Política

Camisa amarela

Pequena história de paixão e ódio pela camisa da seleção brasileira

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A gente não via a seleção brasileira com aquela camisa amarela correndo em campo, ao vivo, porque não havia transmissão ao vivo de jogo de futebol na televisão no Chile de 1962.

Mas a gente imaginava nossos craques no gramado, com o ouvido colado no radinho de pilha. E cantava junto com Jackson do Pandeiro: Vocês vão ver como é Didi, Garrincha e Pelé/Dando seu baile na bola/Quando eles pegam no couro/Nosso escrete de ouro.

No dia seguinte, a gente via nas páginas do Globo uns poucos lances, em radiofotos em preto e branco, muitas vezes riscadas, quase apagadas. Amarildo, no lugar de Pelé, driblando, chutando em gol, comemorando o Brasil bicampeão. Fotos coloridas só na quarta-feira, na revista Manchete.

A camisa amarela era pesada e feita com um tecido como esses que hoje fabricam moletons. Era amarela ouro, tinha um escudo da CBF no peito e, atrás, apenas o número do jogador. Nem o nome tinha.

Pegamos uma paixão danada por aquela camisa e toda vez que o escrete canarinho entrava em campo eram milhões em ação gritando salve a seleção, vestidos de amarelo.

Não era fácil comprar uma camisa daquelas porque não havia essa coisa de camisa oficial, nem muitas lojas de artigos esportivos na minha ainda meio provinciana Belo Horizonte. Mas a gente era louco para ter uma.

A primeira vez que vimos os jogadores com a camisa amarela jogando, ao vivo, foi na Copa de 70, aquela Copa que deixou a gente com um pouco de dor na consciência porque não sabia se torcia ou não torcia, porque se a seleção ganhasse, seria um gol de placa pro ditador Emilio Garrastazu Médici.

Mesmo assim torcermos. Não tinha como não torcer por aquele time espetacular, o melhor de todos os tempo, na minha opinião. A seleção de Gerson, Rivelino, Pelé e Tostão. Foi em 1970 que ganhei a primeira camisa do Brasil e gostava de sair com ela pelas ruas desfilando depois de cada jogo, cada vitória.

Mesmo depois de ver o presidente Médici erguendo a taça, ainda usava aquela camisa, que foi puindo com o tempo, como se fosse uma ditadura. A gente acreditava que aquele regime opressor ia passar logo.

Confesso hoje que perdi um pouco o gosto pelas Copas, fiquei meio desgostoso não sei bem porque. Não consigo mais torcer com aquela paixão que torcia sentado no chão da minha casa e gritando gol a cada gol e uhhh a cada bola que passava raspando o travessão. Acho que foi quando dividiram a Copa, metade na Coréia, metade no Japão, que perdi o tesão .

A camisa amarela virou moda nas manifestações das Diretas Já e passei a gostar dela novamente quando vi Osmar Santos com uma escrito no peito “Eu quero votar pra presidente”.

Aí veio a música Pelas Tabelas, do Chico, e eu cantei emocionado: Ando com minha cabeça já pelas tabelas/aflição/Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/Eu achei que era ela puxando o cordão/Oito horas e danço de blusa amarela/Minha cabeça talvez faça as pazes assim.

Hoje eu sou uma pessoa que odeio a camisa amarela da seleção. O desgosto começou quando vi aquela multidão na Avenida Paulista gritando Fora Dilma! Vai pra Cuba! e Impeachment Já! Hoje, fico aqui pensando com os meus botões, que triste essa história.

Outro dia, não faz muito tempo, ganhei uma camisa dessas, presente do rei Pelé. Só saiu do meu armário uma única vez, para ser fotografada e ilustrar essa minha crônica, esse meu lamento.

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