Política
Blindagem furada
Lula suspende a compra de veículos militares israelenses, mas avalia fabricação em território nacional


Neste terceiro mandato, Lula não leva uma vida fácil nas relações internacionais. Pressionado pela mídia, pelas “vozes do mercado” e por governos estrangeiros a adotar posições assim ou assado em temas sensíveis como a Guerra da Ucrânia e o processo eleitoral na Venezuela, o presidente brasileiro terá de arbitrar nos próximos dias uma pendenga que envolve a compra, pelo Exército, de 36 veículos militares blindados produzidos por uma empresa israelense. A suspensão da compra pelo governo no início de agosto, às vésperas de o negócio estimado em 1 bilhão de reais ser concluído, tem como pano de fundo outra delicada questão diplomática: a ocupação da Faixa de Gaza pelas forças armadas de Israel.
Dotado de um canhão de longo alcance capaz de lançar com alta precisão obuses de 155 mm, o veículo blindado comprado pelo Brasil é fabricado pela Elbit Systems, renomada empresa de desenvolvimento de tecnologias de defesa. Utilizado pelo exército de Israel, é uma das armas mais empregadas na ofensiva militar que, segundo a ONU, já provocou a morte de 40 mil palestinos em Gaza. A clara oposição do governo brasileiro ao massacre está na raiz da decisão pela suspensão, pois “tornou complicada essa compra”, como explicou Celso Amorim, assessor especial de Lula para assuntos internacionais, em entrevista à CNN Brasil: “Depois da ação altamente condenável do Hamas, houve genocídio por parte de Israel em relação aos palestinos. A Corte Internacional recomenda não colaborar com Israel nesse aspecto militar. Além disso, é preciso esperar passar essa instabilidade no conflito em Gaza”.
A posição de Lula sobre a questão é conhecida. “O que o governo de Israel está fazendo com a Palestina não é guerra, é genocídio. Se isso não é genocídio, eu não sei o que é”, disse o presidente durante um evento em fevereiro. Recomendada por Amorim, a suspensão da compra dos blindados israelenses tem a anuência do Itamaraty e a oposição do Ministério da Defesa, daí a convocação da reunião para encaminhar a questão. Como a decisão de Lula pela suspensão é esperada, o principal debate do encontro se dará em torno da proposta, apresentada pelo ministro José Múcio Monteiro, de que as etapas de integração e montagem das peças e equipamentos nos 36 veículos seja realizada em solo brasileiro, na fábrica da empresa AEL, subsidiária da Elbit no Rio Grande do Sul.
O negócio de 1 bilhão de reais foi sustado por recomendação do ex-chanceler Celso Amorim
Procurado por CartaCapital para falar sobre o avanço dessa proposta junto ao fabricante e também às Forças Armadas brasileiras, o ministro da Defesa não respondeu até o fechamento desta edição. Em nota, a pasta comunicou que “a Defesa tem interesse em construir uma solução conjunta e que a produção seja praticamente toda no Brasil”. A fabricação dos veículos militares na unidade localizada na Grande Porto Alegre geraria até 400 empregos diretos ou indiretos, segundo estimativas da própria Elbit.
Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra, Ronaldo Carmona considera correta, por diferentes razões, a decisão do governo brasileiro pela suspensão da compra dos blindados: “Primeiro, por uma questão de coerência com a nossa política industrial. O Brasil hoje faz um esforço gigantesco, através da nova indústria, para fomentar a defesa nacional e buscar desenvolver capacidade própria de fornecimento de material de emprego militar para as nossas Forças Armadas. É uma meta substituir a forte dependência que o Brasil tem desse material de países da Otan e de Israel”. A segunda razão é de natureza estratégica: “O Brasil tem uma diferença geopolítica importante em relação à atitude do atual governo de Israel, que tem promovido uma política de deliberado genocídio em relação aos palestinos. Há um absoluto descompasso estratégico entre o que é a visão de Israel e o que é a visão do Brasil como membro dos BRICS e ativo defensor da multipolarização do sistema internacional”.
Carmona ressalta que o Brasil já teve uma robusta base industrial de defesa, inclusive na área de blindados. “A Engesa fabricava nos anos 1980 um carro de combate chamado Osório, que à época venceu em competições internacionais o principal carro de combate americano.” Não por acaso, acrescenta, a empresa brasileira, fundada em 1958, foi objeto de uma ação geopolítica que acabou por fechar o seu acesso a mercados externos: “Com isso, a Engesa entrou em crise falimentar. À época, o governo optou por ignorá-la, o que foi absolutamente lamentável”. Outras empresas como Avibras e Embraer, diz o especialista, foram grandes conglomerados que o Brasil conseguiu formar no desenvolvimento da sua indústria bélica.
Contratos. A FAB encomendou dois drones RQ-900. O ministro José Múcio busca alternativas para preservar a aquisição dos blindados para o Exército – Imagem: Joelson Nery/Força Aérea Brasileira e Sgt. Rezende/Forca Aérea Brasileira
O setor de Defesa, acrescenta o professor da ESG, tem forte incidência no desenvolvimento tecnológico brasileiro. Além das ações de política industrial, o Brasil desenvolve um programa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, gerenciado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), para o País ganhar autonomia em tecnologias de defesa: “O projeto busca nacionalizar tecnologias das quais hoje o Brasil é dependente do exterior. Creio que a decisão do governo pela suspensão da compra dos blindados tem relação também com essa busca por recompor a nossa autonomia e capacidade em materiais críticos de defesa”.
