Política
Briga de foice
A disputa pelo comando da Defensoria Pública da União tem lá seus golpes baixos
Está na mesa do presidente Lula a lista tríplice com os nomes escolhidos pela categoria para comandar a Defensoria Pública da União nos próximos dois anos. O que era para ser uma escolha relativamente simples tornou-se, porém, uma briga digna do UFC. Dois servidores estão no centro da contenda: Tarcijany Linhares, lotada no Ceará, e o atual defensor-geral, Leonardo Magalhães, o mais votado pelos colegas. Completa o trio Fabiano Caetano Prestes, alheio aos “socos e pontapés”.
Linhares conseguiu o apoio de parlamentares do PT e sua candidatura ganhou força por causa de uma pressão de determinados setores da sociedade por mais diversidade em cargos de comando. Como o presidente preferiu indicar aliados confiáveis às mais recentes vagas no Supremo Tribunal Federal, todos homens, a ideia de nomear uma defensora-chefe amealhou certa simpatia. Talvez por isso, um alvo foi pregado em sua testa. Circula em Brasília um arremedo de “dossiê” que acusa Linhares de ser bolsonarista e alinhada a fundamentalistas religiosos. Uma das “provas” seria um post do deputado Pastor Marco Feliciano, do PL, compartilhado pela servidora. Trata-se, na verdade, de uma imagem genérica de uma silhueta masculina com os braços para cima e uma frase bíblica do Livro de Salmos. A defensora é evangélica e não esconde a sua fé.
Deputados petistas também receberam uma mensagem de WhatsApp, supostamente enviada por uma assessora de Magalhães, Mell Faber, que acusa Linhares de apoiar o clã Bolsonaro. No texto, a assessora-chefe de Relações Governamentais da DPU apresenta-se como alguém oriundo “da direita” – até fevereiro foi assessora da senadora Tereza Cristina, ex-ministra da Agricultura no governo anterior –, e alerta: a candidata, apesar de mulher, não seria uma boa escolha.
A assessora prossegue: Linhares poderia ser uma pedra no sapato de Lula, pois o defensor-chefe tem prerrogativa para recorrer contra decisões presidenciais. O aviso parece, no entanto, não ter surtido efeito. Pelos corredores da Câmara, um deputado petista afirmou, em conversa informal, que a defensora continua bem-vista pelos progressistas. Procurada, Faber não atendeu aos pedidos de entrevista. Magalhães nega qualquer relação com o episódio e garante não ter conhecimento das mensagens. Alega, porém, que “num contexto de grande polarização nacional, e no período eleitoral, o fogo amigo e o jogo baixo são comuns”. Caso o episódio ganhe mais repercussão, garantiu, será apurado internamente.
Defensor público há 18 anos, Magalhães ingressou na DPU como estagiário e galgou posições até conquistar o posto mais alto em 2023. “Ser o primeiro negro defensor-geral incomoda, há resistência”, avalia. Ao longo dos dois anos à frente do órgão, diz ter trabalhado para “ampliar a presença da instituição nos municípios”. Para tanto, criou novas assessorias e ampliou a estrutura em áreas em situação crítica. Foi o caso das enchentes. Entre seus apoiadores está Toni Reis, diretor-presidente da LGBTQIA+ Aliança Nacional. “Temos um apreço pela forma como o doutor Leonardo conduziu a DPU e como fala com os movimentos sociais.”
Tarcijany Linhares, segunda na lista tríplice, é alvo de uma campanha de difamação
Em 2021, Magalhães viu-se, no entanto, no centro de um burburinho protagonizado pela ex-esposa do então presidente Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle. Durante a CPI da Covid, foram divulgadas mensagens do celular do lobista Marcony Faria, nas quais ele teria pedido à mãe de Jair Renan Bolsonaro, o 04, para defender a escolha do atual defensor-chefe, à época em terceiro lugar na lista tríplice. Prontamente, Valle enviou uma mensagem ao então ministro do Tribunal de Contas da União, Jorge Oliveira, conselheiro do ex-marido. Magalhães, escreve Ana Cristina Valle, “é um candidato alinhado com os nossos valores, técnico e apoiador do Jair”. E completa, sem pontuação: “Sei que os outros candidatos são de esquerda se puder fazer isso por mim serei muito grata um abraço”.
O atual defensor-chefe afirma não conhecer o lobista e a ex-mulher de Bolsonaro e nega ter pedido apoio à dupla. O então presidente escolheu para o posto Daniel Macedo. “Não só não tenho alinhamento com o bolsonarismo como não fui o escolhido”, ressalta.
Linhares, por sua vez, lamenta estar no meio do fogo cruzado e também nega alinhamento à família Bolsonaro ou a qualquer outro líder de extrema-direita. “Em debates públicos, especialmente quando envolvem mulheres em posição de liderança, é comum sermos lidas sob lentes que enfatizam emoção ou falta de racionalidade, enquanto os homens são avaliados por outros parâmetros”, filosofa. A candidata destaca uma vida dedicada ao serviço público, “sempre ao lado dos hipervulneráveis: ribeirinhos, indígenas, quilombolas, população de rua, migrantes e mulheres vítimas de violência”. A respeito de sua religiosidade, acrescenta: “A Defensoria Pública da União é uma instituição de Estado e suas lideranças devem agir com absoluta observância à Constituição, à legislação e aos princípios republicanos. O Brasil é um Estado laico”. A cearense atuou na Amazônia, no Semiárido, no Norte e Nordeste e foi chefe da DPU em Santarém, no Pará, em Teresina, capital do Piauí, e em Sobral, em seu estado natal.
Defensora nacional de Direitos Humanos entre 2024 e 2025, Carolina Castelliano, primeira mulher a ocupar o cargo, não conhecia os dois principais indicados da lista até passar a conviver com ambos no ano passado. Com 15 anos de atuação, já viu cenários internos distintos e reprova a gestão de Magalhães: “Trabalhou para diminuir a autonomia dos defensores de direitos humanos”. Segundo Castelliano, o colega recusou-se a nomear profissionais indicados nas votações internas, sem dar explicações, e instituiu mandatos temporários, decisão contrária às diretrizes do órgão. Além disso, diz, “trabalhou para desestruturar o sistema interno”. Linhares, ao contrário, teria atuado “de forma contundente para defender a autonomia dos defensores e os mecanismos da instituição”.
O ex-presidente do Conselho Nacional de Ouvidorias e Defensorias Públicas do Brasil, Willian Fernandes, mostrou-se surpreso com as acusações contra Linhares, “uma defensora que representa os movimentos sociais na DPU”. Vice-presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e advogado de movimentos por habitação, em especial a Frente de Luta por Moradia, Fernandes afirma que a candidata conta com o apoio dessas entidades. “Acreditamos que seria uma boa oportunidade para um governo progressista escolher uma mulher nordestina para chefiar pela primeira vez a DPU”. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Briga de foice’
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