Política
‘Calmon tem postura forte e sabe que está acuada politicamente’
Cientista político Frederico de Almeida, que estuda formação de elites jurídicas no sistema Judiciário, aponta que declarações da ministra são forma de autodefesa como corregedora
A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, expôs, novamente, as feridas do Judiciário nesta terça-feira 28.
Durante audiência na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), que discute a proposta de emenda constitucional que amplia e reforça os poderes correcionais do CNJ, a ministra disse ser necessário punir juízes “vagabundos” para proteger uma maioria de magistrados honestos.
Segundo Frederico Ribeiro de Almeida, coordenador do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e cientista político, em entrevista à CartaCapital, há um corporativismo entre os magistrados. Para o estudioso, os desvios éticos sempre existiram, mas devido “o Judiciário ser um poder muito fechado, não se tornavam públicos.”
Na audiência, também se desmistificou o argumento de que a corrupção de magistrados se concentra no Sudeste, região onde foram identificados vultuosos pagamentos antecipados – da ordem de 1 milhão de reais – em São Paulo e, em menor escala, no Rio de Janeiro.
“Os Estados mais pobres são aqueles que pagam mais. Tanto que muita gente [magistrados] não quer ser ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) porque vai ganhar muito menos”, comentou a ministra.
Veja a íntegra da entrevista abaixo:
CartaCapital – O sr. acredita que o Judiciário vive uma “crise ética” conforme defende a ministra Eliana Calmon?
Frederico Ribeiro de Almeida – A declaração “crise ética” é muito forte, passa a impressão de que é um momento agudo, assim como a questão da corrupção em geral. E não falo apenas do Judiciário. Creio que o fato de conseguirmos ter mais visibilidade desses casos de corrupção e desvio de conduta, não indica necessariamente um aumento do fenômeno. Os mecanismos de controle, incluindo o CNJ e a atenção da imprensa sobre o Judiciário, melhoraram. O Judiciário, como qualquer grande corporação que envolve muita gente e dinheiro, está sujeito a desvios éticos. Por isso, deve ser investigado como qualquer outro órgão do Estado.
CC – Então, essa “crise” sempre existiu?
FRA – Creio que não temos dados mais claros porque o Judiciário sempre foi um poder fechado. Não sabemos o que ocorria de fato, em termos de gestão de recursos e carreiras. Conforme a transparência vai aumentando, e o CNJ tem um papel muito importante neste sentido, esses casos vão surgindo. Mas isso não significa um aumento, apenas os vemos mais. O Judiciário tem se aberto há pouco tempo e com muita resistência, então os fenômenos que aparecem chamam mais atenção que denúncias de corrupção em outros poderes, que tendemos a tratar como algo comum.
CC – Para o sr., existe uma elite jurídica e um corporativismo na magistratura brasileira?
FRA – Como em toda carreira fechada, com hierarquia e concurso de seleção rigoroso, há corporativismo. Em termos de elite, uma questão séria é o papel da primeira e segunda instâncias. Muito dessa reação ao CNJ e a Eliana Calmon vem de desembargadores, a elite dos tribunais. Obviamente, os juízes de primeira instância têm várias críticas ao CNJ, mas a investigação sobre o desvio de conduta é um problema especialmente sério para os desembargadores por duas razões: eles comandam as corregedorias nos estados e controlam a carreira dos que estão abaixo. Em segundo lugar, muitos dos fatos que levaram a essa discussão – que serve de munição para as declarações de Calmon – são denúncias envolvendo desembargadores. Esse é o real problema: os desembargadores têm o poder de investigar juízes de primeira instância e colegas em mesmo nível de elite. O problema é se investigam uns aos outros com o mesmo cuidado e rigor de uma averiguação externa ou de um desembargador sobre um juiz inferior. A polêmica sobre os pagamentos de verbas envolve desembargadores decidindo pedidos dos próprios desembargadores. Nesse nível de elite, o corporativismo fica mais claro.
CC – Na sua opinião, os poderes do CNJ devem ser ampliados?
FRA – A discussão do Senado para deixar claro na Constituição o alcance do CNJ não me parece uma ampliação de poder, mas um esclarecimento. A discussão quer solucionar a dúvida gerada na decisão do STF que permitiu ao CNJ investigar magistrados antes da atuação da corregedoria do tribunal local. O STF decidiu pela permissão, mas foi apertado. Por isso, surgiu essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que amplia e reforça os poderes correcionais do CNJ, além de esclarecer isso na Constituição. O CNJ deve ter esse poder. Esse controle externo do Judiciário é uma demanda muito antiga, que vem desde a década de 90. Creio que seja uma conquista da democracia apesar de o CNJ não ser tão externo, pois é um órgão majoritariamente composto por juízes. Ou seja, é dominado pelo próprio Judiciário e ainda assim ameaça muita gente.
