Política
Aquele que falta
A CPI do 8 de Janeiro vai propor o indiciamento de Jair Bolsonaro por incitação ao golpe de Estado


Aécio Lúcio Costa Pereira foi o primeiro de 1,3 mil réus a serem julgados por participar do quebra-quebra de 8 de janeiro em Brasília. Funcionário de uma estatal paulista desde 2014, foi demitido após aparecer em um vídeo no dia do levante. “Amigos da Sabesp: quem não acreditou, tamo aqui. Quem não acreditou, tô aqui por vocês também, porra! Olha onde eu estou: na mesa do presidente”, dizia, do plenário do Senado, pouco antes de sua prisão em flagrante no próprio local. O acusado foi condenado a 17 anos de cadeia por tentar um golpe de Estado e abolir com violência o Estado Democrático de Direito, entre outros crimes. Quando o Supremo Tribunal Federal decidia seu destino, em 14 de setembro, o ministro Gilmar Mendes comentou: “Estamos julgando nesse momento Aécio, mas falta alguém (…). O pano de fundo desse debate é tudo isso que ocorreu todo esse tempo, todo esse tempo, esse assédio, tanques fumegantes no 7 de Setembro”. Quem faltaria? A CPI do 8 de Janeiro pretende responder depois do feriado.
No relatório final que apresentará na próxima terça-feira 17, a senadora Eliziane Gama, do PSD do Maranhão, acusará Jair Bolsonaro de incitar o levante, de ser uma espécie de autor intelectual. Nessa condição, o ex-presidente estará ao alcance da mesma denúncia à Justiça feita contra Aécio Pereira e outros 1,3 mil baderneiros. É o que dizem dois advogados: Duarte Jr., deputado pelo PSB do Maranhão e integrante da CPI, e o criminalista paulista Pierpaolo Bottini. Ambos citam o artigo 29 do Código Penal para unir o futuro do incitador ao dos incitados. “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”, afirma o artigo, que trata do chamado “concurso de pessoas”. Incitação ao crime é um ilícito específico previsto no artigo 286 do Código Penal, e Bolsonaro também estará ao alcance da Justiça por isso. Nesse caso, a punição é pequena, no máximo seis meses de cadeia.
Os bolsonaristas inventaram a comissão para fustigar Lula. No fim, expuseram o próprio golpismo
Só quem pode denunciar alguém por crime à Justiça é o Ministério Público. Por isso, o órgão será um dos destinatários do relatório que vier a ser aprovado. Se tudo correr como o programado, a votação do documento ocorrerá na quarta-feira 18. Para a imputação da CPI a Bolsonaro ter consequência, a Procuradoria-Geral da República precisará tomar providências. A Procuradoria é o MP perante o Supremo. Bolsonaro chegou a ser alvo de uma investigação por possível incitação da tentativa de golpe em janeiro. O motivo foi ter publicado no Facebook um vídeo no qual um procurador da República em Mato Grosso do Sul, Felipe Gimenez, dizia em uma entrevista que a eleição havia sido fraudada graças a urnas eletrônicas não confiáveis, e que “Lula não foi eleito pelo povo, ele foi escolhido e eleito pelo STF e o TSE”. A publicação ocorreu em 10 de janeiro e logo o capitão apagou-a. Ao depor à Polícia Federal sobre o episódio, em abril, o ex-presidente declarou que havia se enganado e compartilhado o material sem querer.
A investigação de Bolsonaro havia sido requerida pela Procuradoria em 13 de janeiro, depois de muita pressão interna. Não foi o então “xerife”, Augusto Aras, a agir, mas um subprocurador-geral designado para cuidar de casos do 8 de Janeiro. Carlos Frederico Santos voltou atrás, porém, na mira apontada para o ex-presidente. Em julho, enviou a Alexandre de Moraes, relator no Supremo de vários inquéritos decorrentes do 8 de Janeiro, uma manifestação. Não fazia sentido, argumentou, usar um ato de 10 de janeiro para investigar alguém por incitar um acontecimento da antevéspera. Santos pedia a exclusão do capitão do inquérito 4.921, aquele sobre instigadores do levante, e a abertura de uma espécie de pré-inquérito exclusivo sobre o ex-presidente. Em 7 de agosto, Moraes concordou.
