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Afronta ambiental

O governo se omite e a Câmara aprova projeto que desfigura o processo de licenciamento no Brasil

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Perto da COP30, Marina Silva volta a ser apunhalada – Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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Um crime histórico. É assim que ambientalistas definem a aprovação definitiva do Projeto de Lei 2.159/2021 pela Câmara dos Deputados, na madrugada da quinta-feira 17. Para eles, a medida colapsa o alicerce de todas as políticas ambientais construídas no Brasil desde o fim da ditadura. Apesar dos inúmeros apelos da comunidade científica nas semanas anteriores, o chamado PL do Licenciamento – também conhecido como “PL da Devastação” – foi aprovado por 231 deputados, trazendo uma série de retrocessos. Entre eles, destaca-se a criação da Licença Ambiental Especial (LAE), que simplifica o processo de concessão de licenças ambientais para “empreendimentos estratégicos de grande porte” em uma única etapa. A nova lei institui ainda o polêmico “processo de autolicenciamento”, um exemplo clássico de entregar a chave do galinheiro à raposa.

A votação foi concluída à 1h53 e teve condução implacável do presidente da Câmara, Hugo Motta, que barrou as tentativas de obstrução feitas por alguns partidos da base governista. Ao agir para chancelar as mudanças que vieram do Senado em maio e tornaram o projeto ainda pior, o deputado do Republicanos aliou-se ao senador Davi Alcolumbre na linha de frente de uma estratégia que favorece iniciativas como a exploração de petróleo na Margem Equatorial, um movimento com potencial de cindir o governo e mais um desafio imposto pelo Legislativo ao Executivo. A propósito, quem ainda acredita na promessa de que o chamado “ouro negro” vai financiar a transição energética do País ganhou mais um motivo para desconfiar. Um dia antes da votação do PL do Licenciamento Ambiental, a Câmara aprovou outro Projeto de Lei que autoriza o uso de 30 bilhões de reais do Fundo Social do Pré-Sal para quitar dívidas de produtores rurais afetados por calamidades. Agora, a bola está com Alcolumbre no Senado.

Lula poderá exercer ou não nos próximos 15 dias o seu poder de veto. Apesar do apoio mais ou menos discreto vindo de pastas como Minas e Energia, Agricultura e Casa Civil, a aprovação do PL do Licenciamento soa também como uma afronta à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, além de fazer subir no telhado todo o esforço político e diplomático do governo brasileiro para receber com um mínimo de coerência a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP30, no fim do ano.

Para Pedro Ivo Batista, dirigente da Associação Terrazul e do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS), o governo vive uma contradição interna. “As diretrizes programáticas elaboradas no grupo de trabalho na transição apontavam para um governo que faria história na construção do desenvolvimento sustentável, mas a constituição de uma frente ampla com setores da direita antiambientalista que trabalham intensamente pela hegemonia do agronegócio predador leva à atual divisão.”

Batista lamenta que o Brasil possa chegar à COP30 visto como um país que quer explorar petróleo na Amazônia e que desfigurou sua legislação ambiental. “Esses dois elementos nos fazem perder protagonismo ambiental em nível mundial e comprometem a liderança do País no enfrentamento das mudanças climáticas”, observa. O ambientalista classifica a lei recém-aprovada como “o maior retrocesso já visto” na política ambiental brasileira. “Ela atinge em cheio o licenciamento ambiental e ainda incentiva empreendimentos de alto impacto, como barragens e estradas. O PL também concede anistia a desmatadores e flexibiliza regras das ­Áreas de Proteção Ambiental.”

No dia anterior, deputados liberaram o uso de 30 bilhões de reais do Fundo Social do Pré-Sal para quitar dívidas de produtores rurais

Coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo avalia que, agora, o Brasil tem a pior lei ambiental em mais de quatro décadas. “É um ataque frontal à Política Nacional do Meio Ambiente institucionalizada em 1981. O licenciamento ambiental e a avaliação de impactos são as principais ferramentas que o País dispõe para prevenir poluição e degradação ambiental considerada de uma forma ampla, incluindo a proteção de direitos sociais. Tudo isso está escorrendo pelo ralo. Vamos gerar um quadro de caos, judicialização e descontrole ambiental”, lembra.

Suely Araújo afirma reconhecer a necessidade de aperfeiçoar e dar maior celeridade aos processos de licenciamento, mas ressalta que o conteúdo formulado pelos parlamentares está longe de preencher as demandas nesse sentido. Segundo a especialista, “o projeto implode o licenciamento em lugar de lidar com os problemas. O texto colide diretamente com a Constituição em muitas partes”. Agora, o Observatório trabalhará pelo veto de Lula: “Ele teria de ser total a esse ataque aos direitos socioambientais. Não acredito, contudo, que o Executivo vete muitos dispositivos, pois há ministérios que apoiaram esse conteúdo absurdo”. O FBOMS também espera pela reação do governo. “Reivindicamos que o presidente vete integralmente a nova lei”, diz Pedro Ivo.

Um dos 87 deputados que votaram contra o PL do Licenciamento, Nilto Tatto,­ do PT, afirma que a aprovação abre caminho para mais desmatamento, conflitos socioambientais e degradação. “É um sinal preocupante. Parte expressiva do Congresso ainda está comprometida com uma agenda predatória, pautada por interesses imediatistas e alheia à urgência climática. Infelizmente, essa postura compromete décadas de construção de uma legislação ambiental robusta e participativa no Brasil”, observa.

Tatto avalia que a base governista no Congresso tem interesses fragmentados e atua de “forma hostil” ao governo em alguns momentos. “É uma questão complexa, sabemos das diferenças dentro do governo, que é de coalizão ampla”, diz. O PT também atuará pelo veto, diz o integrante da Frente Parlamentar Ambientalista. “Lula tem a consciência e a convicção da urgência de combater a crise climática e compreende a importância do licenciamento ambiental. Vamos buscar um diálogo com o presidente para o veto aos trechos mais graves e de consequências terríveis para a população.” Tatto diz que “será possível construir esse diálogo com o presidente, as ministras Gleisi Hofmann e Marina Silva e o ministro Rui Costa”.

A aprovação do PL às vésperas da COP30, diz o deputado, enfraquece o discurso do Brasil. “Como podemos liderar a agenda climática global se, internamente, estamos desmontando os instrumentos básicos de controle ambiental?”, indaga. Tatto alerta que podem ir por água abaixo os bons resultados obtidos pelo governo no combate ao desmatamento e na reorganização das estruturas de Estado. “O Brasil tornou-se sede da COP almejando ser uma potência ambiental. O Congresso caminha, porém, na contramão. Aprovou um projeto que gera desconfiança em parceiros internacionais, compromete metas de transição justa e mina a credibilidade do País.” O sucesso do evento, conclui, depende de coerência política e legislativa: “Mais do que discursos, precisamos de ações concretas”. •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Afronta ambiental’

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