Política
Agroecologia mecanizada
O MST estreita parceria com a China para levar equipamentos agrícolas aos assentamentos da reforma agrária


Dois meses antes de Lula desembarcar na China para uma visita oficial de quatro dias, deputados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra rodaram o país asiático. Em Xangai, eles se reuniram com a ex-presidente Dilma Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, para discutir o papel do chamado “Banco dos BRICS” no financiamento de projetos de modernização da agricultura familiar. De lá, a comitiva seguiu para a província de Guizhou, onde conheceu iniciativas de revitalização rural que impulsionaram significativamente a produtividade local. Por fim, os parlamentares se encontraram com representantes do Partido Comunista Chinês, em Pequim. Não se trata de uma aproximação recente. Há anos, o MST celebra acordos de cooperação com a China para a aquisição de equipamentos agrícolas e planeja, em breve, construir uma fábrica de fertilizantes com tecnologia fornecida pelos parceiros orientais.
De forma silenciosa, tratores, semeadeiras, colheitadeiras e outros equipamentos fabricados na China estão ocupando a paisagem de pequenas propriedades rurais no Brasil, especialmente nos assentamentos da reforma agrária. Somente em 2024, os estados do Ceará, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte receberam 29 máquinas chinesas. Nesta primeira fase, há a preocupação de adaptar o uso dessas tecnologias às condições específicas do Semiárido nordestino, com o objetivo de ampliar a produtividade local e reduzir a dependência dos grandes fabricantes internacionais.
Além dos ganhos em produção, o projeto sinaliza uma mudança importante: a ruptura com modelos hegemônicos de mecanização agrícola voltados exclusivamente ao agronegócio e aos grandes produtores. A nova proposta busca avançar na direção de soluções tecnológicas mais acessíveis, mais baratas e adaptadas à realidade dos pequenos agricultores, alinhadas aos princípios da agroecologia. “Ainda estamos em testes, em uma etapa de aprimoramento técnico. Os equipamentos foram desenvolvidos para a realidade do sistema agrário chinês, então é natural que precisem de ajustes para se adequar às nossas condições. Mas os resultados são muito promissores”, avalia Maria Gomes, integrante da coordenação de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST.
Nos assentamentos, os impactos já começam a aparecer. No Maranhão, dois deles – Cristina Alves, em Itapecuru-Mirim, e Diamante Negro/Jutaí, em Igarapé do Meio – passaram a utilizar máquinas chinesas na colheita do arroz. Antes restritas ao trabalho manual, as famílias levavam até 25 dias para colher um hectare. Com a colheitadeira, essa mesma tarefa pode ser concluída em apenas um dia e meio.
E não é só a colheita do arroz que teve seu processo acelerado. No plantio de milho e feijão, por exemplo, preparar um hectare levava, em média, quatro dias. Hoje, com o auxílio dos equipamentos, o serviço pode ser feito em apenas três horas. Já a adubação de dois hectares, que antes exigia uma semana de trabalho coletivo – com dez pessoas e dois carrinhos de mão – agora pode ser concluída em cinco horas.
Os indicadores de produtividade nessas áreas já mecanizadas ainda estão sendo apurados. Há, porém, a constatação de uma nítida redução no tempo de colheita, o que abre a possibilidade de ampliar as áreas de plantio nas próximas safras. “Isso traz mudanças concretas na vida das famílias”, afirma Gomes. “Sair da colheita manual, feita com facas e foices, para um processo mecanizado representa uma melhora significativa nas condições de trabalho. É um avanço muito além do que eles imaginavam.”
O movimento tem planos de construir ainda uma fábrica de fertilizantes com tecnologia chinesa
A dirigente do MST explica que outros 50 equipamentos agrícolas estão armazenados no campus da Universidade de Brasília (UnB). Assim que for concluído o processo de montagem das máquinas, elas serão destinadas a assentamentos no Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás e no Distrito Federal. No horizonte de médio e longo prazo, a proposta é ainda mais ambiciosa: estimular a produção desses equipamentos em território brasileiro, com transferência de tecnologia e geração de empregos. O acordo é fruto de uma parceria que reúne indústrias chinesas, a UnB, a Universidade Agrícola da China, o Consórcio Nordeste de governadores, a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte e o próprio MST.
O projeto teve início em 2019, quando os sem-terra participaram da fundação da Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP), entidade que reúne movimentos populares, instituições de pesquisa e governos de nações em desenvolvimento. “A ideia é que os próprios países construam soluções entre si, sem depender das potências industriais do Norte”, explica Luiz Zarref, coordenador da AICP para a América Latina.
Para João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST, a agricultura no Brasil está diante de uma encruzilhada. De um lado, o modelo do agronegócio, baseado em monoculturas voltadas para a exportação, com uso intensivo de agrotóxicos, sementes transgênicas e maquinário de alto desempenho – um modelo que gera cada vez menos empregos no campo. Na outra direção está a agricultura familiar, praticada por 5 milhões de camponeses, incluindo os assentados da reforma agrária. “Esse modelo aposta na diversidade”, diz ele. São mais de 160 tipos diferentes de alimentos produzidos por essas famílias, que abastecem o mercado interno e garantem segurança alimentar à população brasileira. O principal obstáculo a ser vencido nessas áreas é a mecanização. Hoje, apenas 18% das unidades produtivas familiares utilizam equipamentos agrícolas. No Nordeste, esse índice é de apenas 3%.
Foi para superar essa deficiência que o MST buscou firmar acordos de cooperação com os chineses. “Eles conseguiram desenvolver uma indústria de máquinas acessíveis para a agricultura familiar, com equipamentos pequenos, de baixo custo e eficientes”, explica. Nos últimos 20 anos, acrescenta Stedile, foram instaladas mais de 8 mil fábricas de maquinários agrícolas voltadas a propriedades com até 1 hectare. Além disso, a China destaca-se na produção de fertilizantes a partir de resíduos orgânicos, como restos de alimentos, sobras de feiras e podas de árvores. Em apenas sete dias, esse material é convertido em adubo de qualidade. “Trazer esse tipo de tecnologia para o Brasil pode ser uma revolução.”
A proposta prevê ainda o uso de energia solar concentrada para substituir a lenha e os combustíveis fósseis na agroindústria cooperativa. Já está projetada a construção de cinco fábricas em diferentes regiões, com prioridade para o Nordeste. “Será uma espécie de Parceria Público-Privada, mas de caráter popular, por envolver governos, cooperativas, universidades e movimentos sociais”, diz Stedile. “Com isso, poderemos dar escala à produção agroecológica em todas as culturas.” •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agroecologia mecanizada’
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