Política
Cadeira elétrica
Cláudio Castro é o sexto governador chamuscado após sentar-se no amaldiçoado trono do Palácio Guanabara


O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro retoma esta semana o julgamento que pode levar à cassação do governador Cláudio Castro, do PL, por abuso de poder econômico e político, em processo que atinge também os dois nomes seguintes na linha sucessória estadual: o vice-governador Thiago Pampolha, do MDB, e o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Rodrigo Bacellar, do União Brasil. O trio é apontado como o maior beneficiário de um esquema que possibilitou o “pagamento secreto”, na boca do caixa, de 220 milhões de reais a pessoas que, segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral, não prestaram qualquer serviço ao governo e, na prática, atuaram como cabos eleitorais.
Em outra frente, esta criminal, Castro teve quebrado seu sigilo fiscal, bancário e telemático pelo Superior Tribunal de Justiça no âmbito de uma investigação na qual é acusado de receber propina e fraudar contratos da Fundação Leão XIII, braço de assistência social do governo fluminense, quando ainda era vice-governador. A eventual cassação ou prisão de Castro dará continuidade à “maldição” do Rio, que teve cinco dos seus últimos seis governadores punidos pela Justiça.
Relator do caso no TRE do Rio, o desembargador Peterson Simão votou pela cassação de Castro, Pampolha e Bacellar. Segundo a denúncia, o governo utilizou indevidamente o Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio de Janeiro (Ceperj) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) para fazer os pagamentos com finalidades eleitoreiras, fato que, segundo o entendimento de Simão, “desequilibrou a disputa em 2022 e favoreceu a reeleição do governador”, a quem apontou como mandante do esquema: “Ele era o agente público detentor do poder político que se irradiou em todos os atos”.
Além do risco de perder o mandato na Justiça Eleitoral, ele enfrenta múltiplas acusações da PGR na esfera criminal
Para tentar esconder a compra de apoio e votos, Castro autorizou a criação de 27 mil cargos-fantasma no Ceperj e 18 mil na Uerj, diz a denúncia. Após um pedido de vista, o julgamento recomeça na quinta-feira 23, após a conclusão desta reportagem. Se a cassação do governador for confirmada, ainda cabe recurso ao Tribunal Superior Eleitoral. Por ora, a defesa do governador tenta tirar o processo da alçada da Justiça Eleitoral para levá-lo à Justiça comum. “Tudo o que foi dito pela acusação diz respeito a direito administrativo. Esta matéria está posta, sim, mas não na Corte especializada. Não há conexão eleitoral com os fatos ventilados”, afirma o advogado Eduardo Damian.
Já no processo que pode levá-lo à prisão, Castro é acusado pela Procuradoria Geral da República por corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro, fraude em licitações e organização criminosa. As acusações remontam ao período de 2017 a 2019, quando era vereador ou vice-governador e teria recebido 400 mil reais em propina por facilitar fraudes ou irregularidades em contratos públicos: “Há indícios suficientes da participação de Castro como agente político apoiando a atuação ilícita”, avaliou o ministro Raul Araújo, do STJ. Em 2019, Castro foi flagrado ao sair de um shopping com uma mochila recheada com 100 mil reais em espécie, segundo a Polícia Federal, após reunião com os donos da Sevlog, empresa beneficiária do esquema na Fundação Leão XIII. Em sua defesa, o governador afirma que “a investigação corre há cinco anos sem que nenhum novo elemento tenha aparecido”, fato que comprovaria sua inocência.
Um ano e meio após vender a lucrativa Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) à iniciativa privada por 22,6 bilhões de reais e, com isso, turbinar sua campanha à reeleição, Castro também se vê às voltas com o praticamente impagável passivo de quase 200 bilhões contraído pelo governo estadual junto à União. Acusado pelo Ministério da Fazenda de violar o acordo do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), o governo do Rio recorreu ao Supremo Tribunal Federal para interromper o pagamento da dívida e segue em negociações com o ministro Fernando Haddad e também com a Advocacia-Geral da União. Em decisão liminar que atende parcialmente aos pleitos do governador, o ministro Dias Toffoli suspendeu o aumento de 30% nas parcelas da dívida e determinou que os pagamentos sejam feitos com base nos valores do ano passado. Com isso, o pagamento a ser efetuado pelo Rio ao longo de 2024 cairá de 9,6 bilhões de reais para 4,9 bilhões. Ainda assim, com ameaça de faltar dinheiro até para o pagamento dos salários dos servidores pairando no ar, Castro vive desgaste redobrado.
Passivo. Haddad acusa o governo fluminense de violar acordo de recuperação fiscal – Imagem: Diogo Zacarias/MF
“O RRF só funcionou para arrochar o servidor público, os investimentos necessários não foram feitos. No mais, o que vimos foi uma opção eleitoreira e fisiológica. Não temos hoje nem a Cedae nem os recursos dela”, lamenta Izabel Costa, diretora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação. A sindicalista avalia que o impeachment de Castro “é algo muito difícil” por depender de outros atores: “Há um conluio que envolve setores do Judiciário e do Legislativo. Essa é a única explicação plausível para que o governador ainda se mantenha no cargo”. Costa não aposta, porém, suas fichas no futuro político de Castro: “Ele corre o risco de chegar ao final do mandato como peça figurativa porque na verdade está sendo sustentado pelos poderes que de fato mandam no Rio”. Os movimentos sociais, diz, irão ampliar a pressão para que Castro e seu campo político sejam apeados do poder: “Precisamos de uma alternativa democrática e popular no Rio. Não podemos trocar seis por meia dúzia, seja neste processo atual de impeachment, se ele houver, seja no processo eleitoral de 2026”.
