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Autonomia em risco

Com o fim do ICMS, USP, Unicamp e Unesp precisam encontrar uma nova fonte de financiamento

Memória. Então secretário da Ciência e Tecnologia de Quércia, Luiz Gonzaga Belluzzo concebeu o modelo autônomo em 1989 e, agora, propõe a sua constitucionalização – Imagem: Marcos Santos/USP Imagens e Antoninho Perri/Unicamp
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A Reforma Tributária, que acaba de ser aprovada em dois turnos de votação na Câmara dos Deputados, simplifica a cobrança de impostos sobre o consumo, mas gerou uma enorme dor de cabeça para os reitores das universidades públicas paulistas. Atualmente, USP, Unicamp e Unesp dependem quase exclusivamente de um repasse de 9,57% da arrecadação do ICMS no estado de São Paulo, mas o tributo será gradualmente extinto a partir de 2029. A autonomia financeira das instituições é um modelo único no País, criado há 34 anos e que assegurou um salto de qualidade no ensino e uma vultosa produção científica ao longo desse período. Agora cabe ao governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, definir qual será a nova fonte de receita das universidades.

Preocupados com a extinção do imposto, os reitores da USP, Carlos Gilberto ­Carlotti Júnior, da Unesp, Pasqual Barretti,­ e da Unicamp, Antônio José de Almeida Meirelles, reuniram-se com o governador, com o secretário estadual de ­Ciência e Tecnologia e com ex-reitor da USP Vahan Agopyan na segunda-feira 10. “O principal resultado do encontro foi que o governador reiterou seu apoio irrestrito à autonomia universitária nos moldes que estão concebidos, ou seja, autonomia didático-pedagógica e também financeira e orçamentária”, revelou Barretti, atual presidente do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas, conhecido pela sigla Cruesp. “Saímos otimistas em relação ao futuro, mas também bastante realistas em relação ao presente, porque sabemos que vai levar um tempo, após a reforma ser aprovada no Senado e sancionada pelo presidente Lula, para estabilizar as novas formas de financiamento.”

Hoje, a USP, uma das três principais universidades, recebe uma fração maior do ICMS arrecadado, cerca de 5%, enquanto Unesp e Unicamp dividem quase de forma equânime o que falta para completar os 9,57%. O professor André­ ­Biancarelli, diretor do Instituto de ­Economia da ­Unicamp, explica que a autonomia financeira permitiu às instituições trabalhar com “previsibilidade e segurança”, oferecendo sustentação para os avanços em pesquisa, ciência e inovação. No ranking do Times ­Higher Education, as três instituições destacam-se entre as dez melhores universidades da América Latina, com a USP em primeiro lugar, a Unicamp em terceiro e a Unesp em décimo. Além disso, a USP ficou na 85ª posição entre 1.499 universidades avaliadas pela QS World University Rankings. Pela primeira vez uma instituição de ensino brasileira figura entre as cem melhores do mundo.

Com recursos carimbados, a produção científica das universidades cresceu 1.700% em três décadas

O economista Luiz Gonzaga ­Belluzzo foi o responsável por criar o modelo de autonomia financeira em 1989, garantido via decreto pelo então governador ­Orestes Quércia. À época, o professor emérito da Unicamp e consultor editorial de ­CartaCapital era secretário estadual de Ciência e Tecnologia. Na avaliação de Belluzzo, o importante é manter o mesmo princípio de financiamento, independentemente de qual seja o novo imposto que venha a substituir o ICMS. “No fim dos anos 1980, discutimos muito a proposta com o Cruesp, fizemos um debate bastante amplo, que incluiu todos os colegiados de professores, os sindicatos e associações”, recorda. “Honestamente, não sei o que o atual governador pensa sobre o tema, e isso é preocupante porque, apesar dos nossos esforços, a autonomia financeira ainda está fixada num decreto, seria importante que fosse transferida para a Constituição do estado”, sugere o economista.

A autonomia financeira das universidades não está assegurada em lei. O decreto precisa ser renovado de tempos em tempos. Até hoje, o único governador que ousou mexer no arranjo foi José Serra, do PSDB, em 2007. A tentativa frustrada gerou uma onda de protestos nas três universidades, e fez eclodir uma das mais longas ocupações de reitoria da história da USP, que durou 51 dias. “Depois que Serra deslizou daquele jeito, nenhum outro governador tentou mexer. Ao que me parece, a autonomia financeira está consolidada na consciência da população paulista, porque o salto de qualidade que ela trouxe é algo impressionante”, avalia Belluzzo.