CC – O sr. acredita que na gestão de Eliana Calmon o CNJ cometeu abusos?
FRA – Não me parece ter havido abuso. A ministra é uma pessoa, sabidamente, de postura forte e sem ‘papas na língua’. Fala o que pensa e usa expressões muito fortes capazes de tumultuar o processo. Para muitos, ela alcançaria os mesmos objetivos se escolhesse melhor as palavras. Outros defendem que Calmon faz exatamente o que o Gilson Dipp fazia de maneira mais discreta. Além do aspecto do temperamento, a ministra sabe usar isso a seu favor. Sabe que há uma discussão e que a opinião pública está a favor do CNJ. Sabe também que está sendo acuada politicamente. Quando vai para a linha de frente e faz uma declaração forte, ela quer marcar uma posição e garantir sua própria defesa como corregedora. Comente excessos em certos pontos, mas é importante que ela abra esse jogo. Além disso, o Judiciário é um órgão muito fechado, com um corporativismo muito forte e com um ritual de cordialidade falso em alguns momentos. Quando a ministra fala, expõe um problema interno do Judiciário que os juízes tendem a tratar corporativamente.
CC – É preciso uma nova reforma no Judiciário?
FRA – Essa questão tem dois lados. A reforma feita em 2004 ficou muito aquém do pretendido em 1992, quando foi apresentada a primeira PEC sobre o assunto. A proposta tramitou por mais de dez anos sem nenhum resultado e só foi aprovada porque conseguiu formar consensos mínimos. Coisas muito polêmicas ficaram de fora. Foi uma reforma que, de certa forma, contou com o apoio das elites do Judiciário e aumentou o poder delas. Existem muitos juízes do CNJ que são de segunda instância, e até mesmo, os juízes de primeira instância, que passam por um crivo prévio das elites. São indicados pelos seus próprios tribunais. O STF também ganhou poder. Com a reforma, algumas decisões do STF vinculam toda a hierarquia abaixo, além disso, o presidente do STF tem o mesmo cargo no CNJ. Isso mostra avanços na reforma, mas indica que ela foi modesta. Mas, o momento atual é muito mais para testar se o que foi feito funciona. Creio que há uma reforma grande a ser feita na gestão dos tribunais, mas o CNJ tem poder para fazer isso no cotidiano e não necessariamente por meio de uma reforma constitucional.
A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, expôs, novamente, as feridas do Judiciário nesta terça-feira 28.
Durante audiência na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ), que discute a proposta de emenda constitucional que amplia e reforça os poderes correcionais do CNJ, a ministra disse ser necessário punir juízes “vagabundos” para proteger uma maioria de magistrados honestos.
Segundo Frederico Ribeiro de Almeida, coordenador do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e cientista político, em entrevista à CartaCapital, há um corporativismo entre os magistrados. Para o estudioso, os desvios éticos sempre existiram, mas devido “o Judiciário ser um poder muito fechado, não se tornavam públicos.”
Na audiência, também se desmistificou o argumento de que a corrupção de magistrados se concentra no Sudeste, região onde foram identificados vultuosos pagamentos antecipados – da ordem de 1 milhão de reais – em São Paulo e, em menor escala, no Rio de Janeiro.
“Os Estados mais pobres são aqueles que pagam mais. Tanto que muita gente [magistrados] não quer ser ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) porque vai ganhar muito menos”, comentou a ministra.
Veja a íntegra da entrevista abaixo:
CartaCapital – O sr. acredita que o Judiciário vive uma “crise ética” conforme defende a ministra Eliana Calmon?
Frederico Ribeiro de Almeida – A declaração “crise ética” é muito forte, passa a impressão de que é um momento agudo, assim como a questão da corrupção em geral. E não falo apenas do Judiciário. Creio que o fato de conseguirmos ter mais visibilidade desses casos de corrupção e desvio de conduta, não indica necessariamente um aumento do fenômeno. Os mecanismos de controle, incluindo o CNJ e a atenção da imprensa sobre o Judiciário, melhoraram. O Judiciário, como qualquer grande corporação que envolve muita gente e dinheiro, está sujeito a desvios éticos. Por isso, deve ser investigado como qualquer outro órgão do Estado.
CC – Então, essa “crise” sempre existiu?
FRA – Creio que não temos dados mais claros porque o Judiciário sempre foi um poder fechado. Não sabemos o que ocorria de fato, em termos de gestão de recursos e carreiras. Conforme a transparência vai aumentando, e o CNJ tem um papel muito importante neste sentido, esses casos vão surgindo. Mas isso não significa um aumento, apenas os vemos mais. O Judiciário tem se aberto há pouco tempo e com muita resistência, então os fenômenos que aparecem chamam mais atenção que denúncias de corrupção em outros poderes, que tendemos a tratar como algo comum.
