Política
Caixa de Pandora
O orçamento secreto é um escândalo pronto a estourar no colo do Centrão e do governo


Um espectro ronda o Congresso, o espectro do escândalo orçamentário. É a repetição de um enredo antigo, mas a montanha de dinheiro de agora faz o caso dos “anões do orçamento”, de 1993, parecer uma farsa diante da tragédia atual. Os “anões” eram congressistas obscuros que desviavam verba pública via emendas parlamentares, aqueles gastos com obras paroquiais inseridos no Orçamento federal. Em decorrência de uma CPI, seis deputados foram cassados, entre eles o único figurão da história, o presidente da Câmara na época, Ibsen Pinheiro. E foi abolido um tipo específico de emenda, aquela negociada no escurinho por um congressista com o relator-geral do Orçamento, propícia aos “anões”. Essas emendas, as RP 9, renasceram em 2019, primeiro ano de Jair Bolsonaro, graças ao “Centrão”, liderado então por Arthur Lira, do PP de Alagoas, hoje presidente da Câmara. Compõem o que foi batizado de “orçamento secreto”, pilar do apoio político ao ex-capitão.
Em 2020, essas emendas somaram espantosos 30 bilhões de reais, quantia quase igual à do Bolsa Família naquele ano. Em 2021, são 16 bilhões, similar ao orçamento de Belo Horizonte. Por ordem do Supremo Tribunal Federal, o Congresso e o governo têm até 5 de dezembro para publicar uma lista com o nome dos deputados e senadores que emplacaram as emendas no Orçamento de 2020, com os valores e suas justificativas. Lira e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas, sabotam a decisão. Segundo a dupla, não haveria registros de tudo e divulgar a lista causaria ciumeira e atritos entre parlamentares menos aquinhoados e aqueles de maior sucesso. As razões seriam apenas estas?
Na terça-feira 23, um prefeito da Bahia esteve na Câmara e contou o que, para ele, é o motivo real da sabotagem de Lira e Pacheco. A grana para emendas RP 9 é tanta, que muitos congressistas passaram a direcioná-la para áreas distantes de suas bases eleitorais, até para outros estados. E por quê? Para favorecer empresas, como empreiteiras, em troca de propina. Se houver um mapa das emendas, será possível ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal identificarem que uma certa firma foi favorecida em lugares diferentes por emendas de um mesmo parlamentar. Dessa constatação surgiriam investigações e aí salve-se quem puder.
“Este pode resultar no maior escândalo do Brasil em todos os tempos”, afirma Renan Calheiros
No Congresso, fala-se abertamente de um esquema com emendas. Para o senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, o orçamento secreto “vai causar talvez o maior escândalo do Brasil de todos os tempos”. E aponta o dedo para um rival político alagoano: “O presidente da Câmara tem muita preocupação com o que pode vir de investigação”. “Temos recebido muitas denúncias de vendas de emendas de relator, com pagamento antecipado de comissão em dinheiro, denúncias de que empresas pagam para ter obras de seu interesse incluídas no orçamento”, afirma o deputado Jorge Solla, do PT da Bahia. E não é só a oposição que fala. “Existe um burburinho nos corredores da Câmara de que há deputados, há agentes políticos, pedindo propina para destinar emendas”, diz o deputado Sanderson, do PSL gaúcho, um dos vice-líderes do governo.
A falta de transparência nas emendas RP 9 contribui para fraudes. Há outros dois tipos de emendas orçamentárias. Uma proposta individualmente por um congressista, outra de autoria coletiva de deputados e senadores ou de comissões da Câmara e do Senado. Nesses dois casos, sistemas eletrônicos registram quem propôs qual obra e onde. Se houver desvio entre a saída da grana em Brasília e o gasto paroquial, policiais e procuradores sabem quem são os suspeitos e têm um ponto de partida para averiguar. No caso das emendas do “orçamento secreto”, não.
A obscuridade foi surrada por Rosa Weber, do Supremo, na liminar de 5 de novembro que mandava governo e Congresso divulgarem a lista das emendas de 2020. Para a juíza, o Parlamento criou um “sistema anônimo” de gastos, um “segredo injustificável”, a obedecer a “lógica da ocultação” e “do mistério”. A liminar havia sido pedida pelo PSOL e foi confirmada pelo plenário do tribunal. O PSOL solicitara ainda a suspensão do pagamento de emendas do Orçamento de 2021, e o Supremo também topou.
Alcolumbre, responsável por uma emenda de 81 milhões. E a inextinguível sombra de Eduardo Cunha
A Polícia Federal pediu à Corte para investigar alguns deputados e senadores por eventuais desvios de verba de emendas RP 9 direcionada à compra de máquinas agrícolas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional. Baseou-se em um relatório de 31 de agosto da Controladoria-Geral da União, órgão federal. É um exemplo da falta de transparência a serviço de interesses inconfessáveis. A CGU havia examinado uma licitação do ministério de aquisição de 2,8 bilhões em maquinário. Identificou um prejuízo potencial de 130 milhões, na hipótese de a licitação ir adiante naqueles termos, os quais continham preços superiores aos de mercado. Foram gastos de fato 23 milhões, dos quais 3 milhões superfaturados. O responsável pela licitação era o secretário de Mobilidade do ministério, Tiago Pontes de Queiroz. Estava no cargo desde maio de 2020, indicado pelo Centrão. Saiu há dois meses, após uma operação da PF contra ele por um rolo do tempo em que servia ao Centrão no Ministério da Saúde de Michel Temer.