Para Ricardo Ismael, cientista político e professor da PUC Rio, Castro “conseguiu a proeza de ser reeleito”, mas o Estado continua com sérios problemas fiscais. “O governador já gastou o dinheiro da Cedae e está sem margem de manobra, sempre tentando ver se consegue mais alguma negociação com o governo federal para tentar melhorar um pouco o caixa”, observa. “Existe precedente de governador que perdeu o mandato por conta da utilização da máquina durante a campanha eleitoral. É claro que a Justiça Eleitoral não vai agir de maneira açodada. Trata-se de um governador eleito no primeiro turno, haverá cautela no julgamento. Mas, se realmente as evidências forem fortes e isso convencer os desembargadores no Rio e depois no TSE, possivelmente vai haver a perda do mandato e a convocação de novas eleições.”
Professora da UFRJ, onde coordena o Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada, Mayra Goulart avalia que Castro torrou os recursos obtidos com a Cedae, mas continua sem ter uma base eleitoral própria. “Ele fica refém da Justiça porque não tem moeda de troca em uma eventual proteção. A sua relação com o clã Bolsonaro não é das melhores e ele não consegue sequer esse apoio vindo de cima. Daí a sua vulnerabilidade em relação a esses dois processos”. Goulart ressalta que políticos com pretensão de ampliar a sua atuação no Rio acabam tendo “um certo imperativo” de se aproximar de lideranças políticas de expressão local que se apresentam como uma rede clientelar: “No caso de Castro, isso foi feito de maneira muito exitosa. Ele é um político sem base eleitoral própria, então investiu muito nessa relação com outros políticos de expressão local e fez a sua trajetória rumo à reeleição a partir de apoios conquistados por meio da distribuição de recursos da privatização da Cedae”.
Sem renovação de lideranças, o estado está cada vez mais refém do fisiologismo
O deputado estadual Carlos Minc, do PSB, classifica como “catastrófica” a situação política de Castro: “A base do governo é uma miscelânea de políticos no que seria um Centrão fluminense, sendo que ao longo do tempo esses políticos, sobretudo os bolsonaristas, começaram a pedir a cabeça de secretários. Conseguiram demitir vários deles e colocar outros indicados por eles próprios, inclusive na área de Segurança. Não tem fundo ideológico ou programático, é ampliar o espaço deles mesmos. Então, a base acaba sendo mais fiel ao Bacellar do que ao próprio governador, e agora ele está completamente enredado com essa questão da contratação de funcionários fantasmas”.
Já o deputado Luiz Paulo Corrêa da Rocha, do PSD, avalia que o governador faz o necessário para tentar resolver a delicada situação econômica do Rio junto à União, mas também foi responsável por agudizar essa situação ao transmitir uma falsa realidade em 2022: “Ele podia ter reagido à época. Mas, seis meses antes da eleição, com Bolsonaro como aliado, silenciou ou disse que estava tudo bem financeiramente. O dinheiro da Cedae foi se esvaindo e, quando acabou, o Estado se deu conta de que está quebrado de novo. O governador tinha que ter lutado pelo Rio em 2022”.
Se for cassado ou preso, Castro entrará em um clube já integrado pelos ex-governadores Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Luiz Fernando Pezão e Wilson Witzel, todos condenados em algum momento. Para Rocha, trata-se de um fenômeno de difícil análise sociológica. “Primeiro, era o financiamento das campanhas, com doações de empresas, um prato feito para irregularidades. Mudou-se a regra, mas o uso da máquina ainda é muito forte. Há também uma visão horrorosa e patrimonialista de não entendimento de que o erário é do povo. Muitas vezes as pessoas estão no poder e administram os bens do Estado como se fossem recursos próprios.”
Atingidos. Cabral, Pezão, Garotinho, Rosinha, Witzel… A lista de governadores enrolados com a Justiça parece não ter fim – Imagem: Tânia Rêgo/ABR, Marcos Corrêa/PR e Roberto Stuckert Filho/PR
Ismael diz não acreditar na “maldição” que torra quem quer que se sente na cadeira elétrica do Palácio Guanabara. “Há uma crise de renovação de liderança. Com o encerramento do ciclo do PMDB, que durou 12 anos em dois governos do Cabral e um do Pezão, ficou um vácuo político”, observa. “Witzel veio de fora do sistema, nunca tinha participado da política e durou pouco tempo. Castro era um parlamentar desconhecido quando foi indicado a vice. O Rio não consegue mais forjar lideranças como no passado, quando havia Brizola, Marcelo Alencar ou Moreira Franco”.
Diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ, Luiz Eduardo Motta acrescenta que, do governo Garotinho em diante, o Rio passou a sofrer também com o aumento do fisiologismo. “O ocaso do brizolismo deu espaço a setores neopentecostais na política fluminense, seguido pelo surgimento e crescimento das milícias”, diz. Motta avalia que o Rio vive um caos estrutural há muito tempo: “Não é uma questão meramente conjuntural. A única solução que vejo é dar uma guinada para um governo progressista. O nome, eu não vou dizer porque não sei”. •
Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cadeira elétrica’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.