Política
Bandidos de estimação
O relatório de Derrite, aprovado na Câmara, mira o criminoso pé de chinelo e alivia para a turma do colarinho branco
A CPI do Crime Organizado mal começou no Senado e é descrita como “morna” pela mídia. Não está agendado nenhum depoimento de chefes de facção, embora haja senadores doidos por um interrogatório do tipo, caso de Marcos do Val, que faz cosplay de agente da “Swat”. A comissão centra-se em uma investigação mais teórica, digamos assim. Seu relator, Alessandro Vieira, delegado de polícia, não está interessado “em dar palanque para bandido”, nem em alimentar demagogia barata. Também caberá a ele no Senado relatar o Marco Legal de Combate ao Crime Organizado que os deputados acabam de aprovar. Um texto escrito e reescrito pelo secretário de Segurança de São Paulo, Guilherme Derrite, um auxiliar do governador-presidenciável Tarcísio de Freitas, que o Palácio do Planalto tentará mudar para que nem a Polícia Federal nem o combate a criminosos de colarinho branco sejam afetados.
O senador Flávio Bolsonaro, um dos filhos do capitão condenado e inelegível, tentou ocupar a posição de Vieira. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre, não deixou e escalou o delegado. O “Zero Um” de Jair estava em El Salvador no momento da escolha do relator. Os deputados nem sequer haviam terminado de votar o “marco legal” preparado por Derrite. Flávio viajara com o irmão Eduardo, deputado autoexilado nos Estados Unidos, para visitar um paraíso da extrema-direita. Um lugar que lota cadeias, reescreve ou passa por cima de limites legais e dos direitos humanos, troca juízes. Em suma, que pratica o vale-tudo contra o crime. Os direitistas não fazem mistério sobre a bandeira que pretendem empunhar para pedir voto aos brasileiros no próximo ano.
Quem o direitismo quer meter em cana por até 40 anos graças ao relatório de Derrite é o chão de fábrica do crime. Quanto à alta roda da criminalidade, a conversa é outra. Esta só tem a ganhar com uma lei feita sob medida para advogados espertos. A intenção do governo ao propor uma Lei Antifacção era pesar um pouco a mão nas penas, mas, principalmente, dotar a PF e a Justiça de um arsenal jurídico capaz de atacar a elite do crime pelo bolso. Lula não se dobrou a Hugo Motta, o chefe da Câmara responsável por trazer Derrite à ribalta. Para Motta e o relator, o papel do Congresso era apresentar-se à nação como patrono de uma lei feroz nas punições, e só. Por ordem de Lula, os governistas mais fiéis, PT à frente, votaram contra o “marco legal” e insistiram no argumento de que os endinheirados do crime organizado iriam festejar.
O governo agora vai tentar desfazer o Frankenstein no Senado
Uma parte importante das ideias desenhadas no Ministério da Justiça contra a alta roda do crime foi eliminada ou desfigurada pela Câmara. Um deputado paulista jura que Freitas, o patrão do relator, recebeu recados de um fugitivo pertencente ao andar de cima. Roberto Augusto Leme da Silva, o “Beto Louco”, foi um dos alvos da Operação Carbono Oculto, realizada em agosto pela PF, a maior batida da história brasileira contra o crime organizado. Leme da Silva era peça central de certa engrenagem do PCC. Esse esquema funcionava assim: a facção importava combustível com dinheiro de origem ilícita. Depois o vendia em uma rede própria de postos. O lucro ia para um banco digital, que o transferia para fundos geridos da Avenida Faria Lima. Bilhões de reais surgidos do crime ficavam protegidos pelo “mercado”.
Na operação, a PF conseguiu o bloqueio judicial de 5 bilhões de reais. “Beto” estaria na pior, daí os recados ao governador paulista e os boatos de que aceita um acordo de delação. Bons motivos para o bolsonarista “moderado” liberar seu secretário de Segurança para passar duas semanas em Brasília a atrapalhar o governo com cinco relatórios diferentes, antes de o sexto ir a voto e ser aprovado. “Do jeito que está, enfraquece o combate ao crime e gera insegurança jurídica. Trocar o certo pelo duvidoso só favorece quem quer escapar da lei”, escreveu Lula no ex-Twitter. No Ministério da Fazenda, Fernando Haddad comentou que o relatório “não asfixia financeiramente o crime organizado, mas a Polícia Federal”. E perguntou: “Vai complicar o perdimento para abrir brechas pro bandido atuar?”
“Perdimento”, palavra do universo jurídico que significa algo como confisco, é o cerne do embate do lulismo com Derrite. A Lei Antifacção elaborada pelo governo criava um rito especial e célere de apreensão para facilitar a tomada judicial de patrimônio pertencente ao crime organizado ou oriundo de ilícitos. A legislação atual permite o confisco, mas com alcance menor e mais lento. O governo desejava incluir na mira tudo o que fosse “proveito ou instrumento” do crime, ou seja, empresas e bens que, embora de aparência legal, estivessem a serviço da lavagem e da ocultação de dinheiro. O ônus da prova era invertido: os acusados é que teriam de provar que seus negócios não tinham contato com coisa ilícita. O desfecho se daria na esfera penal, e sob a batuta do mesmo juiz do caso, ainda que o processo criminal terminasse sem a condenação dos réus. Nos Estados Unidos e na Itália existem ritos parecidos.
