Política
Antídoto ao golpismo
O “caçador de torturadores” Jair Krischke celebra a inédita punição de militares que atentam contra a democracia
 
         
        Conhecido como “caçador de torturadores”, o historiador Jair Krischke criou uma rede de pesquisadores e informantes que ajudou a esclarecer mortes e sequestros cometidos pelas ditaduras na América do Sul entre os anos 1960 e o início da década de 1990. Uma de suas últimas ações ocorreu em 2021, quando se uniu ao ativista Adolfo Pérez Esquivel, vencedor do Nobel da Paz em 1980, para denunciar na Justiça da Argentina agentes da repressão suspeitos de envolvimento no desaparecimento do jornalista paulista Edmur Péricles Camargo, o “Gauchão”, militante do PCB, no Aeroporto de Ezeiza, em junho de 1971. O processo menciona um diplomata e dois militares brasileiros. Agora, aos 87 anos, Krischke acompanha a inédita responsabilização criminal, no Brasil, de oficiais das Forças Armadas envolvidos em conspirações golpistas. “Vivemos um momento único no País. Pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal julgou e condenou um almirante e três generais”, comenta, ao se referir às sentenças contra o chamado núcleo central da trama golpista liderada por Jair Bolsonaro. “Trata-se de um fato absolutamente inédito.”
Não é exagero. Autor do livro A Utopia Autoritária Brasileira (Ed. Crítica), seu colega historiador Carlos Fico contabilizou 15 golpes militares entre 1889, quando as baionetas inauguraram a República, e o de Bolsonaro e seus comparsas, após as eleições de 2022. Sete deles prosperaram, e os demais terminaram em anistia, inclusive o de 1964, que deu início a uma ditadura de 21 anos. Recentemente, o STF condenou 11 militares envolvidos na conspirata bolsonarista, entre eles o almirante Almir Garnier e os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto. Em breve, a lista deve ampliar-se: o ministro Flávio Dino, presidente da Primeira Turma da Corte, agendou para o início de novembro o julgamento dos “kids pretos”, oficiais das Forças Especiais do Exército implicados no plano para assassinar Lula, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, relator da ação penal contra os golpistas no Supremo.
Para quem dedicou mais de seis décadas à defesa dos direitos humanos e à denúncia dos crimes cometidos por regimes autoritários, o momento é histórico e profundamente simbólico. Em 1979, Krischke fundou o Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), no Rio Grande do Sul, que protegeu e auxiliou na fuga de centenas de dissidentes políticos das ditaduras do Cone Sul. Grande parte dos exilados que deixaram o País, talvez a maioria, passou pela fronteira gaúcha com o Uruguai.
Natural de Porto Alegre, Krischke é hoje uma das vozes mais respeitadas do continente quando o assunto é memória e justiça. Embora não milite em nenhum partido político, define-se como socialista, convicção que o acompanha desde a juventude. Em 1961, aos 22 anos, participou da Campanha da Legalidade, liderada pelo então governador Leonel Brizola, que garantiu a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Na época, improvisou um palanque em um antigo sobrado da capital gaúcha, equipado com duas caixas de som e um microfone, de onde transmitia discursos em defesa da ordem democrática. Aquela militância precoce marcou o início de uma trajetória que cruzaria fronteiras, salvando vidas e enfrentando regimes autoritários.
Krischke destaca que Argentina, Chile e Uruguai, nossos vizinhos do Cone Sul, passaram por um verdadeiro processo de transição da ditadura para a democracia. “O Brasil, contudo, fez uma transação, um pacto de impunidade que permanece em vigor até hoje”, resume, ao comentar a Lei da Anistia de 1979, que equiparou torturados a torturadores ao perdoar os crimes políticos do período. Essa imunidade, reforça o historiador, alimentou o caráter autoritário das Forças Armadas, que ainda se veem como tutoras da pátria, esquecendo-se de que devem submeter-se ao poder civil. Ele cita como exemplo a reunião ministerial de 2022, em que Augusto Heleno sugeriu, sem meias palavras, uma intervenção militar. “O ovo da serpente estava sendo chocado há tempos. Eles só aguardaram o momento certo para retirá-lo do ninho.”
“Pela primeira vez, o Supremo julgou e condenou um almirante e três generais”, observa
O fundador do MJDH defende uma reforma estrutural profunda nas Forças Armadas, com ênfase na formação. “A alta oficialidade precisa repensar seu posicionamento. Os militares se pautam pela hierarquia, e o comando define o rumo.” Para ele, a modernização tecnológica de armas e equipamentos, frequentemente reivindicada pelos comandantes, deve vir acompanhada de medidas políticas que afastem de vez qualquer pretensão interna de tutelar o País. Ele também destaca o papel do Superior Tribunal Militar no desfecho das condenações, questionando se os militares punidos perderão suas patentes, como determina a Constituição. Se os golpistas de 1964 tivessem sido responsabilizados, avalia, o 8 de Janeiro (de 2023) talvez não tivesse ocorrido. “Eles saberiam que extrapolar seus deveres traria consequências.” Krischke ressalta que é fundamental que os militares compreendam, sem margem para dúvida, que atacar a democracia é um crime gravíssimo e que a impunidade não pode mais ser tolerada.
O historiador e ativista diz que sempre acreditou na democracia e que seu compromisso nunca foi com a vitória, mas com a luta. Apesar de se definir como um “homem de esperança”, Krischke reconhece a dificuldade do momento político brasileiro e defende o fortalecimento da consciência cidadã. Ele cita o Uruguai como exemplo, onde a população participa ativamente da defesa da democracia, lembrando a Marcha do Silêncio em Montevidéu, que em maio reuniu 70 mil manifestantes em homenagem às vítimas da ditadura, um evento suprapartidário “onde o silêncio fala por si e só é quebrado quando um nome é anunciado e a multidão responde ‘presente’”, diz. “Mesmo quem é crítico à esquerda seguiu esse ritual ao ouvir o nome de Pepe Mujica. O repúdio ao autoritarismo une todos.”
O destino tem um senso de humor peculiar. O prédio que hoje abriga o Movimento de Justiça e Direitos Humanos, em Porto Alegre, foi durante a ditadura militar sede do temido Serviço Nacional de Informações. Ironia: o mesmo espaço que antes vigiava e perseguia agora protege e apoia quem dedica a vida à liberdade, à verdade e à democracia. •
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Antídoto ao golpismo’
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