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A Câmara dos Deputados joga às favas os escrúpulos, em novo confronto com o STF e a vontade popular

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Noite infame. Hugo Motta, presidente da Câmara, cumpriu o pacto selado entre o Centrão e o bolsonarismo, segundo ele, em nome da “pacificação” do Brasil – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara
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Freud, o pai da psicanálise, teo­rizou que os indivíduos possuem uma espécie de juiz interior que impõe padrões de conduta, desperta culpa ou orgulho, controla a moral. Em linguagem didática, o chamado superego faz com que se tenha vergonha na cara. O grupo no comando da Câmara dos ­Deputados, encarnado na figura do presidente da Casa, Hugo Motta, é desprovido de superego. Em uma apoteose de descaramento, honrou aquele “pacto bandido” firmado no escurinho por golpistas e malandros, na época da revolta da extrema-direita com a prisão domiciliar de Jair Bolsonaro. Mudou a Constituição para proteger congressista fora da lei e, no dia seguinte, resolveu examinar a toque de caixa uma anistia a golpistas condenados, como o capitão sentenciado a 27 anos de cadeia.

A decisão sobre anistia foi embalada em outro descaramento. O Brasil precisaria de “pacificação”, daí a necessidade de deixar para lá crimes contra a democracia. Pacificar por meio do cumprimento da lei não passa pela cabeça desse pessoal. Na prática, os deputados declararam guerra ao Supremo Tribunal Federal. E a Corte pegou em armas. O juiz ­Flávio ­Dino, tão ou mais odiado pelos deputados do que Alexandre de Moraes, disparou a engrenagem de um julgamento “apocalíptico”, destinado a acabar com a fonte de poder (e da desfaçatez) da banda podre do Congresso, as emendas parlamentares. Gilmar Mendes, por sua vez, fez andar sem firulas duas ações que contestam a forma de cassar togados do tribunal. Em um comentário público, foi claro: “I­mpeachment deve ser um processo regular. Se for por conta do voto de um ministro, seria irregular. O STF não vai aceitar”.

Pela legislação atual, cabe ao Senado processar magistrados supremos. A extrema-direita sonha em fazer da casa um bunker contra o tribunal a partir da eleição do próximo ano. O filho “zero dois” do capitão, o vereador Carlos, vai trocar até dezembro o Rio de Janeiro por Santa Catarina, o estado mais bolsonarista, a fim de concorrer a uma vaga de senador, segundo o presidente do PL, Valdemar Costa Neto. Em junho, recorde-se, Bolsonaro tinha dito em um ato pela própria anistia que nem precisaria subir a rampa do Palácio do Planalto de novo. Bastaria uma maioria de aliados na Câmara e no Senado para “mudar” o Brasil. Referia-se não só ao poder senatorial de defenestrar juízes da Alta Corte, mas de aprovar indicações do Executivo para o tribunal. No próximo governo, três integrantes do STF vão aposentar-se por idade.

O Senado não parece disposto a dar vazão aos delírios da Câmara

O bunker almejado pelo bolsonarismo para o futuro ensaia ser, no presente, uma trincheira oposta, a julgar por gestos e palavras do comandante do Senado. ­Davi ­Alcolumbre tem dito a portas fechadas, e dá pistas a céu aberto, ser contra a anistia geral desejada pelo capitão. A proposta que a Câmara carimbou de discussão “urgente” concede perdão generalizado. Seu autor é Marcelo Crivella, do Republicanos, o partido de Motta e do governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo. Pelo projeto, todo mundo que atentou contra a democracia entre 30 de outubro de 2022, o dia do segundo turno da eleição, até a data da eventual vigência da lei estaria com o prontuário limpo. Inclusive aqueles condenados na Justiça Eleitoral, caso de Bolsonaro, inelegível até 2030. O relator será Paulinho da Força, do Solidariedade.

Alcolumbre topa discutir no máximo uma mudança no Código Penal que reduza as penas previstas para quem tiver tentado golpe (o castigo hoje vai de 4 a 12 anos de prisão) ou abolir o Estado Democrático de Direito (de 4 a 8 anos). Caso haja a alteração das punições estipuladas no Código, caberia ao Supremo avaliar se revisa, ou não, as sentenças dos golpistas. O presidente Lula não se opõe à mudança. A ministra da articulação política do Planalto, Gleisi Hoffmann, deu uma declaração nesse sentido em abril, embora tenha sido obrigada a se explicar depois para não parecer que defendia que o Congresso passasse por cima do STF. Em um almoço com integrantes do PDT na quarta-feira 17, Lula comentou coisa parecida. Em entrevista à BBC antes do repasto, tinha afirmado, a propósito de uma anistia: “Pode ficar certo que eu vetaria”.

A anistia, por ser uma lei, terá de ser submetida à sanção presidencial, caso venha a ser aprovada. O eventual veto lulista seria examinado pelo Legislativo e, se derrubado, o fim da história já se pode desenhar. Algum governista recorrerá ao Supremo, e a Corte anulará o indulto. Moraes, Dino e Mendes deixaram claro que o perdão é inconstitucional, pois crime contra a democracia seria tratado dessa forma na Corte. Em 2023, o tribunal usou esse argumento para cancelar o perdão de Bolsonaro, enquanto presidente, ao ex-deputado Daniel Silveira.

