Política

“Brasil vai perder muitos cérebros com fim do Ministério da Ciência”

Astrofísica brasileira Duília de Mello, que trabalha na Nasa, critica fusão das pastas de Ciência e Comunicações pelo governo interino

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Por Roberta Jansen

Cientistas denunciam um retrocesso político e estratégico por trás da fusão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação com o das Comunicações no Brasil. A pasta, criada em 1985 como parte do processo de redemocratização, foi extinta num momento de crise política profunda, após o afastamento da presidente Dilma Rousseff. O movimento reabre o debate sobre o papel do conhecimento no desenvolvimento nacional.

As principais instituições científicas do país, como a Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Fiocruz e diversas universidades federais, já se pronunciaram contrárias à fusão. Cientistas foram às ruas em diversas manifestações pedindo a volta do MCTI.

Em entrevista à DW, a astrofísica brasileira Duília de Mello, que trabalha na Nasa e na Universidade Católica da América (CUA, na sigla em inglês), em Washington, frisa que investir em ciência é cuidar das “raízes do país”. E considera preocupante os políticos brasileiros não compreenderem esse fato.

DW: Como você vê a extinção do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação?

Duília de Mello: É o fim da picada, fiquei deprimida. É um retrocesso de décadas.

DW: Por que é um retrocesso?

DM: Quando você acaba com um ministério dessa envergadura, você está também acabando com toda uma estrutura para a administração da ciência e tecnologia no país. Sob o ministério estão, por exemplo, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Agência Espacial Brasileira, o Laboratório de Luz Síncrotron, o Observatório Nacional. Não temos mais um guarda-chuva, é um problema complexo; a quem todas essas instituições se reportam? O orçamento de todos os laboratórios de pesquisa do país vem do ministério, é importante ter um órgão que administre tudo isso, que estabeleça as prioridades da ciência.

DW: A fusão foi um erro?

DM: Foi um gesto irresponsável, para dizer o mínimo, principalmente numa área tão importante para o Brasil. Poderiam ter enxugado o ministério, diminuído a estrutura, mas não acabar com ele assim, e ainda botar junto a outro ministério com o qual não tem nenhuma afinidade. Vejo com muita preocupação essa medida do governo, que, aliás, é um governo interino. Não conheço a lei, mas acho que um governo interino não poderia estar fazendo todas essas mudanças tão rapidamente.

DW: Como é a repercussão dessa medida no exterior?

DM: É terrível, passa uma visão muito ruim do Brasil. Até porque o país participa de vários projetos internacionais, como o do Laboratório LHC [o grande colisor de partículas, na Suíça], o Observatório Europeu. Enfim, são muitos projetos. Eu não queria estar na pele desses pesquisadores.

DW: Em relação aos pesquisadores mais jovens, que estão se formando agora, qual é o impacto dessa medida?

DM: Ciência tem que ser levada a sério. O Brasil vai perder muitos cérebros com essa medida e dá um sinal muito ruim para os jovens que investiram na carreira, que estão começando carreira. Eles têm possibilidade de sair do país e é possível que o façam. Realmente não vejo nada positivo nesta decisão. Fico muito preocupada.

DW: O ministério foi criado no governo de Tancredo Neves, em pleno processo de redemocratização do Brasil após mais de 20 de ditadura. De lá para cá, o que mudou na ciência brasileira?

DM: O ministério organizou a ciência brasileira, e isso é uma coisa muito importante. Os grandes laboratórios e os institutos passaram a ser todos ligados ao ministério e isso fez com que melhorassem muito. Muitos deles, por exemplo, eram improdutivos, não havia prioridades como tem hoje. Os recursos e as prioridades passaram a ser coordenados. As sociedades científicas têm contato direto com o ministério. E é por isso que a ciência brasileira está indo bem.

DW: Então por que tanta gente critica a ciência brasileira?

DM: Claro que a ciência brasileira poderia estar melhor, claro que precisa de mais recursos, mas está indo bem. A gente vê melhoras significativas nesses mais de 30 anos. O número de publicações de cientistas brasileiros aumentou exponencialmente [o Brasil é o 13º país no ranking mundial de produção científica], a participação do Brasil em projetos científicos internacionais de grande porte também aumentou. Hoje há muitos cursos de doutorado no Brasil, bons cursos, ninguém mais precisa ir para o exterior para fazer um bom doutorado. E isso tudo é fruto do ministério. Ele também criou, há uns dez anos, toda uma área para divulgação da ciência, o que nunca existiu no Brasil, para popularizar a ciência, levá-la às regiões mais carentes. Não consigo entender como a ciência não é prioritária num país como o Brasil, acho preocupante ter que explicar a importância da ciência para os políticos.

DW: Um argumento usado para justificar o fim do MCT é o de que nos Estados Unidos não há um ministério da ciência e as coisas funcionam muito bem.

DM: Sim, claro. Mas aqui é diferente, porque todos esses órgãos estão diretamente ligados à presidência, à Casa Branca. É o caso da Nasa, do Instituto Nacional de Saúde. O sistema é diferente. Então, se a proposta fosse reformular o Brasil, fazer uma reforma política estrutural, aí tudo bem. Mas não foi isso que foi proposto.

DW: Em momentos de crise, alguns países optaram por um caminho inverso e aumentam o investimento em ciência. Como você avalia essa decisão?

DM: A Índia está fazendo isso. Já, já vamos começar a ver as consequências desse movimento. O país está investindo em ciência de ponta, criou um programa espacial, lançou um satélite, está fazendo testes com um ônibus espacial. Ou seja, decidiu que a espacial seria uma dessas áreas a receberem investimento para impulsionar as outras. A Coreia do Sul é outro bom exemplo, apesar de ser bem menor que o Brasil. O país investe maciçamente em ciência e educação e conseguiu mudar completamente em algumas décadas. De um país desconhecido passou a ser hoje líder em diversas áreas. Cada vez mais se vai ouvir falar da índia, que é parte do Brics. Há muita afinidade e acho que mais e mais vamos saber de histórias de sucesso, apesar de tantos problemas que o país tem, e ainda com uma população enorme.

DW: Como você explicaria a uma criança a importância da ciência no desenvolvimento de um país?

DM: Investir em ciência é investir nas raízes do país. Para as árvores darem frutos, têm que ter uma raiz forte. Ciência e educação são as raízes de um país. Formam a base do país. “Ah, mas e o transporte”, alguém pode perguntar. Sim, o transporte é importante, mas é um ramo, não é a raiz. Primeiro a gente inventou a roda, depois fez o carro.

DW: Qual o papel da ciência no crescimento?

DM: Para um país ser líder, ocupar o ranking mundial com dignidade, tem que ter infraestrutura para ciência, tecnologia e inovação; ou será sempre uma árvore capenga, que qualquer ventinho derruba. E precisa de adubos, dos investimentos, da formação dos nossos doutores e professores para que passem esse conhecimento adiante. Não pode haver uma troca de presidente e tudo isso acabar. Falta essa visão de longo prazo, independente, que não seja vulnerável à política.

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