Política
Amortecedor avariado
Ciro Nogueira, figura central na campanha de Bolsonaro, sofre com os escândalos na Educação e o “fogo amigo”


Às 9h54 de 16 de fevereiro, o pastor evangélico Gilmar Santos entrou no gabinete da Casa Civil da Presidência. O ministro-chefe do pedaço, Ciro Nogueira, estava com a agenda, ao menos a oficial, livre. Recebeu o visitante? Santos é fundador e presidente da Convenção Nacional de Igrejas e Ministros das Assembleias de Deus no Brasil, entidade que tem na diretoria Arilton Moura, outro religioso que visitou a Casa Civil naquela quarta-feira de fevereiro. Santos e Moura permaneceram ali pouco mais de uma hora. Trata-se, sabe-se desde março, de dois lobistas, cobradores de propina em troca de influência no Ministério da Educação, rolo que custou a cabeça de outro pastor, Milton Ribeiro, do comando da pasta há algumas semanas e gerou inquéritos na Polícia Federal e no Ministério Público, além de pressões por uma CPI no Senado.
A dupla de vendilhões tinha estado anteriormente na Casa Civil em 8 de dezembro de 2021. Duas vezes, aliás. Pela manhã, entre 10h35 e 10h49, período sem compromissos na agenda de Nogueira, e à tarde, das 14h24 às 15h04, horário em que o ministro recebia um deputado da Bancada da Bíblia, João Campos, do Republicanos de Goiás, estado onde está sediada a entidade de Santos. Naquela passagem por Brasília, Moura jantou com Ribeiro em um apartamento. Um dos comensais era o prefeito da cidade maranhense de Centro Novo. O alcaide Junior Garimpeiro é do PP, partido no qual Nogueira dá as cartas, embora licenciado. Fazia cinco dias que Garimpeiro deixara a cadeia com um habeas corpus, após dois meses de prisão preventiva por integrar, segundo a Polícia Federal, um esquema de devastação ilegal da Amazônia na busca de metais preciosos. O prefeito publicou uma foto do convescote em seu perfil na rede social Instagram em 9 de dezembro.
Todos os caminhos dos pastores-lobistas do MEC levam ao gabinete do chefe da Casa Civil
Uma reunião de Moura com Nogueira no Palácio do Planalto na tarde de 21 de setembro de 2021 também havia sido imortalizada em foto, e esta desapareceu da página da Casa Civil no Flickr, site que é uma espécie de depósito de fotografias. O sumiço ocorreu após a divulgação, em 14 de abril, de uma lista das entradas dos pastores-lobistas no Planalto desde 2019, início do governo Bolsonaro. A divulgação foi obra do GSI, o órgão de inteligência da Presidência. Estranho. Um dia antes, o jornal O Globo noticiara ter pedido ao órgão informações sobre as visitas dos vendilhões ao Planalto e, em particular, ao gabinete presidencial, e obtido resposta negativa. O GSI alegara que era segredo, por motivos de segurança de Bolsonaro. Que riscos o capitão correria, o ministro Augusto Heleno, general da reserva à frente do órgão, não explicou.
A repentina divulgação cheira a fogo-amigo contra Nogueira por parte dos generais-ministros do entorno de Bolsonaro. O próprio chefe da Casa Civil desconfia da vendeta e manda recado cifrado. Ao assumir o cargo, em agosto de 2021, dizia que seria um “amortecedor” presidencial, alguém que absorveria “choques” e contribuiria para “diminuir as tensões”. Um dia após o GSI expor o entra e sai dos pastores-lobistas em sua repartição, Nogueira tuitou que amortecedores “impedem que os impactos sejam transferidos diretamente para a carroceria do veículo, consequentemente, o rodar se torna muito mais macio, evitando que os ocupantes do veículo sintam todas essas irregularidades”.
Teologia da Prosperidade. O ministro em reunião com o pastor Moura, que prometia o milagre da multiplicação de verbas no MEC em troca de um “dízimo” – Imagem: Redes sociais
Não é difícil entender por que o ministro estaria na mira de fogo-amigo, dados o poder da Casa Civil e seu espaço na futura campanha de Bolsonaro. E como esse empresário de 53 anos e 23 milhões de reais em bens, incluído aí um jatinho de 2,8 milhões, tem telhado de vidro, atingi-lo também não é difícil.
Nogueira é de Pedro II, cidade de 38 mil habitantes conhecida como a “Suíça do Piauí”, da qual o avô paterno foi prefeito. De 1995 a 2010, foi deputado federal, em 2011 tornou-se senador, apoiou o governo Dilma Rousseff, depois o de Michel Temer (às vésperas do impeachment, negociava uma coisa de dia com a petista e outra à noite com o emedebista) e desde 2019 aderiu a Bolsonaro, a quem em 2017 chamava de “fascista”. Hoje diz que era uma opinião sobre o “deputado” Bolsonaro, o presidente seria melhor. Aliás, melhor como candidato em 2022 do que em 2018, prega.
