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Abolição inconclusa

A Lei das Domésticas completa 10 anos, com as diaristas excluídas da proteção trabalhista e maior informalidade

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Manobra. Trocar a mensalista por uma faxineira eventual é uma forma de evitar o reconhecimento do vínculo empregatício – Imagem: iStockphoto
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Os trabalhadores domésticos esperaram por 70 anos para ter os direitos equiparados às demais categorias. Excluídos da Consolidação das Leis do Trabalho sancionada por Getúlio Vargas em 1943, eles só passaram a usufruir de benefícios como seguro-desemprego, recolhimento de FGTS, indenização por demissão sem justa causa, jornada de 44 horas semanais, pagamento de horas extras e adicional noturno após a aprovação da PEC das Domésticas, em abril de 2013. Não por acaso, entidades representativas de faxineiros, cozinheiros, caseiros, mordomos e governantas, entre outros, tratam a legislação que acaba de completar dez anos como uma “nova Lei Áurea”, inclusive por ainda provocar chiliques na casa-grande.

Último país das Américas a abolir formalmente a escravidão, o Brasil possui o segundo maior contingente de trabalhadores domésticos do mundo, atrás apenas da China. São mais de 5,8 milhões de empregados que prestam serviços para indivíduos ou famílias, segundo um estudo do Dieese. Os patrões recusam-se, porém, a valorizar e remunerar de forma adequada quem cuida de suas casas. Em 2013, um terço desses profissionais era de formais (33%). Agora, somente um em cada quatro trabalha com carteira assinada (25%). Em outras palavras, ampla parcela da classe média trocou a doméstica registrada pelo serviço de diaristas informais.

“O trabalho doméstico move o mundo, porque é ele que permite às famílias se organizarem, ter autonomia e poder se dedicar a seus projetos externos. Só que esse trabalho é invisível e pouco valorizado”, lamenta Luíza Batista, coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, maior entidade representativa da categoria no País. A líder sindical denuncia que muitos empregadores tentam burlar as regras, principalmente no que diz respeito ao recolhimento da Previdência Social. É comum, segundo ela, muitas mulheres descobrirem somente na hora de se aposentar que os patrões não fizeram o recolhimento das contribuições para o INSS. “E a punição? Bem, é praticamente zero.”

Hoje, apenas uma em cada quatro trabalhadoras do setor tem carteira assinada

A exemplo do que costuma ocorrer no restante do mundo, o trabalho doméstico no Brasil é predominantemente feminino. No fim de 2022, as mulheres representavam 91,4% da força de trabalho empregada no setor, enquanto os homens respondiam por 8,6%, atesta o Dieese. Geralmente contratadas para executar serviços de limpeza e manutenção da casa, essas profissionais por vezes também recebem a tarefa de cuidar de crianças, idosos, doentes e até mesmo de animais domésticos sem qualquer remuneração extra pelo acúmulo de funções. Além de ser um ofício feminino, o trabalho doméstico no Brasil também está relacionado ao nosso passado escravocrata. No quarto trimestre de 2022, as trabalhadoras negras representavam 67,3% do total de empregadas nesse segmento.

Alerta. “Se o patrão não paga o INSS, a empregada não se aposenta”, lamenta Batista – Imagem: Priscilla Buhr/AMCS/MP-PE

Por mais que a PEC das Domésticas tenha garantido avanços inegáveis, a legislação não foi capaz de estender esses direitos às diaristas, mulheres que trabalham sem vínculo empregatício e normalmente exercem a função em duas ou mais residências semanalmente. Integrá-las às novas normas é uma das principais lutas do setor atualmente, afirma Batista. Nesses dez anos em que a lei está em vigor, o Brasil sofreu uma série de reveses que afetou diretamente a vida dessas mulheres. “Depois do golpe contra Dilma Rousseff, a situação ficou terrível. Muitas famílias sofreram com o desemprego ou a queda de rendimentos. A partir de então, aumentaram os acordos para manter as domésticas na informalidade.”

Nesse cenário de crise, muitos patrões demitiram as trabalhadoras mensalistas e passaram a recontratá-las como diaristas, para realizar a limpeza da casa somente um ou dois dias na semana. Dessa forma é possível evitar o reconhecimento do vínculo empregatício, devido à eventualidade dos serviços prestados. Para piorar, a reforma trabalhista aprovada na gestão de Michel Temer dificultou a luta por direitos no âmbito da Justiça, sobretudo após prever que o empregado derrotado em um processo trabalhista é obrigado a arcar com os honorários do processo.

