Política
Amigo oculto
Aliados até ontem, candidatos a governador escondem Jair Bolsonaro na campanha por temer o contágio da rejeição


As cinco imagens de candidatos a governador que ilustram esta reportagem têm uma coisa em comum: Jair Bolsonaro não aparece em nenhuma. Objeto de rejeição superior a 50%, segundo diversas pesquisas, o ex-capitão prova de um conhecido veneno nesta reta final de campanha. Aliados que vislumbram a possibilidade concreta de vitória nas urnas fogem de Bolsonaro como o diabo foge da cruz, apavorados com a possibilidade de se contaminarem com o repúdio, sem paralelo na história republicana, a um presidente que tenta a reeleição. Para se ter uma ideia do fardo em que se transformou Bolsonaro, basta comparar sua rejeição com as de Fernando Henrique Cardoso (17%), Lula (18%) e Dilma Rousseff (24%), quando disputaram um segundo mandato.
O afastamento de governadores que surfaram na onda bolsonarista em 2018 e agora tentam se reeleger teve início no período agudo da pandemia, com Ronaldo Caiado em Goiás. Depois, estendeu-se a Romeu Zema em Minas Gerais e a Ratinho Jr. no Paraná. Na Bahia, onde o ex-prefeito de Salvador e líder nas pesquisas ACM Neto dizia-se candidato natural do bolsonarismo, o capitão foi deixado para trás ao longo do percurso. Também em primeiro nas pesquisas, Cláudio Castro esconde Bolsonaro em sua campanha no Rio de Janeiro, mesmo sendo seu correligionário. Na outra ponta da corda, candidatos com a imagem associada ao presidente aparecem com poucas chances de vitória em estados fundamentais, casos de Tarcísio de Freitas em São Paulo, Onyx Lorenzoni no Rio Grande do Sul, Carlos Viana em Minas e João Roma na Bahia.
“É a lógica eleitoral mais simples. Para ganhar uma eleição majoritária, é preciso ter o apoio de mais da metade do eleitorado. Como o Bolsonaro tem apoio majoritário somente em raríssimas situações, quem tem chance na eleição estadual foge dele com medo de que sua rejeição atrapalhe. Isso não é surpreendente, pois todo candidato, em princípio, quer ganhar”, observa Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi. Hoje, associar-se a Bolsonaro na grande maioria dos estados do Brasil “é um caminho para a derrota”, avalia o sociólogo. “Por isso o escondem. Neste momento da campanha, isso é natural, a menos que o candidato não tenha uma expectativa grande de vitória.”
Para o cientista político Cláudio Couto, da FGV, a associação a um presidente com um nível de rejeição como o de Bolsonaro pode trazer prejuízos aos candidatos a governador: “Existe uma dinâmica na disputa estadual que independe do que ocorre na disputa nacional, ela tem uma lógica própria”, diz. A percepção da necessidade política de deixar Bolsonaro de lado, acrescenta, foi fortalecida na medida em que as avaliações dos governadores junto à população foram se distanciando das do ex-capitão durante a pandemia: “Todos os candidatos com tração própria – o caso do Zema é o mais significativo, mas podemos falar também do Caiado – tiveram suas gestões bem avaliadas. Em todos esses casos, é melhor se valerem de suas próprias credenciais. Não criam rejeições nem com os eleitores de Lula nem com os de Bolsonaro”.
O ex-capitão é reprovado por mais de 50% do eleitorado, atestam diversas pesquisas
Em Minas, a ordem na campanha de Zema é fazer de conta que a proximidade com Bolsonaro, tão apregoada em 2018, nunca existiu. Naquela ocasião, o tsunami bolsonarista arrastou o candidato do Novo da última para a primeira colocação nas semanas que antecederam as eleições, mas agora a situação é diferente. Segundo o Ipec, o governador, com 47% das intenções de voto, está a um passo da reeleição. Seu principal adversário, Alexandre Kalil, do PSD, aparece com 31%. Lançado por Bolsonaro após ruírem seus esforços para convencer Zema a repetir a dobradinha, Carlos Viana, do PL, figura com míseros 2%.
No Rio, Castro, do PL, ignora o ex-capitão em sua propaganda eleitoral no rádio e na tevê e repete por onde passa que “a eleição estadual não tem nada a ver com a disputa nacional”. Jamais visto ao lado de Bolsonaro, exceção feita às aparições conjuntas no 7 de Setembro em Copacabana e no jogo do Flamengo realizado no mesmo dia no Maracanã, o governador lidera a pesquisa Ipec divulgada em 5 de setembro, com 37% das intenções de voto, seguido por Marcelo Freixo, do PSB, com 22%, e Rodrigo Neves, do PDT, com 7%. O abandono é acentuado no interior, onde está em pleno andamento o fenômeno batizado como “CastroLula”, que une candidatos a deputado e prefeitos que declaram voto em Lula e no governador.
“Vale lembrar que Castro sempre teve uma relação amistosa com André Ceciliano, o candidato do PT ao Senado, e também com um dos principais dirigentes petistas do Rio, Washington Quaquá. Ele não quer nacionalizar a campanha porque, ao contrário de 2018, não há uma onda antilulista ou antipetista no estado”, observa o sociólogo Luiz Eduardo Motta, da UFRJ. Ele lembra que “Bolsonaro deu um banho em 2018”, mas que isso não acontece agora em um quadro de equilíbrio entre ele e Lula: “Dentro do grande arco de alianças que Castro tem, sobretudo no interior, existe risco em apoiar o candidato A ou B. Seu objetivo principal é a própria reeleição e ele tem aliança tanto com prefeitos fechados com Bolsonaro quanto com aqueles que apoiam Lula”.
