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Agroecologia mecanizada

O MST estreita parceria com a China para levar equipamentos agrícolas aos assentamentos da reforma agrária

Agroecologia mecanizada
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“As máquinas são pequenas, de baixo custo e eficientes”, celebra Stedile – Imagem: Eduardo Moura
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Dois meses antes de Lula desembarcar na China para uma visita oficial de quatro dias, deputados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra rodaram o país asiático. Em Xangai, eles se reuniram com a ex-presidente Dilma ­Rousseff, atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, para discutir o papel do chamado “Banco dos BRICS” no financiamento de projetos de modernização da agricultura familiar. De lá, a comitiva seguiu para a província de Guizhou, onde conheceu iniciativas de revitalização rural que impulsionaram significativamente a produtividade local. Por fim, os parlamentares se encontraram com representantes do Partido Comunista Chinês, em Pequim. Não se trata de uma aproximação recente. Há anos, o MST celebra acordos de cooperação com a China para a aquisição de equipamentos agrícolas e planeja, em breve, construir uma fábrica de fertilizantes com tecnologia fornecida pelos parceiros orientais.

De forma silenciosa, tratores, semea­deiras, colheitadeiras e outros equipamentos fabricados na China estão ocupando a paisagem de pequenas propriedades rurais no Brasil, especialmente nos assentamentos da reforma agrária. Somente em 2024, os estados do ­Ceará, Maranhão, Paraíba e Rio Grande do Norte receberam 29 máquinas chinesas. Nesta primeira fase, há a preocupação de adaptar o uso dessas tecnologias às condições específicas do Semiárido nordestino, com o objetivo de ampliar a produtividade local e reduzir a dependência dos grandes fabricantes internacionais.

Além dos ganhos em produção, o projeto sinaliza uma mudança importante: a ruptura com modelos hegemônicos de mecanização agrícola voltados exclusivamente ao agronegócio e aos grandes produtores. A nova proposta busca avançar na direção de soluções tecnológicas mais acessíveis, mais baratas e adaptadas à realidade dos pequenos agricultores, alinhadas aos princípios da agroecologia. “Ainda estamos em testes, em uma etapa de aprimoramento técnico. Os equipamentos foram desenvolvidos para a realidade do sistema agrário chinês, então é natural que precisem de ajustes para se adequar às nossas condições. Mas os resultados são muito promissores”, avalia Maria Gomes, integrante da coordenação de Produção, Cooperação e Meio Ambiente do MST.

Nos assentamentos, os impactos já começam a aparecer. No Maranhão, dois deles – Cristina Alves, em Itapecuru-Mirim, e Diamante Negro/Jutaí, em Igarapé do Meio – passaram a utilizar máquinas chinesas na colheita do arroz. Antes restritas ao trabalho manual, as famílias levavam até 25 dias para colher um hectare. Com a colheitadeira, essa mesma tarefa pode ser concluída em apenas um dia e meio.

E não é só a colheita do arroz que teve seu processo acelerado. No plantio de milho e feijão, por exemplo, preparar um hectare levava, em média, quatro dias. Hoje, com o auxílio dos equipamentos, o serviço pode ser feito em apenas três horas. Já a adubação de dois hectares, que antes exigia uma semana de trabalho coletivo – com dez pessoas e dois carrinhos de mão – agora pode ser concluída em cinco horas.

Os indicadores de produtividade nessas áreas já mecanizadas ainda estão sendo apurados. Há, porém, a constatação de uma nítida redução no tempo de colheita, o que abre a possibilidade de ampliar as áreas de plantio nas próximas safras. “Isso traz mudanças concretas na vida das famílias”, afirma Gomes. “Sair da colheita manual, feita com facas e foices, para um processo mecanizado representa uma melhora significativa nas condições de trabalho. É um avanço muito além do que eles imaginavam.”

O movimento tem planos de construir ainda uma fábrica de fertilizantes com tecnologia chinesa

A dirigente do MST explica que outros 50 equipamentos agrícolas estão armazenados no campus da Universidade de Brasília (UnB). Assim que for concluído o processo de montagem das máquinas, elas serão destinadas a assentamentos no Rio Grande do Sul, São Paulo, Goiás e no Distrito Federal. No horizonte de médio e longo prazo, a proposta é ainda mais ambiciosa: estimular a produção desses equipamentos em território brasileiro, com transferência de tecnologia e geração de empregos. O acordo é fruto de uma parceria que reúne indústrias chinesas, a UnB, a Universidade Agrícola da China, o Consórcio Nordeste de governadores, a Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Rio Grande do Norte e o próprio MST.

O projeto teve início em 2019, quando os sem-terra participaram da fundação da Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP), entidade que reúne movimentos populares, instituições de pesquisa e governos de nações em desenvolvimento. “A ideia é que os próprios paí­ses construam soluções entre si, sem depender das potências industriais do Norte”, explica Luiz Zarref, coordenador da AICP para a América Latina.

Para João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST, a agricultura no Brasil está diante de uma encruzilhada. De um lado, o modelo do agronegócio, baseado em monoculturas voltadas para a exportação, com uso intensivo de agrotóxicos, sementes transgênicas e maquinário de alto desempenho – um modelo que gera cada vez menos empregos no campo. Na outra direção está a agricultura familiar, praticada por 5 milhões de camponeses, incluindo os assentados da reforma agrária. “Esse modelo aposta na diversidade”, diz ele. São mais de 160 tipos diferentes de alimentos produzidos por essas famílias, que abastecem o mercado interno e garantem segurança alimentar à população brasileira. O principal obstáculo a ser vencido nessas áreas é a mecanização. Hoje, apenas 18% das unidades produtivas familiares utilizam equipamentos agrícolas. No Nordeste, esse índice é de apenas 3%.

Foi para superar essa deficiência que o MST buscou firmar acordos de cooperação com os chineses. “Eles conseguiram desenvolver uma indústria de máquinas acessíveis para a agricultura familiar, com equipamentos pequenos, de baixo custo e eficientes”, explica. Nos últimos 20 anos, acrescenta Stedile, foram instaladas mais de 8 mil fábricas de maquinários agrícolas voltadas a propriedades com até 1 hectare. Além disso, a China destaca-se na produção de fertilizantes a partir de resíduos orgânicos, como restos de alimentos, sobras de feiras e podas de árvores. Em apenas sete dias, esse material é convertido em adubo de qualidade. “Trazer esse tipo de tecnologia para o Brasil pode ser uma revolução.”

A proposta prevê ainda o uso de energia solar concentrada para substituir a lenha e os combustíveis fósseis na agroindústria cooperativa. Já está projetada a construção de cinco fábricas em diferentes re­giões, com prioridade para o Nordeste. “Será uma espécie de Parceria Público-Privada, mas de caráter popular, por envolver governos, cooperativas, universidades e movimentos sociais”, diz Stedile. “Com isso, poderemos dar escala à produção agroecológica em todas as culturas.” •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Agroecologia mecanizada’

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