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Sob Bolsonaro, duas universidades para a integração regional foram devastadas pela falta de recursos e pelo aparelhamento de religiosos

Barreira. A asfixia financeira impede as instituições de ampliar as vagas para estrangeiros, como previa o plano inicial
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O sonho da integração regional é antigo na América Latina. Vem desde as guerras de independência encampadas por Simón Bolívar e Manuela Sáenz. Apesar disso, o Brasil segue virado de costas aos países vizinhos, enquanto contempla o horizonte além da Linha do Equador. Já a preocupação em se conectar com as nações africanas é mais recente, e remete a um projeto de política externa voltado à estratégia “Sul-Sul”, cujo objetivo é a construção de parcerias entre os países situados na periferia do capitalismo, o que foi abandonado nos últimos anos pelo Itamaraty.

Na tentativa de viabilizar o sonho de ­Bolívar, há pouco mais de dez anos nasceram no Brasil duas universidades federais com caráter totalmente distinto das demais. A Unila, localizada em Foz do ­Iguaçu, na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, busca a integração dos países da América Latina. Já a Unilab, com três campi localizados em Acarape e Redenção, no interior do Ceará, e São Francisco do Conde, no interior da Bahia, atrai estudantes, professores e pesquisadores de nações africanas de língua portuguesa.

As duas universidades nasceram no fim do segundo governo Lula, com a ambição de ter 50% do corpo docente e discente formado por estrangeiros, mas esse objetivo jamais foi atingido. Nenhuma delas chegou a ultrapassar a marca dos 40%. O campus da Unila não saiu do papel e as aulas seguem divididas em diversos prédios espalhados pela cidade. Ainda assim, a universidade ousou ampliar o leque e receber até mesmo refugiados de guerra. “Temos estudantes de países latinos, africanos, da Rússia”, conta o reitor Gleisson Brito. Quando eles concluem o curso e retornam aos seus países, esses alunos se tornam “pequenos embaixadores do Brasil, e levam com eles, além da experiência de ter estudado em uma universidade internacional, a missão da integração”, acrescenta, orgulhoso.

Aluno da primeira turma, Alexandre Andreatta é mestre em Relações Internacionais e depositou seus sonhos em uma cápsula do tempo lacrada na aula inaugural da universidade, em 2010. “A Unila teve importância enorme na minha formação, não apenas profissional, mas também humanística e cidadã. Permitiu que eu pudesse conviver em diversidade”, conta. “Naquela cerimônia, tive a oportunidade, juntamente com uma colega argentina e outro uruguaio, de entregar a Lula uma carta com o desejo de que, em 2060, quando a cápsula deve ser aberta, tenhamos derrubado muros e construído pontes numa América Latina única, mas diversa.”

Passados 13 anos, os muros parecem cada vez mais sólidos. Após o golpe que destituiu Dilma Rousseff, tanto a Unila quanto a Unilab acabaram se afastando dos projetos iniciais e, como todas as demais universidades federais, passaram a lutar pela sobrevivência, em meio aos sucessivos cortes orçamentários de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Há, porém, quem resista para o cumprimento do plano original.

Professores e alunos da Unila e da Unilab, que acolhem latinos e africanos, clamam pelo socorro de Lula

“Ano após ano, o orçamento vem caindo. A receita é sempre inferior ao que precisamos para levar adiante os projetos de pesquisa e extensão”, denuncia o reitor. O desafio imediato, acrescenta Brito, é conseguir captar mais recursos e recrutar estudantes vindos de fora. Para isso, será essencial um olhar atencioso do Ministério da Educação, que fechou as portas para o diálogo nos anos Bolsonaro. “Aprendemos a conviver com a crise. Se for preciso atrasar o aluguel, nós atrasamos. Mas são inaceitáveis os cortes de recursos para bolsas de permanência e projetos educacionais.”

Quando se pensa em um projeto de integração dessa magnitude, é de se esperar que surjam alguns obstáculos. “Os alunos da Unila vêm de cidades pequenas, do interior dos países vizinhos. A burocracia brasileira e a barreira do idioma são as primeiras dificuldades que eles encontram ao chegar em Foz do Iguaçu”, explica a professora e gestora de políticas de assistência estudantil Jorgelina Tallei, argentina residente no Brasil há mais de 20 anos, que até hoje não perdeu o sotaque.

O mais difícil, contudo, é permanecer na universidade. Sem políticas de assistência estudantil, muitos acabam desistindo. A Unila e a Unilab prometem bolsas aos estudantes brasileiros e estrangeiros de baixa renda. Ao circular pelos corredores da Unila, não é difícil perceber que se trata de um perfil muito diferente dos alunos de outras universidades. Quase ninguém chega de carro, ninguém é visto com tênis de marca nos pontos de ônibus, os rostos carregam as marcas de histórias de superação. Se a bolsa não cai no dia certo na conta bancária, o aluno não come, não se locomove, não paga o aluguel da pensão. E abandona o curso. “Muitos alunos foram embora para seus países de origem durante a pandemia. Imagine você estar em outro país, sem falar a língua direito, e ainda sem os recursos que foram prometidos? Foi desesperador”, destaca Tallei.

Na Unilab, a situação é ainda mais grave. Além da falta de recursos, docentes e estudantes se dizem vítimas de represálias da reitoria, hoje ocupada por um pastor bolsonarista. “Topo conversar, mas é melhor que não seja sozinha, porque estamos sofrendo muitas perseguições”, explica a professora Jacqueline Costa, do Instituto de Humanidades da Unilab, antes de organizar uma reunião com colegas e alunas para relatar os problemas.

A conversa aconteceu por videochamada com seis mulheres, quase todas pretas. Elas denunciam perseguição da reitoria contra os grupos de estudantes indígenas, quilombolas e pessoas de “corpos desviantes”. Faltam recursos para políticas de permanência e a reitoria estimula intrigas entre estudantes estrangeiros e brasileiros, a fim de enfraquecer a resistência estudantil. “Na falta de restaurantes universitários, às vezes um estudante de um prédio precisa caminhar até outro, a 5 quilômetros, só para poder jantar”, revela a estudante Geyse Anne da Silva, bacharel em Humanidades, estudante de Pedagogia e diretora do DCE da Unilab.

Ana Paula Rabelo, professora do curso de Letras, explica que, no princípio, a Unilab não era tão conhecida entre os moradores dos municípios onde os ­campi foram instalados, regiões marcadas por altos índices de vulnerabilidade social e distantes das capitais. Quando os discursos de gênero, raça e classe começaram a se destacar, esse entorno da universidade não estava preparado para o debate. “Com isso, as igrejas mobilizaram um grupo de alunos evangélicos e passaram a fazer manifestações religiosas dentro da faculdade. Eles foram fundamentais para a eleição do reitor-pastor. Tudo ocorreu na esteira do projeto Escola Sem Partido.”

“A Unilab nasceu da resistência do povo preto, dos indígenas e quilombolas. Não é à toa que mesmo com tudo isso nós ainda estamos aqui lutando”, afirma Costa, pesquisadora do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e Indígenas. Sem perder a esperança, ela conta que, recentemente, alunos e professores redigiram uma carta a Lula. “É um pedido de socorro. Nós e a Unila somos universidades caçulas e vamos precisar de muita atenção do presidente para continuar existindo.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cambalache “

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