Política
Bolsonaro retira condecoração de cientistas dois dias após concedê-la
Uma comissão científica havia indicado Adele Benzaken e Marcus Lacerda: ‘O que me passa é que o presidente não leu o que estava assinando’
O presidente Jair Bolsonaro retirou a condecoração de dois cientistas nesta sexta-feira 5, em publicação no Diário Oficial da União. A decisão envolve a médica sanitarista Adele Benzaken, diretora do Instituto Leônidas & Maria Deane da Fundação Oswaldo Cruz, e o médico Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado.
O governo havia concedido o título de Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico aos dois profissionais em 3 de novembro, no mesmo ato em que Bolsonaro homenageou a si mesmo como “Grão-Mestre”.
O decreto que “torna sem efeito” a condecoração dos dois médicos não apresenta justificativas. Porém, sabidamente, os profissionais envolvidos têm posições científicas que incomodam o governo.
Adele Benzaken era diretora do Departamento de HIV/Aids do Ministério da Saúde e foi demitida por Bolsonaro em 2019, na gestão de Luiz Henrique Mandetta. Em entrevista a CartaCapital à época, a médica havia apontado críticas ao governo federal em relação às iniciativas dedicadas à saúde pública.
Já Marcus Lacerda chegou a receber ofensas e ameaças por provar que a cloroquina não é eficaz contra a Covid-19, a partir de um estudo realizado em 2020. Conforme noticiou a própria Fiocruz, o médico precisou de escolta armada por semanas para se proteger dos ataques.
Ouvida pela reportagem, Adele Benzaken declarou que chegou a ficar surpresa ao saber que o governo lhe havia concedido alguma homenagem, mas logo descobriu que os dois nomes tinham sido indicados por uma comissão técnica formada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e pela Academia Brasileira de Ciências.
“O que me passa é que o presidente e a sua equipe não leram o que estavam assinando e fizeram essa homenagem para duas pessoas às quais, no passado, eles demonstraram desagrado. Pela reação que ocorreu, ele resolveu revogar a homenagem”, afirmou a médica. “Nós somos a favor da ciência, somos profissionais, pesquisadores, acreditamos e seguimos a ciência.”
Já Marcus Lacerda disse que o Palácio do Planalto precisa se manifestar.
“Agraciados não comentam comendas. Só quando ganham. Quando não ganham, apenas continuam trabalhando duro para um dia ganhar”, declarou o médico. “Não nos expusemos. Eles sim.”
Instituições científicas reagem
A SBPC emitiu nota em que diz que “cumprimenta os cientistas e pesquisadores agraciados com a Ordem Nacional do Mérito Científico e, embora tenha conhecimento do regulamento referente a essa premiação, expressa sua convicção de que tal condecoração deve ser destinada a quem contribuiu decisivamente para o progresso da ciência e da cultura brasileiras”.
Já a ABC declarou que repudia “politização” da Ordem Nacional do Mérito Científico.
Veja nota na íntegra:
NOTA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
A Ordem Nacional do Mérito Científico não pode ser objeto de expurgos políticos
A Diretoria da Academia Brasileira de Ciências manifesta sua indignação e seu protesto pelo expurgo de Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, notáveis cientistas, da lista de agraciados com a Ordem Nacional do Mérito Científico, publicada em 3 de novembro de 2021 no Decreto assinado pelo Presidente da República, que na data de hoje resolve retificar o decreto que assinou.
Esse ato, inédito no país e típico de regimes autoritários, é mais um ataque à ciência, à inovação e à inteligência do país. Ciência e inovação estão sendo debilitadas por uma política econômica equivocada, que mira o horizonte imediato, com medidas que prejudicam o futuro do Brasil. Atitudes negacionistas, com ataques irresponsáveis à evidência científica, prejudicam o desenvolvimento nacional e afetam diretamente a saúde da população.
A Ordem Nacional do Mérito Científico, fundada em 1993, é um instrumento de Estado para reconhecer contribuições científicas e técnicas de personalidades brasileiras e estrangeiras. Está regulamentada por diversos decretos, o último dos quais sendo o Decreto 10.039 de 3 de outubro de 2019, que altera o Decreto 4.115 de 6 de fevereiro de 2002. Este já definia um Conselho da Ordem, constituído pelos Ministros de Ciência e Tecnologia, Relações Exteriores, Indústria e Comércio e Educação. Estabelecia também que o Presidente da República é o Grão-Mestre da Ordem e o Ministro de Estado da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações é o Chanceler, e que “o Grão-Mestre, o Chanceler, os Membros do Conselho da Ordem e o Secretário-Executivo da Ordem são agraciados na classe de Grã-Cruz, que conservarão”. Além disso, instituía uma Comissão Técnica, formada por três membros indicados pelo Ministro de Ciência e Tecnologia, três pela Academia Brasileira de Ciências e três pela SBPC, incumbida de apreciar o mérito das propostas. O Decreto de 2019 manteve essa estrutura, substituindo o Ministério de Indústria e Comércio pelo Ministério da Economia.
A última reunião da Comissão Técnica foi realizada em 2019. Os nomes de cientistas que constam da lista de agraciados, recentemente anunciada, teve sua origem naquela reunião, onde o mérito científico foi o único balizador para a inclusão de um nome na lista. O presidente da República, como Grão-Mestre da Ordem, deveria preservar a história e o prestígio que a Ordem traz para a ciência no Brasil. Mas não é isso que a recente atitude do Presidente demonstra.
É inaceitável que se pratique o expurgo de cientistas que têm contribuído, com integridade e competência, para o desenvolvimento nacional e a saúde da população. Protestamos, como cientistas e cidadãos, contra essa escalada autoritária, que representa um ataque frontal ao espírito da Ordem Nacional do Mérito Científico. E reivindicamos o retorno à lista dos nomes arbitrariamente retirados.
Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2021.
Luiz Davidovich
Presidente da Academia Brasileira de Ciências
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