Política
Acolher quem acolhe
O governo e o Congresso discutem formas de regulamentar a economia do cuidado


A diarista Maria Solange, de 36 anos, pediu demissão do emprego para cuidar dos dois filhos pequenos, diagnosticados com doenças crônicas. Pela manhã, fazia faxina em condomínios no balneário de Porto de Galinhas, no litoral pernambucano, uma forma de complementar o salário do emprego fixo num centro comercial, onde precisava dar expediente à tarde e à noite. “Eu estava ficando sem tempo para meus filhos e isso estava me pesando muito na consciência. Já não tinham o pai na vida deles e ficar sem a mãe também estava me preocupando, eu vi que eles estavam precisando de mim. Mesmo assim, ainda lutei para segurar os dois trabalhos para que não faltasse nada para eles”, conta a diarista, que se sentiu forçada a escolher entre continuar nos dois empregos ou cuidar das crianças. “A falta do pai na vida deles me fez sair do emprego fixo. Eu sou mãe, sou pai, sou a responsável por eles. Fiquei só com os condomínios, porque posso conciliar os meus horários e dar atenção aos meus filhos, levá-los ao médico.” Solange também conta com o apoio da mãe no cuidado das crianças.
Assim como a diarista, outros 47,5 milhões de brasileiros, dos quais 75% são mulheres, estão invisibilizados na chamada economia do cuidado, um nicho do mundo do trabalho que chega a gerar 11% do PIB nacional, mas que não é valorizado nem recompensado com políticas públicas à altura. “Globalmente, as mulheres geram 10 trilhões de dólares com a economia do cuidado e, mesmo assim, o nosso valor de mercado, nossa entrega para a sociedade, não é reconhecido. Por isso esse ciclo de feminização da pobreza”, destacou Nina Lima, da ONG Thing Olga, durante seminário sobre economia do cuidado, realizado na terça-feira 9 na Câmara dos Deputados. “Mesmo o Ministério do Trabalho não reconhece o serviço doméstico, diz que não produz lucro a quem nos emprega. Isso é uma coisa absurda. O tempo que gastamos realizando as tarefas domésticas não é contabilizado como um ganho econômico, mas a gente sabe que é”, queixa-se Luíza Batista, da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas.
Mais de 47,5 milhões de trabalhadores, 75% de mulheres, têm pouca ou nenhuma proteção social
Além de majoritariamente feminino, o trabalho do cuidado é negro (55%), segundo dados do IBGE, que também aferiu o tempo gasto pelo serviço: enquanto as mulheres dedicam mais de 21 horas semanais ao trabalho do cuidado, os homens usam apenas 11,7 horas do seu tempo por semana. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, 76% não são remunerados. “Por ser realizado dentro de uma residência, esse trabalho é invisibilizado”, avalia Batista. O debate da economia do cuidado ainda é incipiente no Brasil, embora esteja bem avançado em outros países que têm uma política de bem-estar social consolidada, casos de França e Holanda, e até em países da América Latina, como o México e a Argentina. O Seminário realizado pela Câmara foi a primeira atividade do Grupo de Trabalho criado no Legislativo para discutir uma política nacional do cuidado, coincidindo com uma iniciativa em andamento também no governo Lula, e que envolve 17 ministérios, o IBGE, o Ipea e a Fundação Fiocruz.
Mais de 120 projetos sobre o tema tramitam no Congresso, alguns há mais de uma década, entre eles uma proposta da deputada Luiziane Lins, do PT cearense. A matéria estabelece a inclusão da economia do cuidado no Sistema de Contas Nacionais, para aferição do desenvolvimento econômico e social do País, no sentido de auxiliar a definição e implementação de políticas públicas. “A economia do cuidado é muito ampla, envolve o que é feito no mercado de trabalho e fora dele. Nosso PL sugere pesquisar e medir o uso do tempo dedicado ao trabalho de cuidado não remunerado, realizado principalmente por mulheres. É fundamental reconhecer o cuidado como trabalho e direitos, para isso é preciso valorizar e remunerar dignamente quem realiza para promover a equidade e garantir autonomia, independência e qualidade de vida a todas e todos, seja quem realiza o cuidado e quem dele necessita”, defende a parlamentar.
