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Aedes do bem?

Pesquisadores expressam preocupação com a liberação de mosquitos transgênicos para combater a dengue

Kit. Os fabricantes expandiram os negócios e agora oferecem as caixas residenciais, além de ampliar os contratos com prefeituras País afora – Imagem: Lúcio Bernardo Jr./Agência Brasília e iStockphoto
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Em 2014, a multinacional da biotecnologia Oxitec recebeu autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança para a implementação do “Aedes do Bem” no Brasil. De acordo com a empresa, o mosquito geneticamente modificado é fatal para as fêmeas, responsáveis pelo contágio da doença, que morrem ainda na fase larval. Resultado: redução de 90% no número de insetos. Após uma fase de testes na cidade baiana de Jacobina e na paulista Indaiatuba, o produto passou a ser oferecido a prefeituras e entidades privadas. Hoje, a empresa tem contratos vigentes com cinco municípios, as mineiras Patos de Minas e Congonhas, pioneira no uso massivo da tecnologia, Manaus (AM), Segredo (RS) e Suzano (SP).  A mais recente linha do produto é a caixa residencial, que pode ser comprada no ­e-commerce da Oxitec e entregue nas regiões Sul e Sudeste pelos Correios.

Apesar do sucesso comercial, a tecnologia tem sido contestada por biólogos e agrônomos. Segundo eles, o processo de avaliação de risco usado para esse tipo de tecnologia da CTNBio é frágil e está submetido a fortes pressões comerciais. José Maria Gusman é um dos críticos. O ecólogo e professor da Uniara, integrante da CTNBio por três gestões, acompanhou o processo de liberação da primeira versão do mosquito geneticamente modificado, onde foi voto vencido. “Ele foi liberado como se fosse uma planta. A CTNBio tinha normas adequadas para a avaliação da soltura de insetos alados e usou parâmetros criados para avaliar riscos associados ao uso de plantas transgênicas”, relembra.

Um ponto destacado pelo pesquisador é o risco de outras espécies tomarem o espaço deixado com a eliminação do ­Aedes aegypti, principalmente pelo Aedes albopictus, que no passado ocupou áreas urbanas e acabou “expulsa” para matas e arredores das áreas urbanas durante a proliferação da “concorrente”. “A supressão quase total de populações locais de Aedes aegypti tenderá a provocar fluxos de migração de populações locais de ­Aedes albopictus, comprometendo os objetivos de redução da doença da dengue pelo simples fato de que um novo vetor da doença ocupará nichos ecológicos abruptamente abandonados pelo principal competidor.” De acordo com a ­Oxitec, uma pesquisa comprova que, após a supressão da liberação dos “Mosquitos do Bem”, as áreas voltam a ser ­ocupadas pela população natural do aegypti, mas a pesquisa não analisa se outras espécies tomam o território durante a liberação dos transgênicos, nem os eventuais efeitos sobre a saúde humana.

Faltariam mais estudos sobre a tecnologia, dizem especialistas. A Oxitec, detentora da patente, contesta

Gusman argumenta que a lacuna é problemática, pois o albopictus também é transmissor da dengue e da ­chikungunya, além da febre amarela e outras ­doenças. “A pesquisa da Oxitec observa os efeitos no aegypti, mas podemos ter problemas justamente com outras espécies e as pesquisas observam apenas o período após o fim da liberação dos transgênicos, quando se deveria observar também o que ocorre com outras espécies durante a presença deles no ambiente”, descreve. A situação é ainda mais grave, afirma, quando a liberação de mosquitos se dá em todo o País. “Apenas com um estudo feito em duas cidades não podemos deduzir que as populações de mosquitos de ambientes tão diferentes como os encontrados na Amazônia ou no Rio Grande do Sul vão ser as mesmas.”

O engenheiro agrônomo e representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio, Leonardo ­Melgarejo, entende que uma das falhas da liberação foi não levar em consideração condições comuns no Brasil, que podem permitir a reprodução de fêmeas descendentes dos mosquitos geneticamente modificados. “Desconsiderou-se que, no ambiente natural das condições de vida das populações mais afetadas pela dengue, que são aquelas que moram nas áreas insalubres, existe, em abundância, a presença de antibióticos que vão destravar o mecanismo de controle”, argumenta. A afirmação baseia-se em um estudo da pesquisadora Helen Wallace, da Universidade de Oxford, segundo o qual a tetraciclina, antibiótico também usado no tratamento de água, funciona como um “interruptor químico”. Dessa forma, as fêmeas que deveriam morrer antes de atingir a idade adulta têm a chance de crescer e se reproduzir. Os experimentos apresentados pela Oxitec, aponta Melgarejo, não levam em consideração a presença de fossas sépticas rasas e esgotos a céu aberto, nos quais a presença do medicamento pode apresentar grande variação.

