Política
Bode expiatório
Acossado por evangélicos e antipetistas, o vereador curitibano Renato Freitas ruma ao cadafalso


O Conselho de Ética da Câmara de Vereadores de Curitiba aprovou no último dia 10 a proposta do relator Sidnei Toaldo, do Patriotas, que pede a cassação do mandato do colega Renato Freitas, do PT. O parlamentar, em seu primeiro mandato, é acusado de “invadir” a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, no Largo da Ordem, no centro da capital, durante o protesto pela morte do congolês Moïse Kabagambe, ocorrida no Rio de Janeiro em janeiro deste ano. Foram cinco votos favoráveis à perda do mandato, um pelo arquivamento e outro pela suspensão por 90 dias. Márcio Barros, do PSD, integrante da comissão, pediu desligamento após ter sido surpreendido com o vazamento de um áudio no qual, por telefone, articulava a cassação. A defesa do vereador apresentou a contestação que agora será avaliada pela Comissão de Constituição e Justiça. Superada essa etapa, o processo segue para o plenário, que tem o prazo de três sessões para marcar a votação.
As principais alegações contra Freitas são perturbação da prática de culto religioso, entrada não autorizada de manifestantes e realização de ato político na igreja. O episódio aconteceu em 5 de fevereiro, quando um grupo protestava contra o racismo e o preconceito à porta do templo. O vereador alega que não liderava o ato, que a manifestação, pacífica, aconteceu após o encerramento da missa, e que o protesto na parte interna não foi premeditado. A arquidiocese de Curitiba, em nota oficial, afirmou que a movimentação contra o racismo é legitima, fundamenta-se no Evangelho e sempre encontrará o respaldo da religião. “Percebe-se na militância do vereador o anseio por justiça em favor daqueles que historicamente sofrem discriminação em nosso país. A causa é nobre e merece respeito.” Sugere ainda que qualquer medida disciplinadora seja proporcional ao incidente e “se evitem motivações politizadas e, inclusive, não se adote a punição máxima contida no Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Municipal de Curitiba”. No processo, o relator reconhece que o ato foi “organizado por diversos movimentos sociais” e “que a celebração da missa havia encerrado quando da entrada dos manifestantes”.
O comportamento de Freitas divide opiniões. Enquanto os movimentos sociais e partidos de esquerda apoiam o petista, os vereadores, inclusive aqueles ligados às igrejas evangélicas, articulavam a cassação. Em uma entrevista ao blogueiro bolsonarista Osvaldo Eustáquio, os pastores Silas Malafaia e Marco Feliciano, este deputado federal pelo PL, mandaram recados à vereadora Noêmia Rocha, do MDB, ligada à Igreja Assembleia de Deus. “Espero que a irmã em Cristo, membro da Assembleia de Deus, vereadora Noêmia Rocha não ceda à pressão do MDB e vote pela cassação. Porque, hoje, é a Igreja Católica. Amanhã é a igreja evangélica. E nós não podemos abrir mão. Vou ficar aqui no aguardo e antenado nesta questão”, afirmou Malafaia. Feliciano insinuou que, apesar de os “donos” da Igreja Católica terem voltado atrás, Noêmia deveria “ajudar nessa questão”. “Se deixar isso acontecer, vai abrir um precedente para as outras igrejas. Amanhã vai ser a Batista, a Assembleia de Deus, vai ser na Deus É Amor.” Funcionou. A vereadora votou a favor da cassação.
Apesar do “perdão” da Arquidiocese, a Câmara articula a cassação do mandato
Aos 38 anos, Freitas, advogado, graduado e mestre em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná, é um sobrevivente. A mãe, nordestina do interior da Paraíba, é seu referencial. Nascido na paulista Sorocaba, chegou ao Paraná em 1984, “antes mesmo de ser registrado”. O pai, presidiário, fora transferido para Curitiba. Para acompanhá-lo, a família veio morar em Almirante Tamandaré, na Região Metropolitana. “Vivíamos em um bairro pobre, violento, sem qualquer estrutura”, lembra.
Em 1987, o pai foi novamente transferido, desta vez para o Complexo Prisional de Piraquara, também na Grande Curitiba. A família acompanhou. “Moramos na Vila Macedo, área de ocupação à beira de um riacho sem qualquer benfeitoria.” O local fica ao lado do presídio. “Uma cerca nos separava. Do outro lado estava a Vila dos Hansenianos e, para completar o cenário, existia um pequeno cemitério.” Aos domingos iam visitar o pai, até que descobriram que ele tinha outra família. Isso os afastou por completo. Em 1998, quando o progenitor deixou a prisão, Freitas nem sequer reconhecia seu rosto. Poucos meses depois, viria a falecer.
Aos 12 anos, o futuro vereador começou a trabalhar. Auxiliar de pedreiro, empacotador, vendedor, até chegar à limpeza do chão de uma sorveteria. “Aquilo me fazia muito mal. Lembrava o sofrimento da minha mãe, que sempre foi empregada doméstica.” Amigos se envolveram com o tráfico de drogas, mortes e prisões. Até que, aos 23 anos, o irmão mais velho foi assassinado com um tiro na cabeça. “Ele estava trabalhando quando aconteceu um assalto na empresa. Trago essa cicatriz até hoje”. Foi quando concluiu que o único caminho para sobreviver eram os estudos.
Em 2005, Freitas foi aprovado no vestibular para a Faculdade de Direito. Passou a se interessar pela política e conseguiu entender e organizar as peças de um quebra-cabeça que provocaria “uma enorme revolta pelas injustiças e desigualdades onde pobres e negros são as maiores vítimas”. Escolheu o Direito porque queria lutar por mais justiça social. “Vivi e senti na pele não só a miséria, mas o racismo e o preconceito. Queria poder fazer alguma coisa pelos meus iguais.”
Em 2020, chegou à Câmara Municipal amparado por 5.097 votos. O preconceito o acompanha até hoje. “Alguns vereadores costumam me chamar de ‘mano’, mas percebo que é de forma pejorativa. Aqui, todos os rótulos e estereótipos dos homens jovens e negros recaem sobre mim e, em Curitiba, isso serve como luva.”
Para o sociólogo e professor da Universidade Federal do Paraná Ricardo Costa Oliveira, a Câmara apequenou-se com a decisão do Conselho de Ética pela cassação. “A função do Legislativo é também representar o perfil social de jovens periféricos, pretos, mestiços, políticos com origens populares.” Quando foi criada, em 1693, o poder dava assento apenas aos “homens bons, brancos”, católicos e fazendeiros escravistas. Não configurava a representação política de mulheres, protestantes ou negros. “Era um espaço elitizado que só se democratizou ao longo dos séculos, a partir de lutas e conquistas de grupos sociais até então excluídos. Precisamos progredir socialmente e politicamente, não regredir.”
Ao longo de várias legislaturas, insiste Oliveira, a Casa foi acusada de subserviência aos interesses do Executivo, denúncias de “rachadinhas”, corrupção e tráfico de influência. “Agora, só o racismo estrutural e institucional é uma justificativa suficiente para levar a uma cassação?” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bode expiatório”
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