Algo semelhante acontece em Minas, onde o movimento “LuZema” reúne prefeitos e candidatos a deputado que apoiam Lula e Zema. O estado havia protagonizado o “Lulécio”, que uniu os votos em Lula e Aécio Neves em 2002, e o “Dilmasia”, a repetir a dose com Dilma e Antonio Anastasia em 2006. Nestas eleições, movimentos semelhantes não influenciarão de forma significativa o resultado, pondera Coimbra. “É pouco provável que um candidato a governador consiga levar votos para um presidenciável como Lula ou até mesmo como Bolsonaro. Ambos já têm um nível muito alto de intenções de voto. Acontece o inverso: o prestígio do Lula os ajuda. Tanto é que a estratégia eleitoral ‘Luzema’ partiu da campanha de Zema, e não da de Lula.”
Muy amigos. ACM Neto, Ronaldo Caiado e Ratinho Jr. também viraram as costas para o antigo parceiro – Imagem: Redes sociais
Em Goiás, Ronaldo Caiado, do União Brasil, lidera a mais recente pesquisa, realizada pela Diagnóstico, com 45% das intenções de voto. Colado com Bolsonaro após o rompimento deste com o governador, o candidato do PL, Major Vitor Hugo, patina com 5%, mas outro candidato que se intitula bolsonarista, Gustavo Mendanha, do Patriota, aparece em segundo lugar com 27%. Na Bahia, ACM Neto tem 56% das intenções de voto e lidera seguido por Jerônimo Rodrigues, do PT, com 13%. O candidato bolsonarista, João Roma, do PL, amarga o terceiro lugar com somente 7%.
O desempenho aquém do esperado repete-se com alguns candidatos que abraçaram Bolsonaro, mas ainda podem ir ao segundo turno, caso de Onyx Lorenzoni, do PL, no Rio Grande do Sul, em segundo lugar na pesquisa Ipec com 24%, atrás de Eduardo Leite, do PSDB, que tem 38%. Outro exemplo é Tarcísio de Freitas, do Republicanos, em São Paulo, segundo colocado com 21%, atrás do petista Fernando Haddad, com 36%, e ainda ameaçado pelo atual governador Rodrigo Garcia, do PSDB, a figurar com 16% na mais recente pesquisa Ipespe.
Couto diz que colar com Bolsonaro pode ser até bom para candidatos que não têm muito lastro eleitoral e tentam decolar junto aos setores que hoje apoiam o ex-capitão: “O que seria o Tarcísio se ele não fosse candidato do Bolsonaro? Ele nunca viveu em São Paulo, não tem qualquer identificação, mas tem o trunfo do apoio do presidente sabendo-se que, no estado, há um contingente significativo de simpatizantes do governo federal e de Bolsonaro em particular”, diz. Em outros casos, avalia, o bolsonarismo lançou candidaturas a governador sem chances de vitória por falta de opção mesmo: “Na Bahia, Roma tinha lá suas ambições próprias, mas, ao que tudo indica, vai naufragar. Em Minas, o lançamento de Viana serviu somente para que Bolsonaro tivesse um palanque, então colocou ali um criador de dificuldades para o Zema”.
Hostilizar Lula no Nordeste é cavar a própria derrota, observa Coimbra, do Vox Populi
Ironicamente, até mesmo dois baluartes do atual governo incentivam o abandono a Bolsonaro nas disputas estaduais. Em Alagoas, o comando da campanha do candidato ao governo apoiado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, decidiu nesta reta final que esconder o ex-capitão é a única forma de chegar ao segundo turno. Com 16% na mais recente pesquisa, Rodrigo Cunha, do UB, está em situação de empate técnico com Rui Palmeira, do PSD, que tem 17%, e Fernando Collor, do PTB, com 15%. Paulo Dantas, do MDB, lidera com 23% em uma das disputas estaduais mais acirradas este ano. No Piauí, a campanha de Silvio Mendes, do UB, candidato apoiado pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, chegou a dar entrada em uma ação no Tribunal Regional Eleitoral para impedir que a campanha de Bolsonaro produzisse material de propaganda conjunto. Mendes lidera a mais recente pesquisa com 43%, seguido por Rafael Fonteles, do PT, com 29%. Lançado por Bolsonaro, Coronel Diogo Melo, do PL, surge em terceiro com apenas 3% das intenções de voto.
O detalhe é que uma prima de Lira é vice na chapa de Cunha e a ex-mulher de Nogueira é vice na chapa de Mendes. O abandono a Bolsonaro pelos dois aliados é explícito. “Ser candidato bolsonarista no Nordeste não é fácil. Com o caminhão de dinheiro do orçamento secreto eles podem eventualmente ter sucesso nas disputas proporcionais, mas para governador é bem mais complicado. Lira e Nogueira não querem sofrer o desgaste de ser bolsonaristas em regiões claramente lulistas. É basicamente disso que se trata”, afirma Couto.
Coimbra segue o raciocínio: “Quem tem um mínimo de capacidade de avaliação do que está acontecendo no seu estado – e tanto o Lira quanto o Nogueira têm – está vendo que Lula tem uma enorme intenção de voto. Não é surpreendente que ambos vejam a eleição de Bolsonaro como pouco provável”. Para o sociólogo, na maioria dos estados do Nordeste ser o candidato do Lula é “quase uma garantia” de vitória: “Hostilizar o Lula no Piauí chega a ser uma irracionalidade, considerando que ele tem 70% de intenções de voto. Você acha que Nogueira vai dar murro em ponta de faca?” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Amigo oculto “
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