Para a diretora-geral da Oxitec no Brasil, Natália Verza, todas as informações necessárias para a soltura do “Aedes do Bem” foram encaminhadas e a solicitação de uso comercial da segunda geração do mosquito, apresentada em 2020, foi aprovada. “Após essa liberação, lançou-se um protocolo de acompanhamento, chamado de monitoramento, depois da liberação comercial e que após dois anos todas as liberações feitas com essa tecnologia deveriam ser acompanhadas. Apresentamos o relatório final desse acompanhamento em 2022 para a CTNBio e ele foi aprovado por unanimidade”, destacou.

Pioneirismo. A mineira Congonhas foi a primeira cidade a adotar de forma ampla o uso de mosquitos transgênicos contra a proliferação do Aedes – Imagem: iStockphoto

Gusman e Melgarejo analisam a situação de forma diferente. Eles afirmam que muitos dos avaliadores da CTNBio responsáveis por analisar tais projetos são pesquisadores vinculados às pesquisas de transgênicos e não teriam interesse em se contrapor, pois poderiam também ser prejudicados. “Hoje existe uma desregulamentação muito grande nesse sentido. É cada vez mais fácil se aprovar o uso de transgênicos no País, mas no caso de se liberar um vetor de uma doença as consequências podem ser graves.”

A Oxitec prepara-se para ampliar ­suas vendas e agora conta com representantes comerciais para fazer contato com as prefeituras. O contrato entre a empresa e a prefeitura de Congonhas, de 15 milhões de reais, foi feito por intermédio da Call Clean. Em fevereiro, o uso do “Aedes do Bem” pela cidade foi notícia em vários portais mineiros e ganhou destaque no Jornal Nacional. Uma representante da prefeitura apontou na ocasião uma redução drástica no número de casos na cidade, graças ao uso do transgênico. Dois meses depois da reportagem ter sido levada ao ar, o último levantamento da prefeitura mostra que são 2.691 casos notificados de dengue e 862 confirmados.

Sobre a efetividade do mosquito na redução da dengue, Verza explica que a empresa oferece um produto para combater o vetor. “O que precisamos ter em mente é que a solução é para o controle do mosquito, não é uma solução para o controle da doença. É o mesmo princípio aplicado pelos inseticidas. Quando uma empresa química faz uma pesquisa para matar os insetos, ela mostra que mata os insetos. Da mesma maneira, a Oxitec demonstra que faz o controle dos mosquitos. ­Como o ­Aedes é o vetor, espera-se que isso se reflita nos resultados da doença.” Cabe à prefeitura, acrescenta a executiva, avaliar a efetividade do produto, recolhendo e comparando os dados sobre a doença.

“A solução é para o controle do mosquito, não da doença”, diz Natália Verza, da Oxitec

Em 2019, uma pesquisa publicada na revista Scientific Reports gerou notícias sensacionalistas de que a liberação dos “Aedes do Bem” em Jacobina produziu um mosquito ainda mais resistente e de maior capacidade de disseminação de doenças. A publicação científica foi conduzida por ­Jeffrey Powell, da Universidade Yale e contava com a coautoria de sete pesquisadores brasileiros, que trabalhavam em cooperação com a Oxitec. A repercussão incomodou seis dos coautores brasileiros, que retiraram seus nomes do artigo, alegando não terem aprovado o texto final.

A situação rendeu um “editorial de expressão de preocupação” por parte da revista, corroborado por seis dos coautores brasileiros, mas rejeitada por ­Powell, três pesquisadores norte-americanos e pelo geneticista Aldo Malavasi, professor aposentado da USP e fundador da Moscamed, biofábrica de mosquitos então associada à Oxitec. Os resultados da pesquisa também não foram contestados pela empresa. O trabalho não afirmava que iriam surgir supermosquitos após o cruzamento dos transgênicos com as espécies locais, apenas que parte do material genético dos mosquitos liberados ainda estava presente no ambiente e que eram necessários mais estudos para avaliar as consequências do uso da tecnologia. A própria documentação apresentada pela companhia reconhecia que até 3% do material genético poderia ser encontrado em gerações posteriores. •

Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aedes do bem?’

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