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Cabresto maquiado

ONG se mobiliza para combater a compra de votos no Semiárido nordestino

Moeda de troca. No período eleitoral, é comum ver políticos abastecendo comunidades com carros-pipa - Imagem: Rodrigo Martins
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No fim de agosto, um candidato a deputado federal esteve no assentamento Vale Tapicuru, no interior da Bahia, com a relação de todos os assentados. Aliado do presidente Jair Bolsonaro, prometeu regularizar a posse das terras em troca de votos. Os títulos foram entregues antes das eleições de outubro, como manifestação de “boa-fé”. Dias antes, durante uma reunião em um sindicato rural baiano, um representante do governo federal comprometeu-se com um líder comunitário a fornecer carros-pipa para a comunidade semanas antes da votação. Em outro episódio no Semiárido nordestino, a moeda de troca foi a instalação de cisternas de plástico.

As práticas clientelistas repetem-se a cada eleição. Coordenador da Fundação de Apoio aos Agricultores Familiares do Semiárido da Bahia e morador do município de Conceição do Coité, no interior do estado, Urbano Carvalho acumula numerosos exemplos de exploração da miséria do eleitorado. “Os políticos se aproveitam da fragilidade da pessoa. Chegam na casa do eleitor e veem que não tem reboco, está faltando um banheiro, ou, se está na seca, falta água. Escolhem sempre a maior necessidade. A compra do voto se dá abertamente, como um balcão de negócios”, afirma Carvalho. Mesmo quem recusa a benesse, acrescenta, prefere não denunciar o crime eleitoral, por medo represálias. O difícil acesso a direitos básicos, como saúde, moradia e alimentação, também tem motivado o comércio em torno do voto, seja na troca por uma consulta ou exame médico, um saco de cimento ou, mais recentemente, com o aumento da fome, por comida.

Na região castigada pela seca e pela desigualdade, 1,3% das propriedades rurais detêm 38% das terras agricultáveis

“Algumas associações de trabalhadores rurais estão sendo cooptadas por candidatos, principalmente aqueles que disputam uma vaga na Câmara dos ­Deputados”, destaca Carvalho, salientando que o perfil dos assediadores é o de quem tem maior poder econômico, independentemente do partido político, e que a prática vem sendo naturalizada pelos próprios eleitores, acostumados a trocar o voto por aquele que “oferecer mais”. Não é de hoje que a seca é explorada politicamente. O período de estiagem, inclusive, coincide com a campanha eleitoral. Conceição Borges, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Feira de Santana, lembra que a seca começa a castigar em setembro, no auge da campanha eleitoral, quando se inicia também a troca de votos por água. “O carro-pipa só chega na comunidade onde a liderança é ligada a determinado político. A fome chegou com toda a força e a gente já observa as trocas. Tem candidato oferecendo diária de 30 a 50 reais para a pessoa trabalhar, e toda a família fica grata e vota nele, como se ele tivesse feito um grande favor. A gente nem pode questionar, porque elas realmente estão passando necessidade.”

As pessoas que vivem no Semiárido brasileiro e “vendem” o voto são vítimas da desigualdade social. A região tem como característica uma grande concentração de terra e de água que, historicamente, estão nas mãos de uma pequena elite. De acordo com a Articulação do Semiárido, conhecida pela sigla ASA, esta situação é responsável por um alto nível de miséria e exclusão social e de degradação ambiental, o que contribui sobremaneira para a crise socioambiental e econômica vivida na região. É no ­Semiárido onde está pelo menos 28,82% de toda a agricultura familiar brasileira, ocupando 4,2% das terras agricultáveis, enquanto 1,3% das propriedades rurais com mais de 1 mil hectares detêm 38% dessas terras. Em Feira de Santana a seca já começa a castigar a população, colocando as pessoas ainda mais sujeitas ao assédio dos candidatos. Lá, a perda da safra de feijão e milho chega a 50%. “A gente investe na plantação e não tem retorno, enquanto quem tem recurso sai por aí comprando voto. Chega na zona rural e está lá a promessa de construção de cisterna, de extensão de rede de energia, todo tipo de oferta que só acontece em período eleitoral”, diz Conceição Borges.