Promessa. “Tarcísio de Freitas reiterou seu apoio à autonomia financeira”, relata Barretti – Imagem: Arquivo/Unesp

A transição para o novo imposto estadual vai levar anos, e só estará consolidada em 2033. Meirelles, atual reitor da ­Unicamp, acredita que nesse meio-tempo é possível avançar e garantir que a autonomia financeira vire lei. Atualmente, apenas a fonte de receitas da Fapesp, principal agência de fomento à pesquisa do estado, está constitucionalizada. Cabe à instituição 1% da base total do ICMS. “Tendo como base as decisões finais da reforma tributária, vamos refazer os cálculos para manter a mesma ordem de dotação orçamentária que as três universidades têm hoje”, explica o reitor. “O modelo da Fapesp pode ser uma forma, porque nós defendemos que a autonomia seja incluída na Constituição estadual.”

O deputado estadual Carlos Giannazi, do PSOL, está à frente desse debate na Assembleia Legislativa, e defende que o decreto vire lei e seja constitucionalizado. Além disso, propõe que seja fixada uma porcentagem maior a partir do novo imposto, de pelo menos 11%. “Não podemos ficar reféns de um decreto que depende dos humores de cada governo de plantão. Se estiver na Constituição estadual, não poderá ser modificado com tanta facilidade.” O parlamentar alerta, porém, que a batalha não será fácil, porque será preciso enfrentar uma “bancada fundamentalista, miliciana, anticiência e antiuniversidade”. “Essa turma ainda tem força, e tudo que eles puderem fazer para sabotar o investimento nas universidades eles farão”, alerta. Em contrapartida, garante Giannazi, há uma oposição “atenta e vigilante” que vai buscar avançar no debate com o apoio da sociedade organizada e dos movimentos sociais que defendem o financiamento público para a educação.

De acordo com Fernando Sarti, professor de Economia e pró-reitor de Desenvolvimento Universitário da Unicamp, “a autonomia financeira trouxe excelência”, porque garantiu uma estabilidade do ponto de vista do financiamento que dá possibilidade aos gestores de fazerem planejamentos de longo prazo. “A ciência precisa de previsibilidade e, quando se trata de pesquisa, não se pode começar um projeto sem saber se haverá recursos para continuá-lo. A autonomia nos permitiu avançar muito nessa gestão acadêmica, porque não dependemos de terceiros para gerir nossos recursos.” Isso não significa, porém, que as universidades não prestem contas à sociedade. “Além de pesquisa, hoje conseguimos investir em projetos de extensão, que são uma forma de prestar serviços importantes à ­sociedade, de devolver esse investimento a partir de pesquisas, equipamentos de saúde e formação profissional.”

“A ciência precisa de previsibilidade”, observa Fernando Sarti, da Unicamp

Em resposta aos questionamentos de CartaCapital, o governo de São Paulo informou que “discutirá, em momento oportuno, o financiamento para o ensino superior público no estado”. A nota acrescenta que “o texto final da reforma tributária prevê uma transição do modelo atual de tributação para o novo até 2033. Portanto, há tempo suficiente para tratar do tema, que terá toda atenção do governo e seu compromisso com o ensino superior público de excelência”.

Ao longo desses 34 anos de autonomia, as universidades estaduais paulistas viraram verdadeiras fábricas de conhecimento. O salto de produção foi astronômico: em 1989, elas publicavam, juntas, cerca de 1,2 mil trabalhos científicos por ano em revistas indexadas na base Web Of Science. Atualmente, são publicados mais de 22 mil artigos por ano, aumento de 1.700%, segundo o Sistema Integrado de Bibliotecas da USP. De acordo com dados compilados pela Fapesp, o número de mestres formados por USP, Unesp e ­Unicamp cresceu 300% nessas três décadas, e o número de doutores aumentou 600%.

Mesmo sem previsão de como será o novo arranjo de financiamento, o presidente do Cruesp acredita que a autonomia não está ameaçada. Barretti acrescenta que há anos as universidades se preparam para esse momento, porque sabiam que a reforma tributária traria esse nó. Não por acaso, elas reservaram dinheiro em caixa para enfrentar tempos turbulentos. “Nossos desafios continuam os mesmos, mas agora precisamos ser ainda mais prudentes em relação ao gerenciamento dos recursos, que não são apenas das universidades, mas de toda a sociedade que nos financia, e é a essa sociedade que temos a preocupação de prestar contas”, garante o reitor. •

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

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