Esforço. A deputada Sâmia Bonfim coordena o grupo de trabalho na Câmara criado para propor políticas públicas – Imagem: Redes sociais
Durante o seminário na Câmara, a deputada Sâmia Bomfim, relatora do GT, solicitou às respectivas comissões que colocassem em pauta os projetos parados. “O primeiro passo é tirar esse tema da invisibilidade, que passe a ter um reconhecimento da sociedade e do Estado. O trabalho do cuidado existe, nem sempre é remunerado e, nos casos em que é, ou seja, quando as famílias conseguem contratar alguém ou terceirizar, é mal remunerado. A maioria das trabalhadoras domésticas e cuidadoras ainda está em condição irregular. É preciso que o Estado se responsabilize como organizador desse debate e passe a pensar políticas públicas que envolvam esse tema”, defende a psolista, que pretende até agosto concluir um relatório preliminar. Para a parlamentar, instituir uma política do cuidado, além de valorizar o trabalho invisibilizado, tende a contribuir com a economia do País. “Nos países em que isso foi instituído, observou-se que a economia do cuidado corresponde de 20% a 30% do PIB. O cuidado tem muito a contribuir com a produção, com o desenvolvimento econômico.”
Uma das palestrantes no seminário da Câmara, Laís Abramo, secretária nacional de Cuidado e Família do Ministério de Desenvolvimento Social, reforçou a função da economia do cuidado na reprodução social e do capital e o quão desproporcional é esse trabalho quando comparado à divisão do trabalho entre homens e mulheres. “O cuidado é um bem público, sem o qual a força de trabalho não se reproduz, a economia, as instituições e as sociedades não funcionam. É preciso transformar a atual organização social dos cuidados no Brasil, que é injusta, desigual e insustentável, uma vez que coloca sobre as mulheres a responsabilidade principal, quando não exclusiva.” O grupo de trabalho criado há pouco mais de um ano pelo governo Lula para discutir o tema deve entregar ao presidente, até o meio do ano, uma primeira versão do Plano Nacional da Economia do Cuidado, com políticas públicas para atender tanto os cuidadores quanto quem é cuidado, além de apontar responsabilidade das empresas nesse debate.
Adotar políticas públicas para o setor impulsiona o PIB de modo geral
“Para se ter a reprodução da vida humana, a gente precisa de uma política pública do cuidado de qualidade e universal e que as pessoas que trabalham com cuidado tenham condições dignas para exercer a sua profissão, a maioria mulheres. Enquanto a gente não compartilhar essa tarefa, as mulheres nunca vão conseguir sair desse espaço. Por isso a necessidade de construir políticas em que o Estado assuma o seu papel. A gente precisa valorizar essas trabalhadoras não somente economicamente, mas também socialmente”, explica Rosane da Silva, secretária nacional de Autonomia Econômica e Política de Cuidados do Ministério das Mulheres. A secretária cita como algumas das políticas públicas que devem constar no plano a regulamentação e a valorização das profissões inseridas no tema, como empregadas domésticas, babás, cuidadoras e até as chamadas donas de casa que não têm remuneração pelo trabalho doméstico que executam em casa e que, portanto, estão à margem do mercado de trabalho formal.
Devem ainda constar na proposta do governo a remuneração e a situação previdenciária desses trabalhadores, a criação de espaços públicos que diminuam a sobrecarga do trabalho doméstico, como lavanderias e cozinhas coletivas e mais creches, além de impor ao setor empresarial parte da responsabilidade. “Em torno de 30% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres. Então, o nosso salário é tão fundamental, ou tão provedor, quanto o salário de um homem em qualquer família. Não ter política de contratação de mulheres chefes de família mostra o quanto as empresas estão atrasadas nesse debate”, salienta Rosane da Silva, defensora de uma política de extensão da licença-maternidade e paternidade e da oferta pelas empresas de acesso a creches aos trabalhadores. •
Publicado na edição n° 1306 de CartaCapital, em 17 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Acolher quem acolhe’
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