Política

Após rompimento de barragem, mineradora fornece água contaminada a moradores do Maranhão

Caso ocorre no distrito de Aurizona, no município de Godofredo Viana, e envolve a canadense Equinox Gold

Metais pesados. Ulisses Nascimento, da UFMA, confirma a contaminação. Além de escassa, a água oferecida à comunidade é escura e possui mau odor - Imagem: Sabino Rocha e MAB
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Fincado no interior do Maranhão, a 350 quilômetros da capital São Luís e dentro do território da Amazônia Legal, o distrito de Aurizona, no município de Godofredo Viana, está entregue à própria sorte. Apesar de sediar uma das maiores minas de ouro do País, o local não oferece à sua população nem mesmo um dos direitos humanos mais básicos: o acesso à água. Isso porque, há um ano, os mais de 4 mil moradores convivem com as sequelas deixadas ­pelo rompimento da barragem Lagoa ­Pirocaua, da Mineradora Aurizona, de propriedade do grupo canadense Equinox Gold, umas das maiores exploradoras de ouro do mundo. O acidente ocorreu em março de 2021, ocasionando a contaminação das principais fontes de água potável da região, em especial do reservatório Juiz de Fora.

De lá para cá, a comunidade deixou de ter acesso à água de qualidade e enfrenta elevado nível de poluição, favorecendo o surgimento de várias doenças. Um estudo recém-divulgado revela que tanto a água quanto o solo da região estão contaminados com metais tóxicos e micro-organismos. Foram encontradas substâncias como mercúrio, arsênio, selênio, níquel e chumbo em um nível 100 mil vezes acima do máximo permitido. A pesquisa foi encomendada pelo Movimento dos Atingidos por Barragem e realizada por um coletivo de cinco universidades públicas: as federais de Ouro Preto (Ufop) e Maranhão (UFMA) e as ­estaduais do Maranhão (UemaSul), São Paulo (USP) e Campinas (Unicamp).

O líquido ofertado pela Equinox Gold possui substâncias tóxicas em nível até 100 mil vezes superior ao permitido

O estudo analisou amostras de água de vários pontos de Aurizona, tanto ­áreas atingidas pelo rompimento da barragem quanto não atingidas, para ter parâmetros comparativos. O resultado confirmou o que os moradores do distrito vinham percebendo, considerando o histórico de uma água, além de escassa, escura e com mau odor. “Identificamos que a contaminação é persistente. Fizemos os testes em setembro, um período mais seco, e em fevereiro passado, época mais chuvosa. Nos dois casos confirmamos a contaminação. E as análises foram feitas tanto nos reservatórios e locais que as pessoas usam para pesca de subsistência e recreação quanto nas torneiras das casas e nas caixas d’água que são abastecidas pelos carros-pipa”, explica Ulisses Nascimento, professor e coordenador do Departamento de Tecnologia Química da UFMA.

O pesquisador chama atenção para o fato de que a contaminação foi potencializada com o rompimento da barragem, mas, na verdade, ela é inerente à ­atividade da mineração, lembrando que as impurezas também estão presentes em amostras de materiais de áreas que não foram atingidas pelo acidente. “O rompimento chama mais atenção, mas na circunvizinhança desses empreendimentos sempre há a preocupação de que a contaminação, a partir do lançamento de poluentes, pode acontecer paulatinamente durante todo o processo de produção. Tem uma amostra extremamente contaminada com metais que é ligada à mineradora e vai para um braço do mar, o que nos dá o indicativo de que esse processo de lançamento de contaminantes tem acontecido de forma crônica”, alerta o cientista.

Perseguição. Moradores chegaram a ser presos por protestar contra a mineradora – Imagem: MAB

Com o rompimento da barragem, a comunidade passou a pressionar a mineradora, que se comprometeu a distribuir água mineral para o consumo e fornecer carros-pipa para abastecer as caixas d’água instaladas em frente às casas. Inicialmente, o líquido tinha origem no reservatório “Zé Bolacha”, de ­propriedade da própria mineradora. Mas as famílias começaram a desconfiar que a empresa estava captando água do reservatório Juiz de Fora, oficialmente interditado. “A água começou a chegar um pouco nas torneiras de algumas casas. Eles diziam que pegavam no ‘Zé Bolacha’ e que a água passava pela estação de tratamento. Mas a gente foi vendo que o líquido era do Juiz de Fora, chegava preto, poluído, e muitas vezes nem chegava”, explica Dalila Calisto, coordenadora do MAB no Maranhão e Piauí.