Para completar o calvário, a pandemia de Covid-19 levou à demissão de 1,1 milhão de domésticas. À época, a campanha “Cuide de quem cuida de você”, movida pela categoria, tentou sensibilizar os empregadores com o pedido para afastar as funcionárias de suas funções, devido à exigência de isolamento social, mas continuar pagando o salário. A adesão foi quase nula, apenas 2 mil patrões toparam a proposta. “O que é isso diante de 5 milhões?”, critica Batista. Em 2021, com o relaxamento das medidas sanitárias, essas mulheres passaram a ser recontratadas pelos antigos patrões, mas quase sempre na informalidade, sem carteira assinada.

A economista Cristina Vieceli foi uma das coordenadoras de um amplo estudo realizado pelo Dieese e publicado em 27 de março, o Dia Internacional das Trabalhadoras Domésticas. A especialista não titubeia em dizer que as políticas de austeridade fiscal amplificadas a partir do governo Temer foram muito piores para a categoria do que a pandemia de Covid-19. “Uma prova disso é o aumento do número de diaristas, para descaracterizar o vínculo de trabalho. Da mesma forma, reduziu consideravelmente o número de domésticas que contribuem para a Previdência Social.”

Vieceli acredita que a PEC das Domésticas promoveu um avanço civilizatório importante, porque melhorou a qualidade do trabalho e garantiu direitos. Por outro lado, evidenciou elementos desfavoráveis à categoria. “A Reforma Trabalhista facilitou a flexibilização de contratação e aumentou a quantidade de ‘microempreendedoras individuais’, ou seja, aquelas domésticas que emitem nota fiscal”. A especialista acrescenta: “Hoje, a gente nota o aumento da informalidade de um mercado que já era bastante informal. Há maior precarização do trabalho doméstico”.

O perfil das trabalhadoras domésticas também mudou. “Hoje, já não são mais moças jovens oriundas das re­giões Norte e Nordeste que tentam ganhar a vida nas grandes cidades. Essas trabalhadoras começaram a envelhecer e têm, em média, de 40 a 55 anos”, explica Vieceli. Na avaliação da economista e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp, Marilane Teixeira, essa mudança de perfil acena para um problema que está próximo: “Em breve, teremos uma legião de mulheres que não vão conseguir se aposentar porque trabalharam desde muito jovens, mas não terão o tempo de contribuição no INSS”.

Dois terços das domésticas são negras e recebem, em média, 88% do salário mínimo

A pesquisadora que trabalhou na equipe de transição do Ministério do Trabalho do governo Lula revela que serão muitos os desafios para este próximo período e, mesmo com o avanço da legislação, as trabalhadoras domésticas continuam à margem da sociedade. Elas recebem, em média, apenas 88% do salário mínimo. “Uma mulher contratada para trabalhar todos os dias numa residência recebe, em média, até 1.076 reais. Quando falamos das diaristas, essa renda cai consideravelmente. É um quadro muito preocupante.” Ao menos metade dessas trabalhadoras (52%) é de chefes de família. A maior dificuldade para conseguir lutar por aumento salarial é a baixa associação sindical. Apenas 5% são sindicalizadas e não existem sindicatos patronais, o que impede a convenção coletiva.

Para Bruna Bonfante, procuradora do Trabalho e coordenadora nacional do Grupo de Trabalho Doméstico do Ministério Público do Trabalho, a principal vantagem da lei foi a mudança de paradigma. “A legislação permitiu a valorização do trabalho que ainda é muito atravessado pela discriminação de gênero, porque são mulheres, e de raça, porque a maioria delas é de negras, cerca de dois terços do total. Mas ainda é preciso avançar em muitos aspectos”, alerta.

Com a chegada da lei, muitas trabalhadoras passaram a ter consciência de seus direitos, e isso escancarou o que a procuradora chama de “herança escravagista”. “Se a gente for puxar a história, vamos chegar ao Brasil escravocrata. Após a abolição, muitas mulheres continuaram trabalhando para os antigos senhores em troca de teto e comida. E isso continuou acontecendo ao longo dos anos, tanto que até hoje vemos na nossa arquitetura uma herança escravocrata, os apartamentos com seus quartinhos de empregada.” Bonfante acrescenta que a lei foi um bom começo, mas, para superar esse passado de casa-grande e senzala, ainda será preciso percorrer um longo caminho de superação das desigualdades. A garantia de vínculo empregatício para as diaristas deve ser o primeiro passo.


*Colaborou Fabíola Mendonça.

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Abolição inconclusa’

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