Política
As palavras que restam
Baumgartner, protagonista da última obra de Paul Auster, busca, por meio da escrita, dar sentido ao mundo


As primeiras páginas de Baumgartner geram uma expectativa que não se consumará. Sob a aparente normalidade do cotidiano, o narrador descreve pequenas e desconcertantes confusões que parecem encaminhar o protagonista para a beira de um precipício. Mas as coisas não serão bem assim.
A vida, deseja nos dizer Paul Auster, mesmo quando a memória nos trai e o fim se avizinha, comporta pequenas alegrias e suavidade.
Último dos 34 livros publicados pelo autor, morto em abril deste ano, em Nova York, aos 77 anos, Baumgartner, mais do que contar uma história com começo, meio e fim, capta um estado de espírito.
No centro da narrativa está um professor de Filosofia, por todos chamado de Sy, ao redor dos 70 anos, que vive sozinho desde que a mulher, Anna, morreu de uma forma absolutamente improvável. Essa mulher paira sobre sua vida um pouco como um fantasma. Sua ausência “dói como um membro perdido”.
A morte deu-se dez anos antes do relato, que começa com Sy tentando trabalhar em um ensaio sobre Kierkegaard, mas sendo interrompido por seus próprios pensamentos e memórias.
Às reminiscências de sua vida são acrescidos textos deixados por Anna – que acaba, assim, por virar uma segunda voz narrativa.
Autor prolífico, que passeou por diferentes gêneros – romance, memória e roteiro –, Auster, neste trabalho derradeiro, retoma temas que permearam sua obra, como a dor, a perda e o poder da imaginação – ou do sonho ou, simplesmente, da ficção – sobre nossas vidas.
É possível ouvir, nas lembranças de Sy, ecos de A Invenção da Solidão (1982), no qual Auster refletia sobre a distante relação com o pai, e de Cidade de Vidro, texto que abre A Trilogia de Nova York (1985), em que a vida é, de certa forma, vista como uma ficção.
Baumgartner. Paul Auster. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras (176 págs., 79, 90 reais) – Compre na Amazon
E também há, é claro, ecos do próprio Auster em Seymour Tecumseh Baumgartner, professor de Princeton, desde menino encantado pelos livros e autor de vários deles.
Ao tentar dar forma a seus pensamentos fragmentados, que se espalham “em pedacinhos de ideias cada vez menores”, e organizar a confusão de seus dias, Sy parece, mais que tudo, buscar a garantia de que ainda é capaz de dar materialidade ao mundo por meio da palavra.
“Chegando ao fim”, diz o narrador, “(Baumgartner) queria que ao menos lhe fosse concedida a dignidade de que o coração parasse enquanto produzia sua frase derradeira.”
O livro, conforme se encaminha para o final, perde um pouco o ritmo e seu desfecho é enigmático. Mas isso é pequeno diante do todo.
O que fica de um escritor quando ele parte? O que é feito das palavras que deixou? Baumgartner foi a última resposta de Auster a essas questões. •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘As palavras que restam’
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