A CGU esmiuçou ainda 188 convênios do Ministério do Desenvolvimento Regional com prefeituras, pelos quais seria repassada grana para equipamentos agrícolas. Constatou em 115 risco “alto ou extremo” de superfaturamento, prejuízo público de até 12 milhões. Suas apurações nasceram de reportagens de maio deste ano de O Estado de S. Paulo. O jornal relatava um esquema semelhante, com emendas na Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. A CGU realiza uma auditoria específica na Codevasf, ainda em curso. Um inquérito sigiloso da PF sobre a estatal teria na mira três senadores. Quais? Um candidato é o líder do governo, Fernando Bezerra, do MDB de Pernambuco, responsável por separar 46 milhões da Codevasf em 2020 para o prefeito de Petrolina, filho dele. Outro é o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre, do DEM, responsável por uma emenda de 81 milhões para a estatal. Alcolumbre é do Amapá, longe da área da Codevasf. Mas, atenção: a empresa montou este ano um escritório em Macapá, graças a uma lei proposta pelo senador.
O atual esquema com emendas é o ápice de um enredo iniciado há dez anos a ostentar um rosto conhecido da polícia, o do ex-deputado Eduardo Cunha. Ex-soldado de Cunha, Lira é aquele que, à frente do Centrão, concluiu a obra cunhista e tira proveito dela, na forma de “poder”. O projeto dessa turma pode ser resumido assim: mandar no Brasil a partir da Câmara, sem precisar de milhões de votos para chegar ao Palácio do Planalto. Esse projeto se inicia nos idos de 2011 e 2012, alvorada da gestão Dilma Rousseff. Da equipe econômica da época, Nelson Barbosa lembra que, naquele biênio, a presidenta cortou todas as emendas parlamentares, para cumprir metas fiscais. “Isso levou a uma resposta do Congresso, de querer fazer emenda impositiva”, diz.
Afirma Jorge Solla, do PT: “Governista leva um monte de verba pública para a base, oposicionista não”
A reação veio a partir de 2013, quando Cunha era líder do MDB e presidente da Câmara o antecessor dele na liderança, Henrique Alves. Este fez andar a proibição de o governo bloquear emendas incluídas no Orçamento individualmente por congressistas. Quando assumiu o lugar de Alves, em fevereiro de 2015, Cunha arrematou a aprovação. A segunda etapa do projeto de mandar no Brasil a partir da Câmara veio no primeiro ano de Bolsonaro. Em junho de 2019, a proibição de bloqueio foi estendida às emendas inseridas coletivamente no Orçamento. A proposta nascera na Câmara em fevereiro de 2015.
Ressuscitar as emendas RP 9 em 2019 foi a tacada final do Centrão na tomada do Orçamento. Bolsonaro resistiu por duas vezes à tentativa do grupo de usar o rascunho do Orçamento de 2020, a chamada LDO, para proibir o bloqueio daquelas emendas. O líder do Centrão era Lira. O então chefe das negociações do governo com o Congresso, general Luiz Eduardo Ramos, topara o jogo. Foi esse episódio que levou outro general-ministro, Augusto Heleno, do GSI, a dizer, em fevereiro de 2020: “Não podemos aceitar esses caras chantageando a gente. Foda-se”. O presidente, por fim, aceitou. E prepara-se para filiar-se, na terça-feira 30, ao PL, uma das estrelas da bancada fisiológica.
A turma clientelista abusa das emendas para se reeleger e manter o poder. Um parlamentar inclui no Orçamento federal verba para uma obra em sua base e ganha um discurso para pedir voto na eleição. A novidade, diz Jorge Solla, é que, por haver muito dinheiro para as emendas RP 9, o parlamentar insere no Orçamento repasse de verba para uma prefeitura, de sua base ou não, e aí cobra do prefeito o papel de cabo eleitoral. E o prefeito topa, pois tira proveito (político ou não) dos recursos. A mesma parceria tem sido posta em prática entre congressistas e deputados estaduais.
Segundo Rosa Weber, o Congresso criou “um segredo injustificável”
Esse “mercado persa”, afirma Solla, desequilibra o jogo político. Governista leva um monte de verba pública para a base, oposicionista não. É um dos problemas das emendas RP 9. Outro, a corrupção potencial, como se viu nesta reportagem. Mas, anota o petista, há um terceiro pepino, e este seria de peso maior, a fragmentação do Orçamento federal. Médico sanitarista, ex-secretário municipal e estadual da Saúde, Solla sublinha que construir um hospital custa caro. Seria preciso juntar várias emendas, só que estas agora são desenhadas na base do cada um por si. Em passagem recente pelo Congresso, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, comentou que 12% de seu caixa é fruto de emenda, o que atrapalha pensar o Orçamento de modo universal. “Se Lula for eleito, vai encontrar muita dificuldade na questão orçamentária”, diz Solla. Outro petista tasca: “O orçamento secreto vai ajudar a eleger uma bancada grande do Centrão, e o Centrão vai tentar interditar o Lula”.
No PSDB, há diagnóstico parecido sobre o abacaxi orçamentário. “As emendas de relator são uma invenção da fisiologia, dinheirão na mão de deputados e senadores, termina acostumando essas pessoas a tanto”, diz Arthur Virgílio, um dos concorrentes das prévias tucanas, chefe da articulação política no governo FHC. “Não adianta a gente ganhar a eleição para continuar com emenda de relator.”
CRÉDITOS DA PÁGINA: PABLO VALADARES/AG. CÂMARA – ARQUIVO/STF E SUAMY BEYDOUN/AGIF/AFP E LULA MARQUES/AGÊNCIA PT
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.
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