A relatora Eliziane Gama vai detalhar a cadeia de eventos até o 8 de Janeiro – Imagem: Bruno Spada/Ag. Câmara
Santos era o preferido de Aras para comandar a Procuradoria, após a renovação de seu próprio mandato ter sido descartada. O cargo tem sido ocupado interinamente pela subprocuradora-geral Elizeta Ramos. Um dos primeiros atos de Elizeta foi trocar, na marra, a chefia da repartição do MP que funciona como instância interna máxima em casos de corrupção, a 5a Câmara. Saiu Ronaldo Albo, que aliviou em 7 bilhões de reais uma multa aplicada à JBS/Friboi em um acordo de leniência, entrou Alexandre Camanho de Assis, subprocurador-geral que tentou proteger Michel Temer da enrascada na qual o frigorífico havia metido o então presidente em 2017. Lula indicará quando um procurador-geral? “Não tem pressa”, afirma um ministro.
O xadrez em Brasília está complicado, daí a falta de pressa. Parte do Senado quer influenciar a escolha de Lula não só para a Procuradoria, mas para a vaga aberta pela aposentadoria de Rosa Weber no Supremo. O Senado é que aprova, ou não, indicados para os dois órgãos. Quem encabeça a rebelião, nos bastidores, é Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá. O senador comanda a poderosa Comissão de Constituição e Justiça, a quem cabe sabatinar indicados para as duas instituições. Ele é a face oculta por trás do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas Gerais. Alcolumbre antecedeu Pacheco no cargo, entre 2019 e 2020, fez dele seu sucessor, em 2021, e quer sucedê-lo em 2025. Para voltar ao posto, dá corda aos bolsonaristas, que veem o Supremo como inimigo. Recentemente, Alcolumbre liderou a aprovação na CCJ de uma proposta que limita as decisões individuais de juízes da Corte. Tudo em 40 segundos.
A cadeia de acontecimentos anteriores ao 8 de Janeiro permite apontar a participação do ex-presidente
“Com o relatório da CPI, o Congresso dará aval político ao Judiciário e ao Ministério Público (contra Bolsonaro)”, diz um integrante da comissão de inquérito, o deputado Rogério Correia, do PT mineiro. Será, no fim das contas, um tiro no pé dos bolsonaristas que propuseram a investigação a fim de “provar” um delírio, que a culpa pelo 8 de Janeiro é do governo Lula. Não que o levante não possa ter tirado proveito de falhas do GSI, o órgão de segurança do Palácio do Planalto, e do Ministério da Justiça, que controla a Força Nacional de Segurança. Mas a CPI só saiu do papel após a CNN Brasil divulgar, em abril, imagens internas do Planalto que mostravam funcionários do GSI em atitude amistosa diante dos invasores do 8 de Janeiro. O então chefe do órgão, general Marco Edson Gonçalves Dias, foi demitido no embalo das imagens. No próximo dia 17, os bolsonaristas da CPI apresentarão um relatório próprio que provavelmente culpará Dias e o ministro da Justiça, Flávio Dino. Gesto capaz de atiçar os fiéis do capitão, mas sem consequência na esfera judicial.
A CPI não precisaria terminar ainda, tinha mais um mês de prazo pela frente. As forças que a compõem chegaram, no entanto, a um impasse sobre os rumos dos trabalhos, e o presidente do colegiado, o deputado Arthur Maia, do União Brasil da Bahia, não quis arbitrar a favor de ninguém. A oposição defendia convocar Dino para depor. Os governistas queriam quebrar os sigilos bancário e fiscal de Jair e Michelle Bolsonaro, para identificar pistas de financiamento dos golpistas. E interrogar mais militares, entre eles o general da reserva Walter Braga Netto, cujo depoimento chegou a ser marcado e depois foi cancelado.
Cid e Vasques cumpriram ordens. E os “patriotas” acima serviram de massa de manobra – Imagem: Marcos Oliveira/Ag. Senado, Lula Marques/ABR e Marcelo Camargo/ABR
O relatório de Gama provavelmente acusará alguns fardados pelo 8 de Janeiro. A senadora tende a definir o quebra-quebra como desfecho de uma história mais longa de conspiração contra a eleição, e nessa trama há digitais militares. Para que a história mais longa ficasse nítida, o hacker Walter Delgatti, famoso desde a “Vaza Jato”, foi peça-chave. Seu depoimento à CPI em 17 de agosto foi “bombástico”, na visão da relatora. Ligou Bolsonaro diretamente à conspiração. Delgatti contou como havia sido uma reunião com o então presidente em 10 de agosto de 2022, no Palácio da Alvorada. O capitão, segundo ele, queria auxílio para violar as urnas eletrônicas e provar que eram fraudáveis. “A parte técnica eu não entendo, então, eu irei enviá-lo ao Ministério da Defesa, e lá, com os técnicos, você explica tudo isso”, teria dito Bolsonaro. “Fui levado até o ministério pela porta do fundo. É um portão grande, atrás. Eu entrei com o carro e já desci no elevador”, declarou o hacker na CPI, um relato repetido um dia depois perante a Polícia Federal.