Chantagem. Os candidatos se aproveitam da maior necessidade das famílias, por isso é tão comum a troca de votos por cisternas ou carregamentos de água no Semiárido – Imagem: Xirumba/ASA e Ricardo Araújo/ASA

A líder sindical também destaca que o sofrimento das pessoas se sobrepõe à venda do voto. “Para essas pessoas, a conjuntura em que vivemos não tem relação com o voto, é algo que não tem importância. Votar branco, nulo ou trocar o voto por qualquer coisa, neste momento, é o que importa”, opina. Naidison Baptista, da coordenação da ASA, coloca em relevo a fidelidade característica da população brasileira, em especial da mais pobre. Ele diz que, ao se comprometer com determinado candidato, o eleitor não o trai nas urnas. “A população tem uma perspectiva ética de ser fiel mesmo naquilo que a mata. É uma ética mortal, venenosa, mas é da índole das pessoas. Muita gente diz ‘eu não tenho nada, só tenho o voto, e se preciso de uma lata de água dou meu voto’. Já ouvi também alguns dizerem que hoje é livre, que vota em quem quiser porque tem água. Ou seja, a água é um instrumento que acorrenta as pessoas”, diz Baptista, acrescentando que o Auxílio Brasil também se converteu, em muitas regiões, em moeda de troca.

“O Auxílio é um elemento central na eleição deste ano. O Poder Público, em vez de beneficiar as pessoas, coloca-se para acorrentá-las. É o aprofundamento da exploração das pessoas. E isso só acontece porque a sociedade ainda não oferece as condições para as pessoas viverem decentemente.” Ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome do governo Lula, a economista ­Tereza Campello corrobora a opinião de Naidison Baptista e diz que o caminho para romper com o clientelismo é tratar as políticas públicas como direito. “Para isso, precisa ter o critério, porque a política pública isenta o gestor da escolha. Deve também ser continuada e não uma política às vésperas das eleições, que a pessoa escolha dar ou não dar, deixando de ser direito e passando a ser um favor.”

Campello. “Sem assegurar direitos, o povo fica à mercê de favores dos políticos” – Imagem: Isadora Pamplona

Campello critica o governo Bolsonaro de aumentar o Auxílio Brasil de maneira provisória, até dezembro, com o claro intuito de se reeleger presidente, sem considerar se tratar de um direito. “Os ministros tiveram a cara de pau de, no dia do aumento do Bolsa Família, ir para a porta da Caixa Econômica cumprimentar as pessoas que estavam indo fazer o saque, dizer que tinha sido feito pelo governo Bolsonaro”, observa. “É um escândalo, rompe completamente com os critérios da administração pública, da impessoalidade, da boa prática pública.”

O geólogo João Suassuna, pesquisador da Fundaj, estuda a situação hídrica do Nordeste há mais de 40 anos, com recorte no Semiárido. Ele já presenciou muitos episódios de clientelismo e exploração da seca na região com vistas a dividendos políticos e faz duras críticas ao uso eleitoral da transposição do São Francisco, segundo ele, um engodo, porque o rio não passa segurança hídrica para atender à demanda prometida. “A gente já está deficitário, operando no vermelho. Essas propostas dos candidatos sobre a transposição são apenas em busca de voto, sem se olhar primeiro a fonte onde vai pegar essa água. Não há segurança hídrica para isso. É preciso ter responsabilidade”, alerta Suassuna. Ele cita a implantação de cisternas para acumular água da chuva e abastecer a população em períodos de estiagem como alternativa, lembrando que os governos Lula e Dilma instalaram 1 milhão de cisternas no Semiárido brasileiro, programa que foi coordenado pela ASA. O problema é que muitas vezes a seca se prolonga e as chuvas não são suficientes para garantir água aos moradores.

“O orçamento secreto é o velho coronelismo, agora com milhões. Não é mais a doação de uma cesta, é o repasse de verbas sem critério algum”, diz Campello

“Nem sempre existem chuvas regulares para abastecimento dessas cisternas. Aí o político monta um esquema de carros-pipa para distribuir água. A água não pode ser tratada dessa forma, como moeda de troca”, conclui ­Suassuna, ­salientando que o governo Bolsonaro não deu sequência ao programa exitoso das cisternas no Semiárido, deixando mais de 40 mil famílias sem o reservatório nas suas casas e à mercê da seca. “A compra de voto é um instrumento histórico usado pelas oligarquias para manutenção do poder, a partir da necessidade concreta da população. Já que os candidatos não têm projeto, apresentam uma proposta mais imediata, de assédio, para atenuar a situação de miséria naquele momento”, denuncia Baptista.