CC – Para o sr., existe uma elite jurídica e um corporativismo na magistratura brasileira?
FRA – Como em toda carreira fechada, com hierarquia e concurso de seleção rigoroso, há corporativismo. Em termos de elite, uma questão séria é o papel da primeira e segunda instâncias. Muito dessa reação ao CNJ e a Eliana Calmon vem de desembargadores, a elite dos tribunais. Obviamente, os juízes de primeira instância têm várias críticas ao CNJ, mas a investigação sobre o desvio de conduta é um problema especialmente sério para os desembargadores por duas razões: eles comandam as corregedorias nos estados e controlam a carreira dos que estão abaixo. Em segundo lugar, muitos dos fatos que levaram a essa discussão – que serve de munição para as declarações de Calmon – são denúncias envolvendo desembargadores. Esse é o real problema: os desembargadores têm o poder de investigar juízes de primeira instância e colegas em mesmo nível de elite. O problema é se investigam uns aos outros com o mesmo cuidado e rigor de uma averiguação externa ou de um desembargador sobre um juiz inferior. A polêmica sobre os pagamentos de verbas envolve desembargadores decidindo pedidos dos próprios desembargadores. Nesse nível de elite, o corporativismo fica mais claro.
CC – Na sua opinião, os poderes do CNJ devem ser ampliados?
FRA – A discussão do Senado para deixar claro na Constituição o alcance do CNJ não me parece uma ampliação de poder, mas um esclarecimento. A discussão quer solucionar a dúvida gerada na decisão do STF que permitiu ao CNJ investigar magistrados antes da atuação da corregedoria do tribunal local. O STF decidiu pela permissão, mas foi apertado. Por isso, surgiu essa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que amplia e reforça os poderes correcionais do CNJ, além de esclarecer isso na Constituição. O CNJ deve ter esse poder. Esse controle externo do Judiciário é uma demanda muito antiga, que vem desde a década de 90. Creio que seja uma conquista da democracia apesar de o CNJ não ser tão externo, pois é um órgão majoritariamente composto por juízes. Ou seja, é dominado pelo próprio Judiciário e ainda assim ameaça muita gente.
CC – O sr. acredita que na gestão de Eliana Calmon o CNJ cometeu abusos?
FRA – Não me parece ter havido abuso. A ministra é uma pessoa, sabidamente, de postura forte e sem ‘papas na língua’. Fala o que pensa e usa expressões muito fortes capazes de tumultuar o processo. Para muitos, ela alcançaria os mesmos objetivos se escolhesse melhor as palavras. Outros defendem que Calmon faz exatamente o que o Gilson Dipp fazia de maneira mais discreta. Além do aspecto do temperamento, a ministra sabe usar isso a seu favor. Sabe que há uma discussão e que a opinião pública está a favor do CNJ. Sabe também que está sendo acuada politicamente. Quando vai para a linha de frente e faz uma declaração forte, ela quer marcar uma posição e garantir sua própria defesa como corregedora. Comente excessos em certos pontos, mas é importante que ela abra esse jogo. Além disso, o Judiciário é um órgão muito fechado, com um corporativismo muito forte e com um ritual de cordialidade falso em alguns momentos. Quando a ministra fala, expõe um problema interno do Judiciário que os juízes tendem a tratar corporativamente.
CC – É preciso uma nova reforma no Judiciário?
FRA – Essa questão tem dois lados. A reforma feita em 2004 ficou muito aquém do pretendido em 1992, quando foi apresentada a primeira PEC sobre o assunto. A proposta tramitou por mais de dez anos sem nenhum resultado e só foi aprovada porque conseguiu formar consensos mínimos. Coisas muito polêmicas ficaram de fora. Foi uma reforma que, de certa forma, contou com o apoio das elites do Judiciário e aumentou o poder delas. Existem muitos juízes do CNJ que são de segunda instância, e até mesmo, os juízes de primeira instância, que passam por um crivo prévio das elites. São indicados pelos seus próprios tribunais. O STF também ganhou poder. Com a reforma, algumas decisões do STF vinculam toda a hierarquia abaixo, além disso, o presidente do STF tem o mesmo cargo no CNJ. Isso mostra avanços na reforma, mas indica que ela foi modesta. Mas, o momento atual é muito mais para testar se o que foi feito funciona. Creio que há uma reforma grande a ser feita na gestão dos tribunais, mas o CNJ tem poder para fazer isso no cotidiano e não necessariamente por meio de uma reforma constitucional.
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