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Liminar suspende resolução do CFM que restringe procedimentos para crianças e adolescentes transgênero

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Negacionismo. Sob o controle de bolsonaristas, o Conselho de Medicina frequentemente ignora a ciência – Imagem: Redes Sociais/Conselho Federal de Medicina
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Aos 2 anos de idade, quando começou a falar, o hoje adolescente L. surpreendeu a família com uma pergunta inusitada: “Quando meu pipi vai crescer?” Desde pequeno, demonstrava incômodo de usar roupas “de menina”. “Notei que ele passou a se coçar sempre que eu trazia um vestido”, recorda a mãe. A princípio, os médicos disseram que, ao entrar na escola, o comportamento mudaria. Mas piorou. “Ele se tornou uma criança muito triste. Não brincava, e sempre pedia as roupas do irmão mais velho”. Foi por meio de uma reportagem que Regiani Abreu descobriu a existência das crianças transgênero. Aos 4 anos, o pequeno L. começou sua transição social.

“Uma criança trans é só uma criança. A transição se dá por meio das roupas e do nome social”, explica Abreu, advogada e presidente da ONG Mães Pela Diversidade. A busca por atendimento especializado para o filho levou-a a se tornar uma ativista pelos direitos de crianças e adolescentes em variabilidade de gênero – ou seja, que não se identificam com o gênero sob o qual nasceram. Hoje, essas mulheres travam uma batalha jurídica contra o Conselho Federal de Medicina, ainda preso a arcaicas concepções.

Sequestrado pelo bolsonarismo, o CFM publicou, em abril, a Resolução 2.427/2025, que veta qualquer tratamento hormonal em transgêneros antes da maioridade e aumentou a idade mínima para cirurgias de redesignação sexual de 18 para 21 anos. Estabeleceu ainda a obrigatoriedade de um cadastro de pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos, bem como dos médicos responsáveis. Esses dados deveriam ficar sob a guarda dos Conselhos Regionais de Medicina. A mudança caiu como uma bomba sobre centenas de famílias cujos filhos e filhas estavam em vias de começar o bloqueio hormonal ou a hormonização cruzada.

A presidente da Mães Pela Diversidade destaca a importância do acompanhamento médico para que os jovens trans consigam atravessar a adolescência de forma saudável. Em 2011, L. foi admitido no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade de São Paulo, e, ao longo da infância, recebeu acolhimento para uma transição segura. “Passei a deixá-lo se vestir como quisesse, e, quando alguém da família questionava, eu podia dizer que tinha respaldo médico”, lembra. “Isso fez toda a diferença.”

A entidade vetou qualquer terapia hormonal antes da maioridade

O bloqueio hormonal impediu L. de menstruar e de adquirir características femininas. Agora, aos 16 anos, ele começou a se hormonizar e a desenvolver o fenótipo masculino. “A passabilidade é total”, conta a mãe, aliviada. Passabilidade significa ser percebido pela sociedade de acordo com o gênero com o qual se identifica, o que reduz as chances de sofrer transfobia. “Essa norma do CFM nos faz sentir a dor da perseguição institucional. É terrível quando o ataque vem de quem deveria cuidar”, denuncia a mãe.

A história de L. assemelha-se à de milhares de jovens em variabilidade de gênero. Infelizmente, não são raros os casos de crianças muito pequenas, com 5 ou 6 anos, que manifestam impulsos de automutilação, revela Luciene Mendes, promotora de Justiça aposentada e voluntária na área jurídica da ONG. “Para um pré-púbere, as mudanças no corpo são muito dolorosas. Por isso, a nossa pressa em derrubar essa resolução do CFM.”

O primeiro round da batalha jurídica durou três meses. Em 25 de julho, o juiz Jair Araújo Facundes, da 3ª Vara Federal Cível e Criminal do Acre, concedeu uma liminar para suspender a determinação do CFM. Voltou a valer a resolução anterior (nº 2.265/19), que, ao contrário do novo texto, foi elaborada por meio de um amplo debate com representantes da sociedade civil e pesquisadores. A Ação Civil Pública foi ajuizada por Lucas Costa Almeida Dias, procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre. Ele sustenta que o CFM desconsiderou evidências científicas, tratados internacionais e o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente.

