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Anistia à anistia

Desfigurada no governo Bolsonaro, a comissão retoma o trabalho de reparação histórica

Ineditismo. Pela primeira vez em 20 anos, a Comissão da Anistia é presidida por uma mulher, Eneá de Stutz – Imagem: Clarice Castro/MDHC e Sinpro-DF/UNB
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O ano era 1970. No auge da adolescência, com apenas 16 anos, Estela conheceu uma dor que nunca mais a abandonou. Presa por quase três anos, era comum Vanda ser submetida a sessões de tortura, incluídos socos no maxilar que causaram problemas irreversíveis em sua arcada dentária. As torturas seguiam com pau de arara, palmatória e choques. O motivo de tanta violência era pelo simples fato de

Luíza ser militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares ­(VAR-Palmares), organização que lutava contra a ditadura. Estela, Vanda e Luíza são a mesma personagem: Dilma Rousseff, ex-presidente da República e nova presidente do Banco dos BRICS, perseguida, presa, torturada e condenada pelo regime.

Além de revisar 4 mil processos negados na gestão anterior, os conselheiros querem avançar nos requerimentos coletivos

Mesmo com um arsenal de provas da violência, e mesmo depois de as comissões da verdade de Minas Gerais e do Rio de Janeiro reconhecerem as atrocidades, a ex-presidenta teve seu processo de anistia política negado pela Comissão Nacional, em abril de 2022, durante a gestão de Jair Bolsonaro e de Damares Alves no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O processo de Dilma ­Rousseff está entre os mais de 4 mil pedidos que serão revisados pela nova Comissão Nacional de Anistia, agora sob o “guarda-chuva” do ministro Silvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania, com um histórico oposto àquele de Damares na defesa da dignidade humana. A recusa da demanda da ex-presidenta aconteceu na mesma sessão do julgamento do processo do deputado federal Ivan Valente, do PSOL de São Paulo, após manobra deliberada de Bolsonaro e Damares para pinçar os dois casos e negá-los conjuntamente, em uma única sessão. No dia seguinte, Bolsonaro, na sua live semanal da época, comemorou o resultado.

“O nosso julgamento foi uma farsa, um tribunal de exceção, não era uma comissão de anistia o que existia ali. A comissão anterior era formada por gente ligada à tortura, aos porões da ditadura”, dispara Valente, lembrando que entre os conselheiros durante o período Bolsonaro estava o general Rocha Paiva, autor do prefácio do livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores do regime. O simbolismo da negativa da anistia à ex-presidenta e ao deputado repetiu-se em quase todos os pedidos de reparação por parte das vítimas da ditadura julgados durante a gestão de Damares e agora em processo de revisão. Numa sessão em 30 de março, data que marca o golpe de 1964, quatro casos negados, dentre eles o de Valente, foram revistos. Além de acolher as denúncias descritas nos processos, a comissão concedeu reparação financeira às vítimas e retomou o pedido público de desculpas abolido no governo Temer, voltando a reconhecer a responsabilidade do Estado em relação aos crimes cometidos pelos militares.

Correção. O caso do deputado Ivan Valente foi revisado, após a negativa anterior. “O julgamento (anterior) foi uma farsa”, desabafa o parlamentar – Imagem: Redes sociais

“Desde 2018 a comissão, por ordem expressa do ministro da Justiça da época, Torquato Jardim, parou de pedir desculpas por ter se tornado um Estado de exceção. Isso significa, na prática e no simbólico, que o Estado brasileiro podia resolver voltar a ser uma ditadura, como quase voltou. Ao pedir desculpas, o Estado reconhece que errou e que isso nunca mais vai acontecer”, destaca Eneá de Stutz e Almeida, presidente da Comissão de Anistia. “Sob a gestão Temer, a comissão sofreu várias modificações na sua composição que a descaracterizaram, deixando de ser uma comissão de Estado para ser de governo. A partir de 2019, com Bolsonaro, foi terra arrasada. A comissão passou a ser negacionista. Era consenso entre seus integrantes de que não houve golpe em 1964, mas uma revolução. Para eles, se não houve golpe, também não houve perseguição política, por mais que a pessoa apresente provas, como é o caso de Ivan Valente, que tem prova da perseguição com registro do SNI (Serviço Nacional de Inteligência).”

Oficialmente, foram julgados pouco mais de 4 mil processos na gestão de Damares, dos quais cerca de 300 receberam o parecer favorável, mas, mesmo esses, não foram encaminhados porque tinham falhas nos relatórios. Agora, a comissão pretende revisar 100% dos processos, que, segundo levantamento, podem chegar a 8 mil. “Todos os indeferimentos serão revisados, mas nem todos serão revistos. Só aqueles ilegalmente indeferidos, mas desconfio que seja a maioria”, explica Stutz e Almeida. Damares Alves chegou a mudar o regimento interno da comissão, garantindo a ela a palavra final dos processos. “O critério usado passou a ser ideológico. Foi a volta ao poder de setores que tinham sido afastados ainda na época de Geisel e que, em dado momento, começaram a incomodar a própria ditadura”, comenta o conselheiro Mário Albuquerque. “O que acontecia era um rejulgamento, as pessoas foram julgadas pela ditadura e pela Comissão de Anistia no período de Bolsonaro. Agora restituímos o direito de reparação, trouxemos de volta 14 nomes que participaram de comissões anteriores, com experiência e credibilidade, notório saber e com vínculo com os direitos humanos”, destaca Nilmário Miranda, assessor especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos.