Aviso. A PF não perderá recursos, garante Alessandro Vieira, escolhido para relatar o PL no Senado. Bolsonarismo e Centrão trocam inteligência por matança – Imagem: Pablo Porciúncula/AFP, Geraldo Magela/Agência Senado e Receita Federal/AFP
O dinheiro do confisco especial seria revertido a fundos destinados à Polícia Federal para reforçar o combate ao crime organizado. Uma operação de setembro contra fraudes no comércio de combustíveis no Rio de Janeiro, a Carbono Cego, é didática sobre as possibilidades de asfixia financeira contra o crime organizado. Houve apreensão de cinco navios com 200 milhões de litros de combustível, remetidos à guarda da Petrobras. Supondo-se que seja só de gasolina, a carga vale 1,2 bilhão de reais, ao preço médio nos postos do Rio. Nos termos da Lei Antifacção, seria mais fácil o Poder Público tomar definitivamente a carga. Os milhões de litros pertencem à Refit, a antiga refinaria de Manguinhos. O dono da empresa é Ricardo Magro, padrinho da nomeação de dois integrantes do primeiro escalão do governador Cláudio Castro, segundo o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias. Magro foi advogado no passado do deputado cassado Eduardo Cunha, o ex-presidente da Câmara pego certa vez em telefonemas a prometer socorro a Manguinhos.
A Refit é uma das maiores sonegadoras do Brasil, com cerca de 20 bilhões de reais em impostos atrasados. Logo após a operação da PF na Faria Lima em agosto, o Senado aprovou uma lei que busca apertar empresas que se valem da sonegação como estratégia de negócio. É a lei do devedor contumaz. Está parada na Câmara, por obra de Motta, embora o líder do governo na Casa, o petista José Guimarães, insista em uma votação urgente. Cunha foi o mentor de Motta, vira e mexe vai ao gabinete do afilhado. Ambos são do Republicanos, o partido de Freitas. Em meio às negociações de seu relatório sobre o “marco legal”, Derrite jantou em um restaurante de Brasília com Cunha e Arthur Lira, o antecessor de Motta no comando da Câmara. Lira é outro aluno dileto da “escola Cunha”.
Aquilo que “Beto Louco” perdeu por ordem judicial na Operação Carbono Oculto também poderia passar mais rapidamente, em definitivo, ao Poder Público, caso fosse aprovada a proposta lulista sobre “perdimento”. O relatório de Derrite traçou um caminho mais difícil para o confisco definitivo. Estabeleceu uma ação civil própria com os mesmos procedimentos vigentes (é notória a lentidão do Judiciário) e sem um passo a passo detalhado. De quebra, livrou a cara de um acusado que vier a alegar ter agido de boa-fé e sem saber que havia recebido dinheiro originado no crime. “O Derrite criou um caos jurídico, um paraíso para investigados. Quando a lei não é bem clara e deixa brechas, um bom advogado sabe explorar”, afirma Marivaldo Pereira, secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
“O Derrite criou um caos jurídico”, afirma Marivaldo Pereira, secretário do Ministério da Justiça
Pelo relatório de Derrite, o dinheiro obtido com o confisco de bens do crime organizado seria rateado entre vários fundos. A consequência é uma divisão entre a PF, estados e municípios. Eis por que o governo reclama que o deputado enfraqueceu a Polícia Federal. Alessandro Vieira, o relator no Senado, avisou que não aceita tirar recursos da Polícia Federal. Derrite ignorou ainda a tentativa do governo de inserir na legislação a possibilidade de a polícia e o Ministério Público criarem, com autorização judicial, uma empresa fictícia infiltrada em esquemas criminosos, em busca de provas contra os envolvidos. Agiu da mesma maneira diante da ideia do Ministério da Justiça de permitir que um delator continue a cometer crimes enquanto abastece a polícia e o MP com informações, “espionagem” que as regras atuais não admitem.
A filosofia de Derrite e do direitismo em geral no “marco legal” é a do aumento de penas para integrantes de facção criminosa. “É a resposta mais dura que o Congresso dará ao crime organizado em sua história”, celebrou Motta. Que não gostou do tuíte de Lula, o presidente de quem ele “afanou” metaforicamente a Lei Antifacção e entregou a Derrite para ser convertida em bandeira eleitoral da oposição. “Falsas narrativas”, na visão do deputado.
O texto de Derrite, aprovado por 370 votos a 110, fixa pena de 20 a 40 anos de prisão para integrantes de facções e determina que 70% sejam cumpridos em regime fechado, sem direito a relaxamentos. Os líderes irão necessariamente para um presídio federal, de segurança máxima. Na lei atual, o crime organizado é punido com até 8 anos de detenção. O projeto lulista ampliava para 10 anos e estabelecia uma pena maior, de 15 anos, para faccionados. “Acabou a impunidade. Em São Paulo e no Brasil, o recado é claro: Lugar de Bandido é na cadeia”, comemorou Freitas no ex-Twitter.
Cláudio Castro, o governador do Rio, foi a Brasília acompanhar a votação. Está convencido de que a matança policial no QG do Comando Vermelho mudou a pauta nacional. Castro é do PL de Bolsonaro. O PT vai realizar no estado, em 1º e 2 de dezembro, um seminário sobre segurança pública. O objetivo é produzir argumentos para Lula agora e preparar o programa de governo a ser apresentado na campanha do ano que vem. •
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital, em 26 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bandidos de estimação’
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