Diversas entidades atuaram para que isso acontecesse. Em nome da Mães Pela Diversidade, por exemplo, Mendes encaminhou uma representação ao Grupo de Trabalho de Temas LGBTQIA+ do Ministério Público Federal, coordenado por Dias. A ONG também se tornou coautora na Ação Civil Pública do MPF no Acre – e anexou 22 cartas manuscritas de mães, pais e dos próprios adolescentes em variabilidade de gênero.

Apelo. Mães, pais e adolescentes trans escreveram cartas para sensibilizar o juiz – Imagem: Arquivo/Agência Brasil

“As cartas foram importantes para sensibilizar o juiz. Trazem relatos comoventes de familiares. Os jovens também puderam expressar os impactos desse serviço de saúde em suas vidas”, explica Mendes. “Milhares de pessoas cisgênero, a partir dos 18 anos, ou mesmo antes, fazem cirurgias para readequar algum desconforto com o corpo. Por que só as pessoas trans não podem? Confio na Justiça e tenho convicção de que o Supremo Tribunal Federal vai sepultar de vez essa resolução do CFM, puramente ideológica.”

O relator do processo no STF é o ministro Cristiano Zanin, que pediu para ouvir todas as partes, além da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República, antes de levar o caso ao plenário. Doutor em Direito Constitucional e presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti explica que o processo pode arrastar-se por meses ou anos. Por isso, a liminar obtida na Justiça Federal do Acre foi tão importante. “Até o julgamento ser concluído, esses adolescentes já cresceram ou, na pior das hipóteses, cometeram suicídio.”

Iotti é o autor da Ação Direta de Inconstitucionalidade 7806, movida no STF em nome da Associação Nacional de Travestis e Transexuais e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. “Denunciei a postura anticientífica do Conselho Federal de Medicina e o caráter inconstitucional da resolução, que viola direitos fundamentais da pessoa humana”, explica. Para o advogado, a entidade demonstrou “desprezo eloquente ao sofrimento de jovens trans” e “agiu de má-fé, sem base na literatura médica”.

O CFM também elevou para 21 anos a idade mínima para cirurgias de redesignação sexual

O psiquiatra Alexandre Saadeh, um dos maiores especialistas do País em crianças e adolescentes em variabilidade de gênero, vê com preocupação a ação do CFM. Segundo ele, nesse período de três meses, o estrago foi imenso para muitos pacientes. “O bloqueio só pode ser feito em uma janela exata de tempo da vida desse jovem. Se passou, não tem como reverter, e diversos pacientes que estavam em vias de começar perderam a chance”, lamenta. “O bloqueio é importante porque faz o corpo permanecer neutro. Com isso, o jovem ganha tempo e amadurece. Se, no futuro, perceber que, na verdade, se identifica com o gênero com o qual nasceu, é possível reverter o procedimento e seguir a vida.”

O médico destaca que, no Brasil, o acompanhamento médico para crianças e adolescentes trans é extremamente criterioso, e qualquer procedimento só pode ser realizado com autorização dos pais. “Para uma menina trans, começar a engrossar a voz ou ter pelos no rosto causa sofrimento. O mesmo vale para um menino trans que passa a desenvolver mamas ou a menstruar. O bloqueio serve para evitar isso.” As mudanças da puberdade podem causar adoecimento psíquico, como ansiedade, depressão e idea­ção suicida, explica Saadeh. Nessa fase, também é comum a evasão escolar, justamente pela pressão social à qual esses jovens são submetidos.

Camilo Miranda, psiquiatra responsável pelo Núcleo de Cuidados para Pessoas Transexuais e Travestis de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, revela que a resolução do CFM gerou “medo e insegurança nos profissionais de saúde”, e vários pacientes se sentiram desamparados. Em decorrência disso, muitos jovens podem ter recorrido a clínicas clandestinas e a métodos inseguros de hormonização. “Proibir não faz ninguém desistir da transição de gênero.” •

Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”

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