Ao todo, são 21 conselheiros, um colegiado que, pela primeira vez, conta com uma certa paridade, 11 homens e dez mulheres, e preza pela representatividade, com assentos para negros, indígenas e camponeses. É a primeira vez também, em mais de 20 anos, que a comissão é presidida por uma mulher. Outra inovação do colegiado é a possibilidade de requerimento coletivo. “Não posso ficar satisfeita só em tapar os buracos abertos. Preciso avançar e nosso movimento é tanto para o passado quanto para o futuro”, diz Stutz e Almeida. Até agora, a única possibilidade de pedir a anistia política e a reparação econômica ocorria via Lei 10.559, que trata de casos individualmente. Com a alteração do regimento interno, vai ser possível um requerimento coletivo, podendo alcançar, por exemplo, categorias profissionais ou os povos indígenas perseguidos pelo regime ditatorial. Para ilustrar um processo coletivo dos povos indígenas, a presidente da comissão cita que a decisão pode ser a recomendação para que o governo federal faça determinada demarcação de terra como reparação.

“Não posso ficar satisfeita só em tapar os buracos. Preciso avançar”, diz Eneá Stutz, presidente da comissão

“Quando, hoje, falamos ‘sem anistia’, estamos dizendo ‘sem impunidade’, significa que não vamos esquecer o genocídio na pandemia, os atentados em dezembro, a tentativa de golpe em 8 de janeiro. Nosso trabalho na comissão é a mesma coisa, só que em período diferente. Estamos lembrando que teve tortura, que teve desaparecimento, que teve assassinato, que teve genocídio indígena, que teve tudo isso. Não só estamos lembrando como vamos reparar, porque a gente quer revelar essa verdade. E essa memória é construída pelas vítimas, que são os sujeitos de suas histórias para dizer o que aconteceu”, conclui a presidente da comissão.

Apesar de orçamento escasso, a partir de 2024 o colegiado vai retomar projetos de memória e vai lançar editais para a geração de material sobre a história da ditadura, financiando projetos como edição de livros e produção de documentários. Pretende-se ainda concluir um memorial em Minas Gerais, inacabado desde 2015. “Esta comissão tem um peso que vai além das questões de reparação. Tem um peso político e simbólico enorme, principalmente neste momento de avanço do fascismo, na recuperação da memória e do que representou a ditadura no Brasil. É preciso conhecer os crimes cometidos e o motivo da impunidade”, comenta Jessie Jane, perseguida, presa e torturada entre 1970 e 1979. A história de Jane pode ser conferida no documentário Jessie & Colombo, disponível na plataforma Globoplay.

Perseguição. Durante a gestão de Damares Alves, a comissão negou o pedido de Dilma Rousseff – Imagem: Clarice Castro/MMFDH e Casa de América

Dona Elzita, mãe de Fernando Santa Cruz, desaparecido político desde 1974, morreu em 2019, aos 105, com a esperança frustrada de enterrar os restos mortais do filho. O irmão de Fernando, Marcelo Santa Cruz, cobra a retomada da Comissão dos Mortos e Desaparecidos para encerrar “uma questão não resolvida” e dar respostas aos familiares. “A democracia passa por esses esclarecimentos, porque são crimes cometidos contra a humanidade e é negado um direito milenar que faz parte da cultura da sociedade ocidental cristã, que é velar os seus mortos e fazer um funeral”, defende. Depois de ser sido esvaziada, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos foi extinta no apagar das luzes do governo Bolsonaro, faltando dois dias para encerrar o mandato, a partir de uma portaria assinada pelo ex-presidente. Segundo Miranda, a comissão será retomada e vai trabalhar em paralelo com a da Anistia.

Ex-preso político, o jornalista ­Marcelo Mário Melo reconhece a importância da retomada das duas comissões, mas cobra do governo Lula uma reforma militar para não só responsabilizar os oficiais envolvidos nos crimes da ditadura, mas também discutir a cultura militarizada enraizada nas forças policiais. “Não existe uma tradição militar no Brasil de subordinação ao poder civil. A gente viu, no governo Bolsonaro, os acampamentos na frente dos quartéis e deu em quê? A Comissão Nacional da Verdade foi um avanço, mas limitado, porque os arquivos das Forças Armadas não foram abertos. Não temos uma doutrina militar democrática.” •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Anistia à anistia ‘

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