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Avanço ou retrocesso?

CCJ aprova projeto para revogar a Lei de Alienação Parental, cercada de controvérsias desde o nascedouro

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Origem. Criada em 2010, a legislação visava coibir a manipulação psicológica de crianças contra um dos seus genitores – Imagem: iStockphoto
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O debate sobre o projeto de lei que propõe revogar a Lei de Alienação Parental, recém-aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, transformou-se em um verdadeiro cabo de guerra. De um lado, deputados extremistas do Partido Liberal bradam em defesa de pais que alegam ter sido afastados arbitrariamente dos filhos em separações ou divórcios litigiosos. Do outro, parlamentares progressistas, principalmente do PSOL e do PT, alertam para o uso indevido da lei como forma de coa­gir mulheres que denunciam casos de abuso ou violência doméstica. Especialistas observam, porém, que essa polarização empobrece a discussão, cujo foco deveria ser o melhor interesse da criança em meio às disputas familiares.

Alienação parental é a manipulação psicológica de crianças ou adolescentes por um dos pais ou responsáveis, com o objetivo de prejudicar o vínculo com o outro genitor. A prática é mais comum do que se imagina e tende a se agravar em processos de divórcio. Para coibi-la, foi criada, em 2010, uma legislação específica, de caráter pedagógico e preventivo, que atua no âmbito do Direito Civil e de Família, garantindo à criança o direito a uma convivência saudável, independentemente dos conflitos entre os pais. No entanto, grupos feministas alertam que, em muitos casos, a norma tem sido usada contra mães que denunciaram abusos de ex-parceiros.

O projeto para revogar a Lei de Alienação Parental é de autoria das deputadas Sâmia Bonfim, Fernanda Melchiona e Vivi Reis, todas do PSOL, e foi aprovado na CCJ por 37 votos favoráveis e 28 contrários. Como tramita em caráter conclusivo, pode seguir direto ao Senado, caso não haja recurso para análise em sessão plenária. Segundo Bonfim, a legislação acabou se convertendo, nos últimos anos, em um “instrumento de revitimização de mulheres que sofreram violência doméstica” e, em alguns casos, expõe crianças a risco de abuso. Não é incomum, acrescenta a parlamentar, que agressores invoquem a norma como mera “estratégia de defesa”.

Origem. Criada em 2010, a legislação visava coibir a manipulação psicológica de crianças contra um dos seus genitores – Imagem: iStockphoto

Não por acaso, a relatora especial das Nações Unidas sobre violência contra mulheres e meninas, Reem Alsalem, qualificou como “um passo importante” a iniciativa das parlamentares brasileiras de revogar a lei. Ela observa que o Brasil é o único país que define e penaliza explicitamente atos de alienação parental como infração legal e considera sexista e discriminatória a aplicação inadequada da norma contra mães que apresentam alegações críveis de abuso doméstico sofrido por elas ou por seus filhos. “Há relatos de mulheres que foram privadas da guarda de seus filhos, entregues aos seus abusadores”, denunciou na quarta-feira 3.

Bonfim acredita que, no Senado, a proposta deve avançar mais rapidamente, pois já existe uma articulação suprapartidária, incluindo os senadores Magno Malta (PL), autor de proposta semelhante, e Damares Alves (Republicanos). Em 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania também se posicionou a favor da revogação durante audiência na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Segundo a pasta, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já prevê medidas para garantir a convivência familiar e proteger crianças e adolescentes em caso de ameaça ou violação de direitos por parte dos pais ou responsáveis.

A extinção da norma está longe, contudo, de ser um consenso. Para a advogada Bruna Barbieri Waquim, presidente da Comissão Nacional de Alienação Parental do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), o ECA sozinho não protege adequadamente as vítimas dessa prática, “uma violação do direito humano à convivência familiar”. A revogação, diz ela, seria “um retrocesso terrível”. Ao tipificar a conduta, a lei contribuiu para conscientizar a população e incentivar políticas públicas de prevenção. Em processos de divórcio, acrescenta a especialista, tem sido essencial para garantir a guarda compartilhada, defendendo o direito de crianças e adolescentes a relações familiares saudáveis, mesmo em famílias reconfiguradas com padrastos, madrastas e filhos de outros relacionamentos.

Alguns especialistas reconhecem que a norma tem sido mal aplicada, mas ainda a consideram necessária

Em contrapartida, Denise Auad, professora de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, alerta que o uso deturpado da Lei de Alienação Parental se tornou “uma arma muito grave contra a mulher”, permitindo que agressores “chantageiem mães para obter benefícios ou convívio forçado”. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente, ela qualifica o dano psicológico dessa inversão como um “feminicídio às avessas”, pois a violência jurídica pode ferir uma mulher profundamente, “matando pela alma, não apenas pelo corpo”.

Doutora em Ciências Sociais, Vanessa­ Hacon coordena o Coletivo Mães na ­Luta, ONG com mais de 300 associadas, das quais cerca de 130 enfrentam judicialmente genitores acusados de abuso sexual contra seus filhos. Muitas se tornaram vítimas da Lei de Alienação Parental, ao terem suas denúncias descredibilizadas como suposta tentativa de afastar ex-parceiros do convívio com as crianças. Hacon denuncia o “caráter misógino do Judiciário”, que frequentemente “não valida a palavra da mulher contra o abusador”. Segundo ela, casos graves de violação sexual são muitas vezes arquivados pela dificuldade de comprovação. Para a ativista, a lei “nunca foi neutra em relação a gênero e surgiu como uma estratégia misógina”.

Especialista em Direito Civil da Família, Tania Mandarino refuta a ideia de que a Lei de Alienação Parental facilita que abusadores fiquem com a guarda das crianças. Segundo a advogada, quando falhas desse tipo ocorrem – “e são raras” – normalmente elas acontecem em varas criminais, não cíveis ou de família, e “decorrem do princípio do in dubio pro reo”. Para ela, revogar a norma seria um “desserviço”, ao desconstituir a figura do pai e transferir todo o fardo do cuidado exclusivamente para as mulheres. Sem a lei, acrescenta Mandarino, juízes ficariam privados de qualquer medida coercitiva no âmbito cível para coibir a sabotagem do convívio familiar.

Alsalem. Relatora da ONU classifica como um “passo importante” a revogação da lei – Imagem: D.Z. Barysaité/Governo da Lituânia

A psicóloga clínica e jurídica Sandra Baccara, especialista em psicoterapia conjugal e familiar, afirma que a alienação parental é uma conduta grave, presente inclusive durante o casamento e intensificada após a separação. Por isso, considera essencial nomear o fenômeno e dispor de um instrumento jurídico para enfrentá-lo. Para ela, a disputa em torno da revogação transformou-se em um cabo de guerra que “tende a arrebentar para o lado da criança”, cujos danos psíquicos podem ser profundos e duradouros, como ansiedade, depressão e até ideação suicida.

Ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o advogado Ariel de Castro Alves considera “ilusória” a ideia de que a revogação da norma resultará em maior proteção aos menores. Ele reconhece a necessidade de ajustes e aprimoramentos, mas avalia que o marco atual cumpre seu papel. “As relações conjugais acabam, mas as relações entre pais e filhos não podem ou não deveriam acabar”, afirma. •

Publicado na edição n° 1392 de CartaCapital, em 17 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Avanço ou retrocesso?’

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