Política

Análise: é necessária a anulação do processo de Lula

Os diálogos revelam a suspeição do juiz Sergio Moro, claramente identificada ao menos nos casos de Lula e João Vaccari Neto

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As mensagens divulgadas pelo site The Intercept Brasil revelam uma relação inadequada entre o então juiz Sergio Moro e procuradores da República, que aparentemente se uniram com o propósito de combater inimigos ideológicos por meio de processos penais de exceção.

O episódio retrata com precisão o paradigma autoritário na contemporaneidade, modelo que temos apontado como autoritarismo líquido, caracterizado pela prática de medidas de exceção capitaneadas pelo sistema de Justiça, diluídas e fragmentadas na rotina democrática com o propósito de camuflar o conteúdo tirânico em um verniz fraudulento de legalidade.

As confidências entre o juiz Moro e um grupo de procuradores contrastam com o discurso oficial adotado pelos atores do sistema de Justiça. Enquanto publicamente exaltam a imparcialidade, isenção e independência da chamada Operação Lava Jato, a realidade agora descortinada revela que o magistrado atuou veladamente como líder do grupo de procuradores, dando orientações e fazendo críticas à atuação do Ministério Público Federal e da Polícia Federal, firmes no propósito comum de impedir a vitória eleitoral do PT e obter condenações penais baseadas em motivações políticas, partidárias e ideológicas.

É preciso que investigações atestem a higidez das mensagens divulgadas. Em todo caso, nesta análise inicial, assumimos os diálogos como reprodução fiel da realidade, pois até o momento não foram desmentidos pelos agentes públicos apontados como interlocutores. Tanto Moro quanto o Ministério Público Federal manifestaram-se criticamente em relação ao caráter criminoso da suposta atuação de hackers, mas em nenhum momento negaram o conteúdo divulgado.

De fato, embora a origem dos documentos esteja acobertada pelo sigilo constitucional da fonte jornalística, é possível que os próximos capítulos revelem sua obtenção mediante invasão de dispositivo informático. Mas essa é apenas uma das hipóteses, pois não se pode descartar a possibilidade de um dos destinatários das mensagens ou a própria empresa responsável pelo armazenamento dos arquivos terem colocado à disposição o conteúdo.

Portanto, seria precipitado apontar a prática de crime na obtenção dos diálogos antes do devido processo legal. E, mesmo que venha a ser confirmada a invasão virtual, é possível que a conduta de hackers esteja acobertada pela legítima defesa de terceiro – estariam agindo para interromper uma agressão injusta e atual contra réus condenados ilegalmente.

Seja como for, nem mesmo um eventual caráter criminoso da suposta invasão virtual seria capaz de invalidar juridicamente o conteúdo das mensagens para beneficiar réus condenados injustamente. Caberá às vítimas dessa possível invasão de dispositivo informático se socorrerem das medidas judiciais cabíveis, a fim de evitar que se lhes imponham sanções administrativas e criminais, em razão da potencial ilicitude das provas.

Não aderimos ao discurso punitivista de Deltan Dallagnol, que em 2016 tuitou que “entre o direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha o interesse público”, tampouco às chamadas 10 medidas contra a corrupção alinhavadas pelo Ministério Público Federal, que propõem a “ponderação dos direitos e interesses em jogo” na avaliação da ilicitude da prova. Caso se comprove que as mensagens foram obtidas mediante violação das normas constitucionais ou legais, não poderão ser utilizadas para condenar os agentes públicos.

Situação distinta é a utilização desse material pela defesa dos réus, que deverá ser admitida em qualquer hipótese. Em todos os cenários possíveis, as condenações injustas devem ser revistas e os processos penais de exceção que subjugaram cidadãos à condição de inimigos devem ser anulados tão logo se confirme a autenticidade das mensagens.

Claro está o desvirtuamento no uso de cargos e funções públicas no sistema de Justiça para fins político-partidários, especialmente na atuação dos procuradores para impedir entrevistas de Lula durante a campanha presidencial por temerem a vitória de Fernando Haddad.

Diante desse cenário, os diálogos revelam a suspeição do juiz Sergio Moro, claramente identificada ao menos nos casos de Lula e João Vaccari Neto. Embora se possam discutir as consequências disciplinares e penais que devem ser impostas ao magistrado, não há solução civilizada outra senão a anulação dos processos em razão da relação promíscua entre juiz e procuradores, caracterizando-se violação ao artigo 254 do Código de Processo Penal.

O autoritarismo líquido oculta-se em um jogo de aparências encenado pela mediação do conteúdo tirânico com as formas democráticas. Nesse contexto, o processo penal deixa de ser uma garantia do indivíduo contra o poder penal e passa a ser uma arma de guerra manipulada pelos setores hegemônicos que controlam a burocracia estatal. Essa estratégia bélica é justificada pela retórica eficientista do direito penal, assumindo-se o processo penal de exceção como a forma jurídica pela qual o truque ilusório é encenado no espetáculo midiático.

O conjunto de mensagens revela o caráter  dissimulado e fraudulento de quem dizia garantir a lei

O conjunto de mensagens revela o caráter dissimulado e fraudulento pelo qual a essência inquisitorial se oculta na forma que se declara acusatória e garantista. Formalmente, anuncia-se o processo penal como relação triangular: duas partes (acusação e defesa) e um julgador equidistante dos dois interesses contrapostos. Todavia, as práticas reais do poder penal desenvolvem-se mediante a confusão das funções de investigar, acusar e julgar, até com uma postura ativa do magistrado, revelando absoluta disparidade de poderes entre acusação e defesa.

Segundo noticiado pelo The Intercept Brasil, as reportagens são apenas o início de uma longa investigação jornalística. Devemos aguardar os próximos capítulos, mas é fundamental que as condutas do juiz Moro e dos procuradores envolvidos no caso sejam apuradas, mesmo porque as práticas inquisitoriais podem não ter cessado, bem como é urgente que se restabeleçam os direitos e garantias daqueles que têm sido tratados como inimigos pelo sistema de Justiça brasileiro.

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