Política
Bolsa estuprador
O relator Emanuel Pinheiro Neto conseguiu o que parecia impossível: tornar mais cruel o Estatuto do Nascituro


No apagar das luzes, a bancada fundamentalista e religiosa na Câmara dos Deputados corre contra o tempo para aprovar um projeto que criminaliza o aborto, incluídos os previstos em lei, e ataca os direitos reprodutivos das mulheres. Trata-se do Projeto de Lei 478, de 2007, sobre o Estatuto do Nascituro, proposta que define a vida a partir da concepção e confere ao embrião os mesmos direitos de todos os brasileiros. O PL estava na pauta da Comissão dos Direitos das Mulheres na quarta-feira 14, mas depois de uma reunião tumultuada, o relator Emanuel Pinheiro Neto, do MDB de Mato Grosso, pediu prazo extra antes de colocar o texto em votação, o que deve acontecer na próxima semana, vésperas do recesso parlamentar. No relatório, Pinheiro Neto classifica o nascituro como um ser humano existente, porém não nascido, o que lhe garantiria proteção do Estado.
Enquanto o projeto trata embriões e fetos como sujeitos de direitos, desconsidera todo e qualquer direito da mulher e nega a legislação em curso. Desde 1940, o aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de violência sexual ou coloca em risco a vida da mulher. Em 2012, o STF autorizou a interrupção da gestação em casos de feto anencéfalo, ou seja, sem cérebro. Pinheiro Neto afirma, porém, no texto: “Ainda que seja pequena a expectativa de duração da vida extrauterina, a proteção do nascituro deve ser efetivada” e “mesmo em casos como a anencefalia, há o normal desenvolvimento físico do feto.”
Em outro trecho, o parlamentar trata o nascituro como uma “pessoa em situação tão vulnerável quanto a da mulher”, mas afirma que “o feto é o lado mais fraco da relação” e, portanto, “deve receber absoluta prioridade nos termos da Constituição Federal”. Também sugere como alternativa a uma gestação indesejada em que a mulher seria obrigada a levar a gravidez até o fim o incentivo da adoção como política pública.
O projeto de lei não só dificulta o aborto, mas naturaliza a violência contra as mulheres
Entidades e especialistas defensores dos direitos reprodutivos das mulheres assinaram um documento enviado à Comissão no qual rebatem cada ponto do relatório. “A gente devia debater como faz para avançar nos direitos sexuais e reprodutivos e não no apagar das luzes do governo Bolsonaro ter uma tentativa de disputar a agenda. Eles perderam as eleições, mas não entregam a agenda derrotada nas urnas”, salienta Sâmia Bomfim, deputada do PSOL. A agenda citada pela parlamentar pautou os quatro anos do governo Bolsonaro, com várias tentativas de retrocessos em relação aos direitos reprodutivos. O próprio Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandando por Damares Alves até abril deste ano, agiu em vários momentos para dificultar o aborto legal. Damares tentou pessoalmente impedir o procedimento em uma menina de 10 anos vítima de estupro. À época, a ministra orientou auxiliares a pressionar o hospital e familiares da criança. No fim, a vítima teve de sair do Espírito Santo e ser levada a Pernambuco para ser submetida a um aborto seguro.
A tentativa de criminalização é, no entanto, anterior. A pauta ganhou força a partir de 2013, quando o pastor Marco Feliciano, então deputado federal, foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, uma das tantas medidas urdidas pelo evangélico Eduardo Cunha, presidente da Casa no período, para atazanar a presidenta Dilma Rousseff. “Desde o Cunha, quando presidente da Câmara, que o Estatuto do Nascituro é requerido pelos homens. Eles se sentem muito à vontade para pensar, legislar, fazer relatório, escrever parecer sobre os nossos direitos. É o retrato acabado do Parlamento brasileiro, a expressão do machismo e da força do patriarcado colonial. Estão legislando por nós sem a nossa presença”, critica Joluzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria, o CFemea. “O que implica uma mulher levar ao fim uma gestação de um bebê sem nenhuma possibilidade de vida, fetos anencéfalos, ou meninas de 10 anos grávidas em situação de abuso? Esse projeto, desde sua origem, visa ao controle sobre a reprodução das mulheres”.
