Política

Carta ao vice-presidente

Como ser fiel a alguém que anda a conspirar e não dá sinais claros para a sociedade e para o sistema político?

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Excelentíssimo Senhor Vice-Presidente da República, Dr. Michel Temer. 

Epistolas revelare spiritus tempus (Cartas revelam o espírito do tempo).

Por isso lhe escrevo. As cartas sempre foram instrumentos políticos muito importantes. Muitas delas chegaram a balizar valores fundamentais de nossas sociedades democráticas, como a carta sobre a tolerância de John Locke, a carta da tolerância de Voltaire e as cartas persas de Montesquieu. Veja bem, Senhor Vice-Presidente, cartas dizem muito sobre uma sociedade e têm o poder de revelar o espírito de um tempo. O apóstolo Paulo conseguiu unir os romanos pela causa do cristianismo para evangelizar a Espanha. Isto, Senhor Vice-Presidente, com uma carta apenas.

Creio que a carta que Vossa Excelência dirigiu à Presidente da República revela muito do nosso momento e de nossas ideias. Em primeiro lugar, o Senhor reclama da falta de confiança em Vossa Excelência. Não é para menos. A palavra confiança vem do latim fides, língua que o Senhor muito bem admira. A mesma palavra que também dá origem à palavra fidelidade, na língua portuguesa. Como ser fiel a alguém que anda a conspirar e não dá sinais claros para a sociedade e para o sistema político?

O Senhor reclama de ser apenas uma alegoria no sistema político. Não concordamos. A sua carta poderia unir o Brasil, de forma que encontremos soluções e perspectivas de um futuro que nos assemelha sombrio. O Vice-Presidente tem responsabilidades enormes e não pode ceder à mais rasteira luta pelo poder, sem qualquer lastro de realidade e sem qualquer responsabilidade com o povo. Ora, Senhor Vice-Presidente, a carta do apóstolo Paulo uniu os romanos pelo dogma cristão. A sua carta, lamentavelmente, nos divide. A carta de Locke afirmou o valor fundamental da tolerância, especialmente a religiosa, unindo católicos e protestantes. A sua insufla oposição e governo, divide o país e causa mais constrangimento a uma já combalida Presidência da República.

Não temos tempo a perder, Senhor Vice-Presidente. Por isso, não dá para ficar lamentando não ter sido convidado para o jantar com o Vice-Presidente norte-americano. Imagino que ele seja uma pessoa muito amável e participar de um jantar assim deve ser muito interessante e instrutivo. Mas, veja bem, Senhor Vice-Presidente, enquanto jantares acontecem, a fome, que há pouco parecia extinta no Brasil, começa a nos assombrar de novo. Precisamos de liderança e não de arroz de festa, neste momento. A sua carta contra à Presidente pareceu uma mera birra infantil. Já que não foi convidado, então estará de mau e vai derrubá-la. Precisamos de muita prudência e maturidade nesse momento. O Senhor reclama de confiança, mas como confiar em alguém que se irrita por não participar de uma festa? Fica difícil confiar em alguém mimado.

Vamos aos fatos:

1 – O Senhor reclama de ser peça decorativa. Líderes não esperam o tempo. Líderes fazem o tempo. O Senhor é o total responsável por aceitar a birra da Presidente em colocá-lo nesse lugar.

2 – O Senhor se desvaloriza muito reproduzindo aquela velha política de indicações e clientelas. Reclama de não ter tido seu cupincha indicado. O senhor deveria lutar pela melhoria da gestão pública, acabando com as formas de personalismo e clientelismo que há séculos nos assolam.

3 – Os acordos que o Senhor criou no parlamento, usando sua credibilidade, deveria deixar qualquer um corado. O Senhor forçou o pior lado de nossa política, retirando da agenda projetos e criando o mais baixo toma lá e dá cá. Como, Senhor Vice-Presidente, criar confiança assim?

4 – O Senhor fala em unidade do PMDB, mas condiciona esta unidade a este jogo baixo de clientelismo e indicações. Precisamos de liderança, Senhor Vice-Presidente. O país precisa não apenas da unidade partidária. Precisa de sua unidade, que de algum tempo para cá vem sendo bastante ameaçada.

Senhor Vice-Presidente, a sua carta revela muito do nosso espírito brasileiro contemporâneo. Conseguimos visualizar nela apenas um espírito infantil e porque não bobinho. É muito mimimi e falta de espírito público. Talvez o Senhor tenha, com uma carta, conseguido expressar melhor do que qualquer teoria o que tem sido nossos tempos. Esta falta de espírito público muito nos tem perturbado e lançado o Brasil em um buraco sem fundo.

Com os melhores cumprimentos, nos despedimos. Não podemos confiar em Vossa Excelência, se o senhor tem a pretensão de derrubar a Presidente da República na base do mimimi. Creio que caiba ao Senhor pensar direitinho e refletir sobre isso. Lamento, mas esta é minha convicção.

Respeitosamente. 

Um mero cidadão brasileiro

 

*Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

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