Na época do encontro entre Bolsonaro e Delgatti, a pasta da Defesa participava de uma comissão que o Tribunal Superior Eleitoral havia criado para atestar a segurança das urnas. A pasta era chefiada pelo general da reserva Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, outro que escapou de investidas da CPI graças ao fim antecipado da comissão. Delgatti relatou na comissão ter ido mais quatro vezes ao ministério para conversar com técnicos de Tecnologia da Informação e com o general. Disse mais: tinha sido ele, Delgatti, o cérebro por trás do relatório final da Defesa sobre as urnas, divulgado em 9 novembro, dez dias após a vitória de Lula. Um documento ardiloso. Não apontava fraude nem a descartava, o que serviu para embalar os sonhos golpistas de militares e dos bolsonaristas acampados na porta de quartéis. Até hoje, o general Oliveira não veio a público se pronunciar sobre o relato do hacker.
Por causa de divergências internas, a CPI terminará antes do previsto
Ao apontar uma história mais longa por trás do 8 de Janeiro, a CPI reforçará aquilo que o Tribunal Superior Eleitoral fez em julho, ao impedir o capitão de se candidatar por oito anos. O julgamento do TSE tinha como ponto de partida uma reunião do então presidente com embaixadores estrangeiros em julho de 2022, alvo de uma ação movida pelo PDT. Nela, Bolsonaro basicamente afirmou que a eleição seria roubada para Lula. Criar desconfiança sobre a lisura do pleito, entendeu o tribunal, era uma estratégia da campanha bolsonarista que contribuiu para seus simpatizantes permanecerem coesos e em estado de alerta mesmo após a eleição. A minuta golpista achada em 12 de janeiro na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres foi vista pelo tribunal como parte da conspiração.
O plano de explodir uma bomba no aeroporto de Brasília em 24 de dezembro de 2022 é outro capítulo do enredo. A CPI quis interrogar dois dos três condenados pelo plano. Um deles, Wellington Macedo de Souza, sentenciado a seis anos pela Justiça de Brasília, ficou em silêncio, apesar de Gama lhe ter oferecido uma delação. O outro, Alan Diego dos Santos Rodrigues, sentenciado a cinco anos, teve o depoimento cancelado. Ambos planejaram o atentado, enquanto estavam na porta do QG do Exército na capital federal, de onde saíram vários participantes da tentativa de golpe em 8 de janeiro. A bomba havia sido fabricada com material fornecido por um empresário, George Washington de Oliveira Sousa, sentenciado a nove anos. Ele havia deixado o Pará em novembro de 2022 com oito armas, mil munições e cinco bananas de dinamite, rumo a Brasília. Ao depor à Polícia Civil sobre o plano de atentado, declarou: “O que me motivou a adquirir as armas foram as palavras do presidente Bolsonaro”. A declaração foi citada pela Procuradoria naquele pedido para incluir o capitão no inquérito sobre a autoria intelectual da tentativa de golpe em 8 de janeiro.
Braga Netto, vice na chapa de Bolsonaro, tem passado ileso. Até quando?
A delação do tenente-coronel do Exército Mauro César Barbosa Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, também traz ingredientes que, se comprovados, envolvem o capitão na conspiração golpista posterior à eleição. Essa delação, diz o deputado Rubens Pereira Jr., do PT do Maranhão e integrante da CPI, é consequência da Comissão Parlamentar de Inquérito. Cid havia sido preso em caráter preventivo em 3 de maio, a pedido da PF e por ordem de Alexandre de Moraes, em razão de ter providenciado um cartão fajuto de vacina anti-Covid para Bolsonaro, no fim de 2022. Na CPI, o fardado ficou calado em 11 de julho. Só se rendeu e fez uma delação com a Polícia Federal depois de a CPI ter quebrado seu sigilo bancário e descoberto que Cid movimentou mais dinheiro do que o salário permitia. A delação foi homologada em 9 de setembro por Moraes. Nela, Cid conta, entre outras, a tentativa de Bolsonaro de convencer a cúpula militar a aderir a um golpe travestido de legalidade, a fim de reverter a eleição de Lula.
A prisão preventiva de Silvinei Vasques, chefe da Polícia Rodoviária Federal no governo Bolsonaro, é outra “obra” da CPI. Segundo Pereira Jr., Vasques mentiu à comissão ao ser interrogado em 20 de junho sobre as razões para a PRF ter feito, no dia da eleição, operações incomuns no Nordeste, reduto eleitoral de Lula. A comissão informou à Procuradoria e ao Supremo sobre as mentiras. No início de agosto, Vasques foi preso por ordem de Moraes, em uma investigação da PF justamente sobre as operações incomuns.
E Bolsonaro, também terá a cadeia como destino? •
Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aquele que falta’
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