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Avalanche de “casos isolados”

Na contramão do País, o estado registra aumento de quase 61% na letalidade policial em 2024

Avalanche de “casos isolados”
Avalanche de “casos isolados”
Conivência. Tarcísio de Freitas e Guilherme Derrite menosprezam as denúncias de abusos cometidos por PMs – Imagem: Francisco Cepeda/GOVSP
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Um marceneiro, um mecânico e um investigador da Polícia Civil são apenas três entre as dezenas de “suspeitos” mortos pela Polícia Militar de São Paulo em julho. Não se trata de casos isolados, tampouco de efeitos colaterais, como costuma alegar o governador Tarcísio de Freitas quando confrontado sobre os altos índices de letalidade policial no estado. Na contramão do País, São Paulo registrou aumento de 60,9% nas Mortes Decorrentes de Intervenção Policial em 2024, segundo o mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado na quinta-feira 24. Foram 813 homicídios em 12 meses, mais de ­duas mortes por dia. Na média nacional, essa mesma taxa apresentou queda de 3%.

No início de julho, o marceneiro Guilherme Dias dos Santos Ferreira foi assassinado com um tiro na cabeça disparado pelo policial militar Fábio Anderson Pereira de Almeida, enquanto corria para pegar o ônibus após sair do trabalho. Ele foi confundido com um assaltante que, minutos antes, havia tentado roubar a moto do agente à paisana, em seu horário de folga. Na mochila do “suspeito” foram encontrados a carteira, o celular, a marmita com talheres, um livro de frases bíblicas e itens de higiene pessoal. Jovem negro e sem antecedentes criminais, Guilherme era casado há dois anos e viajaria com a esposa na semana seguinte para comemorar as Bodas de Algodão.

Uma semana depois, durante uma operação na Favela do Fogaréu, na Zona Sul da capital paulista, o sargento Marcus Augusto Costa Mendes – integrante da Rota, a tropa de elite da PM paulista – atirou contra um homem armado sem qualquer ordem de rendição ou aviso prévio. Tratava-se de um investigador da Polícia Civil. Naquele momento, agentes das duas­ corporações realizavam uma incursão na comunidade, sem uma saber da presença da outra. Baleado no peito, Rafael Moura da Silva morreu após alguns dias internado no Hospital das Clínicas.

No domingo 27, após um banal desentendimento no trânsito, o PM Kaio Lopes Raimundo, que estava a caminho do trabalho ainda sem farda, disparou diversas vezes contra um carro que havia pedido passagem. O motorista, Clayton Juliano da Silva, foi atingido na nuca e morreu na hora. O sobrinho, de 9 anos, levou um tiro na coluna e está internado em uma UTI, em Mauá, no ABC paulista, cenário de mais um “incidente isolado”.

Esses episódios evidenciam o descontrole da tropa, que parece não seguir mais qualquer protocolo de abordagem. Essa tem sido a realidade desde que Tarcísio de Freitas assumiu o Palácio dos Bandeirantes, em 2023, e nomeou o deputado federal Guilherme Derrite, um ex-oficial da Rota, para comandar a Secretaria de Segurança Pública. Segundo Leonardo de Carvalho, pesquisador sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Polícia Militar vinha adotando, desde 2020, medidas para reduzir a letalidade policial, como o uso de câmeras nas fardas dos agentes. No entanto, tudo mudou com a troca de governo e de comando na corporação.

“À época, esse problema foi encarado com seriedade. Além das câmeras corporais, a própria PM adotou, internamente, uma série de estratégias para moderar o uso da força”, recorda o especialista. “Com a chegada de Tarcísio, esse projeto não teve continuidade.” O governador elegeu-se prometendo acabar com o uso de câmeras nos uniformes, deixou de investir em novos equipamentos e, só após intensa pressão da sociedade, voltou atrás. No entanto, os novos aparelhos adquiridos pelo Estado podem ser ligados e desligados pelos próprios policiais – diferentemente dos modelos anteriores, que registravam as ações de forma ininterrupta.

O ouvidor das Polícias, Mauro Caseri, atribui ao governador, ao secretário Guilherme Derrite e ao vice-prefeito de São Paulo, Ricardo Mello Araújo, a responsabilidade pelo desastre na segurança pública do estado. Ele relembra três episódios emblemáticos que evidenciam a conivência dessas autoridades com a violência policial. Em 2024, ao ser questionado sobre denúncias de execuções e abusos nas operações Verão e Escudo, no litoral paulista, o governador desdenhou: “Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, não tô nem aí”. Quando comandava a Rota, o atual vice-prefeito defendeu que a abordagem policial deveria mesmo ser diferente nas periferias e nos bairros nobres. Além disso, um áudio de WhatsApp­ revelado pela Ponte Jornalismo expõe a face mais cruel de Derrite. “O camarada (policial) trabalhar cinco anos na rua e não ter três ocorrências (homicídios), na minha opinião, é vergonhoso”, afirmou.

Na média nacional, o índice caiu 3%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Na avaliação de Caseri, esse tipo de discurso “passa uma mensagem” à tropa, que se sente à vontade para agir à margem da lei, sem temer punições. Além disso, a postura do governador contrária às câmeras corporais e as precárias condições de trabalho dos PMs são fatores que contribuem para o atual cenário. Um soldado da Polícia Militar recebe, em média, uma remuneração de 4 mil reais em São Paulo. “É o 22º salário mais baixo do País, no estado com o maior PIB”, diz. Para piorar, não há sinal de reversão do quadro. “Ao contrário: de janeiro a maio, já foram registradas 313 mortes decorrentes de intervenção policial. Se continuar nesse ritmo, haverá um novo recorde de letalidade.”

Diretora-executiva da Rede Liberdade, Amarílis Costa aponta a impunidade como um fator de estímulo à violência policial. “O Ministério Público tem agido em consonância com essa política”, indigna-se. A especialista destaca um estudo realizado pelo Fórum Justiça, segundo o qual, entre 2011 e 2023, apenas 9% das mortes decorrentes de intervenção policial resultaram em denúncias por parte do MP–SP. “Mais de 4,7 mil casos foram arquivados. Isso não é omissão, é uma ação orquestrada.”

Não bastasse, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública revela que negros têm 3,5 vezes mais chances de ser mortos por policiais do que brancos. “Não é aleatório. Os alvos estão bem definidos. É uma política que visa o aniquilamento da juventude negra”, diz Costa. Esse é o tema da pesquisa à qual a especialista se dedica há mais de dez anos. Ela acaba de depositar sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP, intitulada Estado Antinegro: Máquina de Anulação Existencial.

Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que os casos de Morte Decorrente de Intervenção Policial estão em queda e já apresentaram “redução de 3,86% nos primeiros cinco meses do ano”, em comparação com o mesmo período de 2024. “Todos os casos dessa natureza são investigados pelas corregedorias das polícias Civil e Militar, com acompanhamento do Ministério Público e do Poder Judiciário.” •

Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Avalanche de “casos isolados”’

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