No início deste ano, a mineradora assumiu que a água era realmente do reservatório Juiz de Fora, mas alegava ter laudo comprovando a qualidade do líquido, informação que caiu por terra depois do estudo realizado pelos pesquisadores. Além disso, a água só chegava nas torneiras uma hora por dia e, mesmo assim, em fevereiro, o fornecimento ficou suspenso por cinco dias.

Coordenadora da pesquisa, Dulce Maria Pereira, da Ufop, questiona o argumento da mineradora de que a causa do rompimento foram as fortes chuvas que caíram na região. “Fomos verificar e descobrimos que não se tratava disso, e sim da ‘necroengenharia’ ou engenharia da morte. Se há muitas chuvas, essas barragens têm de estar preparadas, mas não houve esse dilúvio que a empresa alega. É uma tentativa de transferir a responsabilidade para a natureza. Faltou prevenção, o que torna o desastre um crime.”

Além da contaminação da água e do solo, a atingir também animais e a agricultura, outro problema relatado pela população é a poluição no ar. No processo de produção do ouro, a empresa descarta resíduos e forma montanhas de estéril, com substâncias altamente tóxicas. Essas montanhas ficam na entrada do distrito, a menos de 10 quilômetros das residências. “As famílias costumam dizer que, cada vez mais, Aurizona está afundando no meio dessas montanhas. Nas casas, a gente vê um pó fino cobrindo os móveis por conta da poluição e ainda tem a preocupação com o deslizamento dessas montanhas, como aconteceu uma vez. A sorte é que era madrugada e não tinha ninguém por perto”, denuncia Dalila. Outra queixa é em relação à explosão de dinamite, provocando rachaduras nas paredes.

Dalila denuncia também a repressão policial para atender aos interesses da mineradora, citando o exemplo de duas mulheres que chegaram a ser presas por protestar contra a empresa. “Tem toda uma ação de conflito, de criminalização da luta, de perseguição de lideranças”, diz. Ela ainda acusa a empresa de violar direitos humanos da população e acrescenta que, desde a instalação da mineradora em Aurizona, há 13 anos, os moradores perdem direitos, a começar pelo território. “Muitas famílias foram obrigadas a sair da terra e até hoje não receberam indenização. Foram tirados delas o direito à moradia, o direito de ir e vir e até de protestar. Agora, estão tirando o direito à água, algo que a região tem em abundância”, destaca, lembrando que a mineradora ameaça suspender o fornecimento de água potável.

As montanhas de resíduos também preocupam a população local

“A comunidade é uma espécie de vizinho indesejável. Vemos um deslocamento forçado das pessoas, seja por ações agudas como o rompimento de barragens, seja criando condições insalubres e inadequadas. Até que ponto esses eventos não são deliberados?”, questiona Ulisses Nascimento. Dulce Pereira corrobora com o professor maranhense e cita parcerias firmadas com acadêmicos e órgãos de defesa dos direitos humanos no Canadá, os quais acompanham a atuação da Equinox Gold no Maranhão.

A pesquisadora cobra atuação firme dos órgãos públicos, até porque a área é de proteção ambiental e faz parte do bioma amazônico. Além disso, acusa a Equinox Gold de explorar uma cava que não foi autorizada pelo estado, atuando de forma ilegal. Afirma ainda que pretende marcar uma audiência conjunta com representantes do governo maranhense e da mineradora, para apresentar o laudo da pesquisa. Apesar de a empresa seguir impune, em outubro de 2021, o Ministério Público Federal entrou com uma ação civil pública na Justiça Federal contra a canadense e o governo do Maranhão.

A mineradora é acusada de crime ­ambiental provocado pelo rompimento da barragem, lançando grande quantidade de resíduos sólidos e lama tóxica na vegetação nativa. Já o estado é apontado como omisso. Procurado pela reportagem, o governo não quis comentar a situação da comunidade de Aurizona, sob a alegação de não ter tido acesso ao laudo da pesquisa e também em decorrência da transição pela saída de Flávio ­Dino para disputar o Senado nas eleições de outubro. A Equinox Gold, por sua vez, não respondeu às insistentes tentativas de contato da reportagem. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A sede do ouro”

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