Política

Assembleia de Santa Catarina negocia compra de ‘kit Covid’ ineficaz sem licitação

Documento obtido por ‘CartaCapital’ indica interesse em remédios como azitromicina e ivermectina. A operação é ilegal, apontam juristas

O plenário da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Foto: Bruno Colaço/Alesc)
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Uma enigmática troca de correspondências entre o médico responsável pelo setor clínico de saúde na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, e um diretor da casa, mostra que a pandemia se transformou em celeiro para negociações, no mínimo, nebulosas.

Foram negociados 1.200 caixas de medicamentos que fazem parte do chamado ‘kit Covid’, como ivermectina e azitromicina, cuja suposta eficácia contra o coronavírus tem sido desmentida pela ciência.

No último dia 12, doutor Marcelo Celtro, da Coordenadoria de Saúde e Assistência da Alesc, encaminhou ao diretor um ofício onde afirma que em atendimento a uma solicitação feita por ele em 10 de março, apresentava uma lista de medicamentos “para aquisição com Dispensa de Licitação”.

Celtro escreve ainda que os medicamentos em questão “são remédios aprovados pela Anvisa e Ministério da Saúde para serem utilizados no tratamento precoce do coronavírus”. E anota um antitérmico, a dipirona (que auxilia no controle da febre), dois corticóides (a dexametasona e a prednisona, usadas para tratar quadros graves de Covid-19) e uma lista de antibióticos: ivermectina, azitromicina, amoxicilina tri-hidratada e clavulanato de potássio. Os antibióticos, contudo, não funcionam contra vírus, mas sim contra infecções bacterianas. A Covid-19 é causada por um vírus.

Em setembro, um estudo brasileiro publicado na revista científica The Lancet concluiu que a azitromicina não provocou mudanças no estado clínico de 400 pacientes internados. Já a ivermectina, quando aplicada precocemente, surgiu como um agravante da infecção pelo coronavírus, segundo um estudo da Fiocruz e da Universidade Federal do Amazonas em Manaus divulgado em fevereiro. Até a fabricante da ivermectina, a farmacêutica Merck, diz não haver evidências de que o medicamento tenha bons efeitos contra a Covid-19.

Contrariando a ciência, o médico justifica que objetivo da aquisição “é auxiliar de forma eficaz e preventivamente no combate à pandemia, evitando que nossos colaboradores tenham que se dirigir à Unidade de Saúde de sua região”.

CartaCapital contatou à assessoria de imprensa da presidência da Alesc, por e-mail e telefone, para questionar sobre a intenção da compra, com recursos públicos, desses medicamentos. A assessoria não se pronunciou.

Por telefone e mensagens pelo WhatsApp, o diretor de Comunicação da Alesc Dayan Schütz confirmou o certame, mas não atendeu ao pedido de envio da cópia do ofício encaminhado pelo “diretor” ao doutor Daltro e tampouco informou o valor total da compra. Segundo ele, a medida, tomada pela mesa diretora, era uma forma de “tentar ajudar os funcionários terceirizados” (no ofício, o médico escreve ‘nossos colaboradores’) no combate à pandemia e que se tratava de “uma consulta e não processo de aquisição”.

Schütz insistiu na tese que “consulta não é processo de aquisição”. Mas qual o sentido de uma troca de mensagens protocolares entre os dirigentes da Casa, com explícita sugestão de “aquisição” de medicamentos “com dispensa de licitação? Não se caracteriza como uma demonstração de interesse no ato?

Ofício mostra relação de medicamentos de ineficácia comprovada contra a Covid-19 (Foto: Reprodução)

A operação, segundo juristas consultados por CartaCapital, é ilegal. “O mais grave”, afirmou um dos advogados, “é comprar só para os servidores da própria Assembleia”. A reportagem perguntou à Alesc se havia algum parecer jurídico que autorizava a compra, mas também não houve resposta.

Uma auditoria do Tribunal de Conta da União – TCU, considerou que não há “amparo legal” no uso de recursos públicos para a compra de medicamentos à base cloroquina no tratamento da Covid-19. No Rio Grande do Sul, a Justiça proibiu a distribuição pela prefeitura de Porto Alegre destes mesmos medicamentos para o tratamento precoce da doença.

Por telefone, Schütz chegou a admitir “que tinham conhecimento da ilegalidade, mas havia uma razão maior” para tanto. Na última mensagem trocada por WhatsApp, reiterou que “não houve autorização por parte dos setores responsáveis pela compra”. Menos mal. A população de Santa Catarina agradece.

Outras denúncias de corrupção vagueiam por Florianópolis. O governador Carlos Moisés, PSL, volta ao banco dos réus para enfrentar novo pedido de impeachment na próxima sexta-feira, 26, perante o Tribunal Especial de Julgamento, convocado pelo desembargador Ricardo Roesler. Trata-se do escândalo da “fraude dos respiradores”, uma operação no valor de R$ 33 milhões para compra de 200 respiradores, em março de 2020. Os equipamentos não foram entregues e o estado nunca mais viu a cor do dinheiro.

ATUALIZAÇÃO: Após a publicação da reportagem a Assembleia Legislativa de SC informou, em nota, que o processo foi anulado após análise jurídica interna.

Leia na íntegra:

“Em face da repercussão da sugestão da Coordenadoria de Saúde sobre a compra de medicamentos pela Assembleia Legislativa, faz-se necessário esclarecer que o pedido e o levantamento em questão, partem da conduta médica de atenção aos infectados e são os mesmos disponíveis na rede pública de atenção à Saúde. O processo foi analisado pela Procuradoria Jurídica da Casa em relação ao interesse público quanto a sua motivação, justificativa e legalidade. As conclusões não recomendaram a compra, o que foi seguido pelo despacho da direção da Casa pelo arquivamento do processo.”

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