O governo não quer irritar os aliados militares nem os empresários. Isso é real, infelizmente. É ainda a tutela militar e a tutela do capital falando em primeiro lugar e, óbvio, na sociedade capitalista é isso mesmo. Mas, a gente tem que continuar pressionando, temos que continuar sendo insetos em um terremoto e achar nosso caminho no sentido de problematizar tudo isso.

Manifestantes em ato ‘Ditadura Nunca Mais’, em São Paulo, no dia 6 de agosto de 2019. Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas

CC: O que essa “tradição” de anistia a militares golpistas já custou ao País?

CC: Essa tradição de anistia para torturadores e genocidas, para aqueles que legalizavam a tortura, a morte e o desaparecimento em cima de leis vigentes repressivas, só tem prejudicado a história do Brasil. Enquanto isso, as elites continuam massacrando as populações periféricas, os negros, os indígenas, os LGBTs. Então, pedir anistia é fazer com que esses crimes não tenham acontecido. O pedido de anistia significa esquecimento, é o que eles sempre fizeram desde 1964: querem produzir esquecimento, e conseguiram em muitos momentos. Grande parte da população brasileira não sabe o que foi aquele período, então eu acho que há que se problematizar tudo isso. Hoje é muito difícil porque tem as fake news aí produzindo cada vez mais falsas verdades. É tentar perceber como é que essas produções de verdade estão sendo feitas, e como a sociedade vai se alimentando delas. É preciso contribuir para trazer um pouco de memória para o povo brasileiro, memória que tentam varrer para debaixo do tapete, esquecer e negar. Infelizmente, a nossa memória de 1964 para cá é uma memória maldita, que não interessa ao Estado ser reconhecida. O Estado se nega a reconhecer essas memórias porque são perigosas.

CC: As “memórias malditas” que dão título a seu novo livro são, portanto, necessárias?

CC: Esse livro, uma espécie de autobiografia, foi muito difícil e doloroso. Em depoimentos que eu havia feito à Comissão Nacional da Verdade e à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, eu só falei do horror, do terror que nós passamos. E elenquei, inclusive, 14 torturadores que estiveram presentes nas minhas sessões de tortura. Aí, em setembro de 2020 houve o lançamento de um documentário do Caetano Veloso no qual ele fica muito emocionado num determinado momento quando conta que um guarda rompeu as ordens e deixou-o abraçar a Dedé Gadelha, sua companheira na época. O cara abriu as grades para eles poderem se abraçar. E, logo depois, foi preso. Caetano fica muito emocionado, e eu me emocionei muito também porque aconteceu isso comigo. Aí eu pensei: eu não escrevi sobre isso, só escrevi sobre o horror. Mas, a vida insiste mesmo nesses lugares do horror. No terror, a potência da vida insiste. Esse livro foi escrito nesse sentido, para mostrar que, apesar do terror que a gente vivia na pandemia, assim como nos porões da ditadura, a potência da vida se impunha. E aí eu vou mostrando vários exemplos de solidariedade entre as presas e conto muitas coisas do nosso cotidiano na prisão.

Escolhi o título de Memórias Malditas, Invenção de Si e de Mundos porque à medida que eu fui trazendo essas memórias, eu fui me inventando. Tudo que eu vivi, eu fui me inventando, fui me tornando outra e produzindo outros mundos também, de uma forma fraterna, solidária. O que o capitalismo o tempo todo nos nega é produzir outros modos de estar no mundo, outros modos de viver. Nossa grande questão é a produção de outros modos de estar neste mundo que não o modo capitalista que querem nos impor como sendo o único e verdadeiro. O capitalismo coloca um único mundo possível, com exploração, individualismo e competição, mas há outros modos de a gente estar no mundo.

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