Alta-tensão. O STF considera a anistia inconstitucional. Dino quer acabar com a farra das emendas. Rueda é acusado de ligações com o PCC – Imagem: Ton Molina/STF, Kalina Maurer/União Brasil e Marcelo Camargo/Agência Brasil

Quanto à proposta aprovada pelos ­deputados para proteger congressista fora da lei, Lula não tem o que fazer. Alterações na Constituição independem de sanção presidencial. Em conversa com o presidente do PT, Edinho Silva, horas antes da votação na Câmara, o presidente tinha dito tratar-se de um assunto interno do Parlamento, mas, se fosse deputado, votaria contra. Gleisi marcou a posição em público, no ex-Twitter. E acrescentou: “Ao governo interessa debater e votar a agenda do povo, a começar pela isenção do Imposto de Renda para quem ganha até 5 mil reais, a justiça tributária”.

“Povo” é uma palavra-chave por trás das posições recentes de Lula. O atual slogan do Palácio do Planalto é “Governo do Brasil, do lado do povo brasileiro”. De olho na reeleição, o presidente não quer contrariar o sentimento popular mesmo que, no PT, haja gente preocupada com as consequências negativas no Congresso que a opção pelas ruas pode ter. Após conversar com o presidente, Edinho Silva reuniu-se com deputados petistas e, na conversa, houve quem tenha lembrado que a recusa do partido de salvar a pele de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, abriu caminho para o ­impeachment de Dilma Rousseff. Cunha está atualmente na mesma legenda do discípulo Motta e frequenta o gabinete do pupilo.

O líder da bancada do PT, Lindbergh Farias, alinha-se à opção preferencial de Lula pelas ruas, motivo para ter cultivado inimigos na turma sem superego e para ter até alguns desafetos na bancada petista. Dos 67 deputados do PT, 12 votaram a favor da proposta de proteger parlamentar fora da lei. De acordo com a “PEC da Blindagem”, o Congresso precisa dar autorização prévia para o Supremo processar deputado e senador. O aval seria deliberado em votação secreta, ou seja, sem que a população saiba o voto de cada legislador. Foi assim no período entre o nascimento da Constituição, em 1988, e 2001. Nos 13 anos de sua vigência, as autorizações foram raríssimas, o corporativismo venceu de goleada.

Ao ressuscitarem a blindagem, ou impunidade, os deputados inovaram em relação a 1988. Incluíram os chefes de partido entre aqueles que só serão processados com permissão legislativa. Medida feita sob encomenda, parece, para o chefe do União Brasil, Antônio Rueda. Na quinta-feira 18, segundo o ICL Notícias, um piloto de avião que trabalhou para o PCC disse à Polícia Federal que Rueda é dono de aviões a serviço da facção. O depoimento foi prestado nas investigações da Operação Carbono Oculto, com a qual a PF combateu lavagem de dinheiro do grupo criminoso. Durante a votação da proteção de parlamentar, vários deputados contrários à medida disseram que o Legislativo vai tornar-se abrigo do PCC e do Comando Vermelho. Comparação feita por senadores também. “Se nós aprovarmos isso, os criminosos do PCC vão disputar mandatos em todo o Brasil para vir buscar impunidade no Congresso”, afirmou Renan Calheiros, do MDB, em uma sessão da Comissão de Constituição de Justiça do Senado.

Os deputados estenderam a impunidade aos presidentes de partidos

A CCJ será a primeira parada da “PEC da Blindagem”, ou da Impunidade, por decisão de Alcolumbre, em um sinal de que o Senado não pretende agir com pressa, o que contribuirá para se espraiar na opinião pública a ideia de que se trata de um escândalo. O comandante da comissão, Otto Alencar, do PSD, fez duras críticas à proposta e avisa que vai trabalhar contra. O filho dele, o deputado Otto Alencar Filho, do PSD, comentou certa vez, a portas fechadas, que Dino, do Supremo, é odiado no Congresso, por causa da cruzada contra as emendas parlamentares. Segundo fontes da PF, há mais de uma centena de inquéritos no tribunal acerca de bandalheiras com recursos direcionados por congressistas. Essas investigações deram vida ao acordão do tipo “uma mão lava a outra” firmado no gabinete do deputado pepista Arthur Lira, antecessor de Motta no comando da Câmara, para anistiar golpistas e proteger parlamentares fora da lei. As investigações da PF sobre emendas são supervisionadas por oito juízes diferentes, mas Dino paga o pato da bronca congressual­ por estarem com ele ações capazes de acabar com a farra.

No dia em que os deputados aprovaram a autoblindagem, o togado detonou a contagem regressiva para o julgamento de duas ações. Uma pede o fim da obrigação do governo de pagar as emendas inseridas no orçamento por deputados e senadores, bolada de 50 bilhões de ­reais por ano. A outra quer a extinção do mecanismo “Pix” de liberação de recursos. Dino deu 15 dias para a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da União opinarem de forma definitiva sobre as ações. É o prenúncio de um julgamento no plenário que Dino considera “apocalíptico”, pelo potencial de enfurecer o Legislativo. No dia em que o colega pediu o parecer de AGU e PGR, Mendes fez o mesmo em duas ações sobre impeachment de magistrados do Supremo, movidas na véspera.

O julgamento sobre as emendas precisa ser marcado pelo presidente do tribunal. Luís Roberto Barroso está de ­saí­da do cargo, será substituído, a partir do dia 29, por Edson Fachin. Na quarta-feira 17, Barroso falou na abertura da sessão da Corte sobre as sanções do governo Donald Trump contra Moraes e o Brasil em geral: “Não existe caça às bruxas ou perseguição política”. Ele é rico, morou nos Estados Unidos, viaja com frequência para lá. No Congresso, há quem diga que ele teme ser atingido pela Lei Magnitsky, como aconteceu com Moraes. Por Bolsonaro, os EUA prometem mais sanções ao Brasil. Novas medidas podem ser anunciadas com Lula em solo norte-americano. O presidente brasileiro abrirá, como de praxe, a Assembleia-Geral da ONU, na terça-feira 23, em Nova York.  •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Canalhocracia’

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