Escárnio. Especialistas denunciam a naturalização do estupro no projeto de lei em tramitação na Câmara – Imagem: Agência Câmara/Arquivo
Apesar de impedidas de participar das sessões realizadas na Comissão da Mulher para discutir o tema, entidades feministas procuraram o relator com o intuito de convencê-lo a não colocar o parecer em votação, sob o argumento de que o partido ao qual é filiado faz parte da base de apoio do governo Lula, que será empossado em poucos dias. “Além do projeto obrigar que crianças estupradas tenham o bebê, um dos apensados tem até previsão de pagamento de pensão, o que tem sido chamado de bolsa estupro. Em caso de violência sexual e de o estuprador ser identificado, ele teria de pagar pensão alimentícia. Se não for identificado, o Estado paga. É assim: ‘não pode abortar, fique tranquila porque o estuprador vai pagar a pensão’. É um nível de crueldade e sofrimento que não é razoável”, destaca Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta.
O PL também é chamado de Estatuto do Estuprador, espécie de prêmio aos abusadores. “Ao reconhecer a paternidade de crianças resultantes de estupro, o projeto transforma a brutalidade de uma violência sexual, crime hediondo, em uma relação legal. Ao garantir a possibilidade de paternidade ao estuprador, o projeto subjuga a integridade das mulheres e contribui para a perpetuação da violência e da impunidade, uma vez que, ao serem vistos como ‘pais’ e não como estupradores, estes homens podem vir a contar com a benevolência de uma sociedade patriarcal, que culpa as mulheres, mesmo quando elas são as vítimas. Com isso, o Estatuto do Nascituro expõe as mulheres e toda a sociedade a diferentes tipos de violência”, acrescenta a psicóloga Vanessa Gebrim.
Enquanto as trevas pairam sobre o Brasil, vizinhos da América Latina legalizam o aborto
Além de tentar impedir os abortos previstos em lei, o projeto de lei proíbe a fertilização in vitro, pois se pressupõe o descarte de embriões, e compromete pesquisas com células tronco. Para a advogada Mayra Cardozo, especialista em Direitos Humanos e Penal, o PL é inconstitucional, por violar uma série de direitos humanos consagrados na Constituição, como o preceito da dignidade humana. “Quando a gente fala em um projeto de lei que vai punir e vedar o que são chamados de aborto humanitário, por exemplo no caso de estupro, e aqueles relacionados a fetos anencéfalos, a gente fala sobre violar o preceito primordial da dignidade humana das mães, das crianças vítimas de estupro. Você não pode assegurar um direito a partir da violação de direitos no âmbito da dignidade humana”, defende Gebrim. Segundo ela, caso o projeto passe pela Câmara e pelo Senado, haverá uma enxurrada de ações contestatórias no Supremo Tribunal Federal.
Ainda que seja aprovado na Comissão da Mulher, dificilmente o PL 478 será revertido em lei. O texto precisa também ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça, que pode classificá-lo como inconstitucional e arquivar. Caso passe pela CCJ, iria a votação no plenário da Câmara e depois pelo Senado. Na hipótese improvável de vencer todos os obstáculos no Congresso, o projeto poderia ainda ser vetado pelo futuro governo. “Não é tão simples assim para eles consolidarem esse PL e não avança mais nessa legislatura. Existem ainda muitas outras etapas para a matéria ser aprovada. Mas é vergonhoso que o projeto ande em uma comissão simbólica, a dos direitos da mulher”, lamenta Bomfim. O Brasil, recorda a deputada, está atrasado em relação a outros países da América Latina que legalizaram o aborto nos últimos anos, casos de Argentina, Chile e Colômbia. “Aqui temos esse cenário das trevas.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bolsa estuprador”
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