Contra o voto de cabresto, a ASA lançou a campanha Não Troque Seu Voto. Em sua sexta edição, a ação orienta os moradores do Semiárido a votarem em candidatos a partir das propostas que considerem meios que garantam a cidadania das famílias agricultoras da região e apontem alternativas aos principais problemas vividos por elas, como a escassez hídrica, a fome, a insegurança alimentar e a violência contra a mulher rural. O voto feminino tem enfoque especial na campanha. Foram produzidos spots de rádio e vídeos orientando as agricultoras a votarem em mulheres. “A ASA sempre defendeu eleições limpas e que a gente escolha candidatos que tenham na sua plataforma a fidelidade com a convivência com o Semiárido. Se ele usa a seca e a concentração para se eleger, não merece o nosso voto. Passaram-se quatro anos sem fazer nada e agora eles vêm com emendas do orçamento secreto oferecer telha de polietileno. Não troquem seu voto por isso, nem por uma vaga na escola, porque a vaga é sua. Estamos enfatizando junto aos eleitores a perspectiva do direito”, explica Baptista.

Necessidade. O sofrimento das pessoas se sobrepõe à venda dos votos, lamenta Naidison Baptista, da ASA – Imagem: Rodrigo Martins e Victor Moura/CONSEG

Também faz parte da campanha Não Troque Seu Voto a carta Por Um Semiárido Vivo, documento que está sendo entregue aos candidatos. A carta defende um projeto específico para a região, com propostas viáveis para a convivência com o Semiárido e que trazem dignidade para a população dos dez estados recortados para o Semiárido. Fazem parte da região os nove estados nordestinos e o norte e o Vale de Jequitinhonha de Minas Gerais, totalizando cerca 12% do território nacional, com 1.262 municípios e uma população aproximada de 27 milhões de pessoas. É também no Semiárido onde estão mais de 80% das comunidades quilombolas de todo o Brasil.

Para Urbano Carvalho e Conceição Borges, os movimentos sociais e sindical precisam fazer um trabalho de politização permanente junto à população, no sentido de conscientizá-la a não vender o voto. “Se não trabalhar nas escolas com as crianças, que serão adultos no futuro, a gente vai continuar transferindo o problema de pai para filho e nunca vai acabar essa alienação das ­pessoas que vendem o voto”, opina Carvalho. “Tentamos chamar atenção de que o voto não tem preço, e sim consequência. Essa conversa deveria acontecer fora do período eleitoral, no dia a dia, na igreja, na escola, no sindicato”, completa Borges.

O voto não tem preço, e sim consequência, alerta campanha

Campello relembra o coronelismo histórico, definido por Victor Nunes Leal como “um compromisso, uma troca de proveitos entre o Poder Público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”. Na contemporaneidade, o coronelismo ressurge na versão do orçamento secreto. “É o velho coronelismo, agora com milhões. Não é mais a distribuição de uma cesta, é a construção de uma escola, ginásio, de um posto de saúde, sem nenhum critério. A cidade recebe o recurso não por ser a que mais precisa ou a que tem o maior número de pessoas que necessitam. O critério é ‘onde eu tenho voto’. Estamos vendo o ressurgimento da velha prática coronelística, agora com milhões e milhões despejados às vésperas das eleições, de forma secreta e desconhecida. Voltamos ao pior tipo de prática”, dispara.

A compra de voto que perpassa o coronelismo e o clientelismo é crime e pode levar à cassação do registro ou até mesmo do diploma do candidato, além de resultar em multa e deixar a pessoa inelegível por oito anos. Segundo o TSE, o crime prevê ainda pena de até quatro anos de prisão para aqueles que oferecem ou prometem alguma quantia ou bens em troca de votos, e também para o eleitor que receber ou solicitar dinheiro ou qualquer outra vantagem, para si ou para outra pessoa. Para denunciar esse tipo de crime, o eleitor pode utilizar o aplicativo Pardal, da Justiça Eleitoral, e relatar qualquer tipo de irregularidade durante as campanhas eleitorais. Além da compra de voto, o aplicativo tem outras opções de denúncias como uso da máquina pública e propagandas irregulares. As denúncias são encaminhadas ao Ministério Público Eleitoral, órgão competente para apurar os casos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1224 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cabresto maquiado “

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