Alguns deputados da base governista se mobilizam para que o governo desista deste e de outros três contratos militares firmados pelas Forças Armadas brasileiras com Israel neste ano. Além dos 36 veículos blindados para reforçar a frota do Exército, a Força Aérea Brasileira (FAB) contratou, por 86 milhões de reais e sem licitação, os serviços da Israel Aerospace Industries para manutenção de duas aeronaves não tripuladas do modelo Heron-I. A deputada Fernanda Melchionna, do PSOL, protocolou um pedido de informações sobre esse contrato junto ao Ministério da Defesa. Na mira dos parlamentares há ainda dois outros contratos firmados com a empresa israelense Aeroeletronica International, um para a aquisição de duas aeronaves modelo RQ-900, também fabricadas pela Elbit, e outro para a modernização de cinco aeronaves do modelo E-99M, fabricadas pela Embraer e pertencentes à FAB.
Ora licenciado para concorrer à prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro, o deputado federal Washington Quaquá endereçou ao Ministério das Relações Exteriores um pedido pelo fim das compras militares junto a empresas israelenses: “Israel não tem uma aliança estratégica com o Brasil. É preferível fazer acordos com Itália e França, países próximos do Brasil do ponto de vista militar. No mercado tem a China, a Rússia e mesmo os EUA. Não há razão para o Brasil firmar contratos de compra militar com Israel, que não tem relevância geopolítica para o País”.
Deputados pedem a suspensão de outros acordos militares com Israel, incluindo a modernização de aeronaves da FAB
A deputada federal Jandira Feghali, do PCdoB, defende que, “devido à limpeza étnica que acontece em Gaza”, o Brasil cancele acordos militares com Israel: “Acho extremamente positiva e importante para este momento a decisão do governo de não comprar os blindados ou de interromper outras negociações desse tipo. Não é possível que, diante do que está acontecendo com o povo palestino, os países não interrompam relações comerciais com Israel, particularmente nesse campo das armas e da segurança”.
Para Carlos Zarattini, deputado federal pelo PT, toda compra militar brasileira deve respeitar a estratégia geopolítica do País: “Na prática, Israel rompeu com o Brasil na medida em que declarou persona non grata o nosso presidente legitimamente eleito. O governo de Israel tomou essa posição. Portanto, não é conveniente que o Estado brasileiro faça contratos com empresas israelenses na área de defesa neste momento”. Em segundo lugar, diz o vice-líder do PT na Câmara, provavelmente existirão questionamentos de outras empresas ao processo de compra: “Haverá algum desdobramento do ponto de vista administrativo e até judicial. O processo de compra precisa ser reavaliado por vários órgãos, como a Casa Civil e o Itamaraty, além do próprio Ministério da Defesa”.
O processo licitatório dos veículos blindados teve como derrotadas empresas de tecnologia militar da China, da França e da República Tcheca. Segundo o Ministério da Defesa, a proposta da Elbit Systems foi “a melhor em termos de condições, preços e tecnologia”. Na entrevista à CNN, Celso Amorim afirmou que “não se trata somente de técnica e preço” e que “o aspecto político e diplomático é muito importante e um componente a ser avaliado”. O ex-chanceler ressaltou não se tratar de algo especificamente contra Israel: “O Brasil reconhece e respeita o Estado de Israel, mas o atual governo israelense tem tido comportamento altamente condenável do ponto de vista militar”. Procurado por CartaCapital, o assessor de assuntos internacionais de Lula preferiu não dar novas declarações sobre o tema.
Críticos. Feghali e Quaquá cobram coerência entre compras estatais e política externa – Imagem: Bruno Spada/Agência Câmara e Rodrigo Cabral/MCTI
Carmona avalia que a possibilidade de manter o contrato e fazer a produção dos veículos em território nacional através da subsidiária da Elbit no Brasil “é uma tentativa de minorar o problema”, mas alerta que o caminho mais adequado seria reconstituir a tradição brasileira na indústria de blindados: “Temos iniciativas importantes em todo o País, inclusive associadas ao Polo de Defesa de Santa Maria, que tem forte tradição na área de blindados e pode ser objeto de uma iniciativa de incentivo à recomposição dessa capacidade tradicional da indústria de defesa brasileira”. Mais que a produção de uma subsidiária estrangeira no Brasil, diz o professor, “o melhor caminho para o fortalecimento da política industrial e da autonomia tecnológica nacional na área de defesa é buscar recompor essa capacidade de produção de blindados”.
Quaquá lembra que os laços com as empresas militares israelenses foram fortalecidos durante o governo Bolsonaro. O petista afirma que desenvolver uma indústria bélica é estratégico para qualquer país, mas, no caso brasileiro, isso deve ser feito com os parceiros certos: “Temos, por exemplo, parceria com os franceses no projeto do submarino nuclear e longa tradição de parceria com os italianos. Podemos e devemos fazer novas e várias parcerias para desenvolver a indústria bélica estratégica no País. Mas não podemos ter relações com Estados que promovem genocídios”. •
Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Blindagem furada’
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