O ministro aposta que entre o fim de maio e o começo de junho, o presidente passará Lula nas pesquisas, o que influenciará as convenções partidárias que logo em seguida definirão a posição das siglas na eleição. Nogueira acaba de tentar atrair o deputado Paulinho da Força, líder do Solidariedade, para a campanha bolsonarista, depois de o sindicalista ser vaiado em um evento na CUT com Lula. Mandou-lhe um áudio de WhatsApp: “Ô, Paulinho, não é muito melhor tratar comigo do que com porra de Gleisi?”. Na terça-feira 19, Paulinho esteve com Gleisi Hoffmann, presidente do PT, e Lula e selou o apoio ao ex-presidente.
A investigações passadas contra Nogueira, juntam-se o tráfico de influência no MEC e a licitação suspensa de ônibus escolares
Segundo Nogueira, o governo tem um defeito grave de não saber comunicar o que faz. Diagnóstico apresentado em uma reunião em 28 de janeiro da qual participaram o presidente do PL de Bolsonaro, Valdemar Costa Neto, e outros chefes partidários para esboçar a campanha do capitão. A análise baseou-se em uma pesquisa encomendada pelo PL. Além de a população não saber o que o governo faz, a postura federal na pandemia, sobretudo em relação a vacinas, é outro pepino. Ainda maiores são a inflação (demais) e o emprego (de menos), fatores que têm garantido a força da pré-candidatura de Lula. A economia, crê Nogueira, é o maior “desafio” do governo e será o tema polarizador da eleição. Não surpreende que, no fim de 2021, o pepista tenha tentado derrubar o ministro da Economia, Paulo Guedes, e até sondado um substituto para a vaga, o economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro. Nem que tenha ganhado poderes, via decreto presidencial, para decidir juntamente com Guedes as despesas orçamentárias.
Quanto a Lula, a pesquisa bolsonarista identificou uma vulnerabilidade a ser explorada: o entorno do petista. Figuras como Dilma e José Dirceu serão ressuscitadas pelos governistas ao longo do ano. Nogueira apoiou as gestões do PT, apesar desse entorno, e agora diz não ter sido por identificação ideológica. Seu apoio e do PP a Bolsonaro, sim, seria com beijo na boca, dada a afinidade de visão de mundo. A redução da maioridade penal é um tema que, se depender de Nogueira, estará no centro da campanha do presidente. Uma disputa que não fugirá do duelo “Lula vs. Bolsonaro”, na visão do ministro, em razão da fraqueza da tal terceira via. Por este motivo, teoriza, o pleito tende a ter no primeiro turno uma cara de segundo.
Investigação. Nogueira é acusado de receber propina do empresário Joesley Batista, dono da J&F – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag.Senado
É a mesma visão do líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues, da Rede do Amapá, um dos colaboradores da pré-campanha lulista e proponente de uma CPI do MEC. Rodrigues havia conseguido as 27 assinaturas necessárias para entrar com o pedido de CPI, mas uma operação abafa comandada por Nogueira na Semana Santa melou tudo. O chefe da Casa Civil tem interesse próprio no assunto, não é apenas para proteger o presidente. Por exemplo: o que os pastores-lobistas, personagens na origem da proposta de CPI, foram tanto fazer em seu gabinete?
Outro combustível a alimentar a ideia de uma investigação parlamentar são as despesas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. O FNDE realizou no início de abril uma licitação para a compra de ônibus escolares. O projeto original era gastar 2 bilhões de reais, mas notícias sobre superfaturamento levaram à redução do valor para 1,5 bilhão. Mesmo assim o negócio foi embargado pelo Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo. O presidente do fundo é Marcelo Lopes da Ponte. Este era chefe de gabinete de Nogueira no Senado, quando foi nomeado para o cargo, em maio de 2020. Ou seja, Ponte é Nogueira. O que acerta um, acerta o outro. Eis o perigo para o ministro por trás de um inquérito da Procuradoria Geral da República sobre a atividade dos pastores-lobistas na pasta da Educação e de um da Polícia Federal sobre o mesmo tema, mas que também mira a liberação de verbas do FNDE.
Esses fantasmas no ar contra Nogueira juntam-se a ao menos duas investigações em curso contra ele no Supremo Tribunal Federal. Uma delas, o inquérito 4736, instalado em 2018, para averiguar se Nogueira, como presidente do PP, recebeu dinheiro da J&F, do empresário Joesley Batista, para apoiar a reeleição de Dilma em 2014. Em 8 de abril, a PF mandou um relatório conclusivo ao Supremo no qual afirma que Nogueira cometeu os crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. A juíza do caso, Rosa Weber, remeteu os autos ao procurador-geral da República, Augusto Aras, único que pode acusar na Justiça um detentor de foro especial. Em fevereiro de 2020, Aras denunciou Nogueira ao tribunal pelos mesmos crimes de corrupção e lavagem, mas em outro inquérito, o 4407, de 2017, no qual o chefe do PP era investigado por receber 7,3 milhões de reais em vantagens indevidas da Odebrecht. O juiz do caso, Edson Fachin, ainda não levou o processo a um julgamento que decidirá se Nogueira vira réu ou é absolvido. Em dezembro, o ministro foi inocentado na Corte por outra acusação (obstrução à Justiça). Foi graças ao voto de Kassio Nunes Marques, indicado de Bolsonaro e apadrinhado de Nogueira. Marques também é do Piauí.
Nogueira avança sobre os redutos militares no governo e atiça a raiva dos generais aboletados em cargos públicos
Tomar o poder no Piauí não sai da cabeça de Nogueira, obsessão paroquial que contribuiu para levá-lo à Casa Civil. No mesmo dia em que tomou posse como ministro, em 4 de agosto de 2021, a equipe econômica revogou um aval para o Banco do Brasil emprestar 800 milhões de reais ao Piauí. A autorização tinha sido dada em 14 de julho, vésperas do recesso parlamentar de meio de ano. Era uma verba que o estado usaria em saúde, segurança e infraestrutura, com presumível apelo eleitoral. Nogueira compunha a tropa de choque governista na CPI da Covid e foi para o México assim que começou o recesso. Consta que estava enfurecido com o governo. Logo surgiram notícias de que o presidente iria recrutá-lo para o primeiro escalão. Seria uma forma de manter por perto um aliado importante. No dia da posse de Nogueira, recorde-se, o governo recuou no empréstimo ao Piauí. Em vão, aliás. O estado foi ao Supremo e conseguiu uma liminar para receber os recursos.
O empréstimo havia sido negociado sem alarde pelo então secretário de Fazenda do estado, Rafael Fonteles. Este deixou o posto no fim de março para ser o candidato do PT à sucessão do governador Wellington Dias, outro petista. É esse grupo que Nogueira quer bater nas urnas neste ano. Em 2018, estavam todos juntos. A chapa vitoriosa tinha Dias para governador, e Nogueira e Marcelo Castro, do MDB, para o Senado, todos eleitos. Desde 2002, só ganha no Piauí (estado com 3,2 milhões de habitantes e 2,4 milhões de eleitores, 1,6% do total nacional em ambos os casos) quem concorre na raia lulista. Nogueira disputou a eleição por esse campo, depois rompeu e abraçou Bolsonaro. Castro hoje comanda a Comissão de Educação do Senado, que, na falta de uma CPI, tem ajudado a ferver o caldo dos pastores-lobistas.
Em fevereiro, Nogueira lançou ao governo do Piauí o candidato de seu grupo, Silvio Mendes, um ex-prefeito da capital, Teresina, que trocou o PSDB pelo União Brasil, sigla que mesclou PSL e DEM. O vice será a ex-mulher de Nogueira, a deputada federal Iracema Portela, do PP. No evento, não houve menção a Bolsonaro. Claro. A avaliação negativa do governo federal, que é alta, supera no Nordeste a média geral. Além disso, foi no Piauí que o capitão sofreu a pior derrota na campanha de quatro anos atrás, 77% a 23% contra o petista Fernando Haddad. Se não falou do presidente, o ministro atacou Marcelo Castro. Chamou-o de “leviano” e “traidor”. Na véspera, o emedebista havia acusado o colega de barrar a liberação de verbas federais para o Piauí incluídas no Orçamento pelo próprio Castro. Segundo este, Nogueira “está com um ódio, um rancor inexplicável”.
Heleno está sempre em guerra – Imagem: Marcos Corrêa/PR
O aparente fogo-amigo contra o ministro é, ao contrário, explicável. A Casa Civil é um dos cargos mais poderosos em Brasília, por ali passam os principais planos do governo. Para dar o posto a Nogueira, Bolsonaro apeou do cargo um fardado, o general da reserva Luiz Eduardo Batista Ramos, hoje secretário-geral da Presidência. Uma primeira tentativa recente de mudar o comando da Petrobras também alijaria um general, Joaquim Silva e Luna, e tinha por trás Nogueira e o comandante da Câmara, Arthur Lira, outro do PP. A dupla queria à frente da estatal um lobista, Adriano Pires, e um empresário com experiência no setor de gás, Rodolfo Landim. Este é réu desde novembro, acusado de gestão fraudulenta de verbas de fundos de pensão estatais. Antes de denunciá-lo, o Ministério Público soube que a Suíça havia bloqueado uma conta do empresário Carlos Suarez, o S da OAS, por suspeita de ela servir para pagar propina e lavar de dinheiro. E que essa conta fora abastecida por uma de Landim. Nogueira é ligado a Suarez, patrocinou uma emenda “oral” na votação da privatização da Eletrobras no Senado em 2021, feita sob medida para os interesses do empresário.
Com tantas relações perigosas, o “amortecedor” está avariado. Quebrará de vez? •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1205 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Amortecedor avariado”
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